Grupos de trabalho e outras atividades discutiram questões de saúde mental, acolhimento, acessibilidade e formação profissional
Na última quarta-feira (27), a diretoria da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) realizou o evento Trabalho e Diversidade na USP - boas práticas e impasses para a inclusão, que abordou diversos eixos temáticos que possibilitaram refletir meios de inclusão na Universidade após a mudança do perfil de discentes e docentes ingressantes nos últimos anos. “Nós pensamos este evento como parte de uma série de assuntos que hoje nos parecem críticos no funcionamento social, como o trabalho, como o meio ambiente. E a interseção entre essas problemáticas e a problemática da inclusão nos parece especialmente convidativa, precisamente pela necessidade que vemos de que a Universidade contribua para uma sociedade mais igualitária”, explicou o diretor Adrián Fanjul.
A mesa de abertura contou com a presença de Adrián Fanjul, diretor da FFLCH; Silvana Nascimento, vice-diretora da FFLCH; Ianni Scarcelli, diretora do Instituto de Psicologia (IP); Rogério Monteiro da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), Gabrielle Weber da Associação de Docentes da USP (Adusp); Inácio Coveda, da Secretaria da Pessoa com Deficiência de São Paulo; Teresa Teles do Diversitas FFLCH; e Camila Santana e Isabelle Pantoja, do Programa de Acolhimento aos Estudantes Cotistas (PAECO). Os convidados trouxeram dados, experiências individuais, análises e perspectivas sobre a presença e permanência de grupos historicamente marginalizados na Universidade de São Paulo.
Ianni Scarelli iniciou as falas destacando a importância da realização do evento em novembro. “É importante dizer que esse evento é mais significativo ainda, por estar ocorrendo no mês da consciência negra, um momento que nos convoca a refletir sobre a luta contra o racismo e tudo o que ele representa em nossa sociedade, incluindo as estruturas e práticas que perpetuam as desigualdades em nossas instituições. A USP, como universidade pública e plural, tem a responsabilidade de ser referência para a reflexão crítica e a construção de políticas e práticas concretas em direção à inclusão e a uma sociedade menos desigual".
Durante as apresentações, foram destacados eixos essenciais para a promoção da diversidade, como a entrada de professores negros e a presença feminina na docência da USP. Como diretor de Diversidades da PRIP, Rogerio Monteiro valorizou a presença de professores negros no corpo docente da USP. “Do ano passado para cá, nós tivemos um número razoavelmente interessante de entradas de novos professores pretos e pardos da Universidade, em torno de mais ou menos de 15%”. Apesar disso, Rogério enfatiza a principal preocupação na inclusão: “ir além dos números, quer dizer, pensar em maneiras de que as pessoas se sintam melhor acolhidas e incluídas na Universidade. Quer dizer, criar um ambiente melhor de trabalho e de estudos para todo mundo. Mudar a cultura profissional".
Gabrielle Weber também reflete sobre o assunto: “O que adianta eu, como uma professora branca, vir falar sobre negritude? Óbvio, é importante que eu critique a minha branquitude, mas eu não vou inspirar um aluno negro a ocupar esse espaço. Então, é importante a presença de professores negros".
Foi tratada também a questão da precarização do trabalho e como a Universidade tem trabalhado para valorizar seus funcionários. “Na estrutura universitária, servidores não docentes não assumem cargos de chefia, coordenação, mas nós, os Diversitas, demos um primeiro passo para iniciar essa discussão, uma discussão mais ampla sobre o reconhecimento dos trabalhadores na estrutura universitária”, comentou Teresa Teles, “Todos somos trabalhadores da educação. Chefias, coordenadores e diretores não são patrões. Nós precisamos trabalhar com e não para (eles)", finaliza.
Representado pelas alunas Camila Santana e Isabelle Pantoja, o PAECO foi apresentado na mesa a partir de suas duas frentes: a equipe de pesquisa e a equipe de difusão.
Conferência “Ainda sobre os condenados da terra, reparação e justiça”
Ainda durante a programação da manhã, Acácio Almeida, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e presidente da Associação Brasileira de Estudos Africanos (ABEÁfrica), realizou conferência trazendo a reflexão sobre o protagonismo negro. “Fui percebendo quanto o protagonismo do movimento negro foi de extrema importância para que resoluções próprias fossem surgindo dentro das nossas universidades. Há quem diga que, onde uma negra, um negro entra, outros grupos também entram”.
A partir da exibição do filme As Cotas, manifesto audiovisual feito pela União Nacional dos Estudantes (UNE), em celebração aos 10 anos da implementação de cotas no Brasil, o professor pautou a importância das políticas afirmativas e os resultados que elas vêm trazendo na camada social que esses grupos beneficiados pertencem. Ele ainda defendeu a ampliação do nível de institucionalização das políticas de ações afirmativas nas instituições de ensino. “Quando eu falo de institucionalização, é exatamente para que deixemos de ser apenas um grupo fazendo essa discussão. Mas essa discussão tem que passar e tem que estar na fala das nossas reitoras, dos nossos reitores, tem que estar em todos os setores das nossas universidades".
Acácio citou um conjunto de leis que garantem o acesso de pessoas negras a segmentos antes totalmente brancos e elitizados. Acompanhando esse avanço, é importante que sejam feitas políticas de acolhimento e pertencimento, “entrar não significa permanecer, por isso a importância de debater a permanência”.
Trabalho, saúde, assistência e direitos
O Grupo “trabalho, saúde, assistência e direitos”, mediado pela professora Vima Rossi Martin, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, teve como objetivo conceber a saúde como um direito do trabalhador da USP. Também foi discutido e apresentado dados sobre as condições de sofrimento às quais a comunidade universitária está submetida e caminhos para melhoria do cenário.
Para iniciar a discussão, a professora Leny Sato, do IP, abordou como os modelos econômicos e valores do chamado “neoliberalismo” estão “colonizando” a Universidade, criando o fenômeno do “capitalismo acadêmico”. A nomenclatura se refere às mudanças graduais das relações de trabalho e pesquisa na USP.
Como exemplo dado por Sato, houve uma adesão de lógicas do mercado privado nos valores da USP, como a cobrança por resultados padronizados, métricas de desempenho baseados em controles universais, exigência excessiva por produtividade, publicação e conquista de financiamentos, além de pesquisadores de pós-graduação sendo considerados como “empregados” dos laboratórios, entre outros.
Na avaliação da professora, docentes, servidores e pesquisadores ficam sobrecarregados com altas demandas e passam a adoecer, prejudicando os objetivos acadêmicos de ensino, pesquisa e extensão da Universidade. Leny cita, em oposição, o chamado “trabalho de artesão do saber”, onde existe a livre regulação das relações, sem objetivos padronizados e o cuidado maior com a qualidade e excelência de um trabalho acadêmico. Para ela, “o artesão está se perdendo”.
Greice Cristina de Oliveira e Nathália Ferreira de Souza e Silva, ambas servidoras técnicas administrativas da USP e pesquisadoras do Programa ECOS da PRIP, fizeram também uma apresentação de dados sobre os problemas da comunidade a partir da escuta. Segundo elas, a presença dos alunos cotistas, desde 2018, trouxe mudanças na avaliação da saúde mental, devido a dinâmicas e especificidades que são particulares dos contextos de origem dos novos alunos.
Elas também elencaram os principais temas que aparecem nos relatos das pessoas, como assédio moral, exaustão no trabalho, humilhação por superiores, degradação da qualidade e do ambiente de trabalho dentro e fora da Universidade e precarização dos serviços. Duas temáticas especiais foram analisadas, primeiro as vivências de discriminação e racismo e depois o registro de desejos suicidas que atingem todos os níveis do corpo social da USP: docentes, discentes e servidores.
Com o estudo feito pelo ECOS, foi possível determinar que a percepção de acolhimento de pessoas negras, indígenas e LGBTs é ruim e precisa de melhorias. Greice atentou para o uso da expressão “sofrimento sócio-político”, para além do “mental”, que descreve a relação do sofrimento advinda dos casos de discriminação e racismo sentida pelas minorias da Universidade.
O conceito de Justiça Restaurativa foi apresentado como método para resolução de conflitos no campo do sofrimento. Quem levou a ideia foi Carla Boin, advogada e coordenadora do Núcleo de Justiça Restaurativa: Diversidades e Saberes Orais da FFLCH. A abordagem propõe rever as noções de justiça da sociedade ocidental, tomando como exemplo a cultura indígena. Segundo Boin, “ao invés de utilizar a punição, utilizamos o ensino e a cura, pois se considera o criminoso como uma pessoa adoecida”. Ao invés de apontar culpados, “aponta-se os danos causados, necessidades de reparação e o seu responsável”, completa.
Entre as propostas levantadas pelo grupo, está a mudança do termo “assistência” para “atenção”. De acordo com os participantes, a assistência contempla o tratamento, já a expressão “atenção à saúde” é mais ampla, contemplando a assistência e também a prevenção.
Em debate posterior à apresentação das propostas do GT, os participantes voltaram-se para rever a cultura do cancelamento na USP e as políticas de denúncia, elencando a Justiça Restaurativa como chave para alterar o tratamento desses problemas. Segundo a diretora do IP, Ianni Scarcelli, é necessário “tomar a saúde mental não somente como doença, mas como eixo articulador de um conjunto de questões, por exemplo, direitos humanos”.
Durante o debate, concluiu-se a troca do termo “denúncia” por “demanda”, para ampliar o atendimento de casos sem que seja necessária uma intervenção jurídica. Além do uso da “escuta” como via principal para as políticas de atenção e assistência. O papel desse acolhimento fica a cargo da instituição, que pode criar mais redes de atenção, cuidado e atendimento.
Estiveram presentes também a vice-diretora Silvana Nascimento, a relatora deste GT, professora Sylvia Garcia, do Departamento de Sociologia e o ouvidor da FFLCH, José Clóvis de Medeiros Lima.
Políticas de Acessibilidade
Para o Grupo de Trabalho “Políticas de Acessibilidade” foram convidados a professora de Terapia Ocupacional na Faculdade de Medicina da USP e do Programa de Pós-Graduação Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/DIVERSITAS), Eucenir Fredini Rocha; a professora do Departamento de Linguística da FFLCH, Fernanda de Araújo Machado; a professora do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da USP (FEUSP), Sylvia Lia Grespan Neves e o aluno de graduação de Letras da FFLCH, André Félix de Oliveira.
O GT evidenciou, principalmente, impasses e complicações sobre acesso e permanência de pessoas com deficiência e neurodivergentes na FFLCH e na USP. No evento, foi comentado sobre a necessidade de equipamentos e estratégias para lidar com alunos, funcionários e docentes com deficiência.
A professora Fernanda de Araújo, uma das duas docentes surdas da USP, contou as dificuldades em sua jornada como estudante e professora surda. Para conseguir terminar sua graduação com Artes Plásticas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi preciso que pagasse de seu bolso um intérprete de libras que a acompanhasse. A sua dissertação de mestrado, em Estudos da Tradução na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi a primeira apresentada em língua de sinais em uma universidade pública. Como docente da USP, Fernanda diz que ainda são necessárias muitas adaptações para que consiga lecionar de forma satisfatória. Suas reclamações foram voltadas, sobretudo, aos intérpretes terceirizados que, por muitas vezes, não são suficientes e não estão preparados para lidar com a linguagem acadêmica específica em circulação na USP. Além de mudarem de tempos em tempos, por não serem concursados. Sylvia Lia Grespan, também surda, apontou as mesmas questões sobre os intérpretes. Ela fala que foi muito bem acolhida pelos alunos da FE e enfatizou como eles são empáticos com a sua condição, porém os intérpretes afetam sua prática como docente.
Olga Coelho, professora do Departamento de Linguística da FFLCH e mediadora do Grupo de Trabalho, contou sobre sua experiência tendo um aluno cego em sala de aula. Como não há piso tátil no chão dos prédios da universidade, a locomoção do aluno era muito limitada - ele ficava a maior parte do tempo na sala até a sua mãe poder levá-lo. “Essa é uma situação que nos envergonha como universidade. O nosso espaço é muito hostil e precisamos de fato cuidar dessa questão o mais rápido possível”, conclui a professora. Eucenir complementa a fala de Olga explicando que as situações limitantes da pessoa com deficiência e neurodivergente são normalizadas. Pois, mesmo com todas as dificuldades existentes, elas conseguem ingressar nos cursos e se formar, mas passando por condições constrangedoras e excludentes.
O diretor da FFLCH, Adrián Pablo Fanjul, fez várias perguntas aos convidados a fim de se inteirar mais sobre suas vivências. Ele falou que estava estudando a possibilidade da colocação do piso tátil em todos os prédios da FFLCH. Também relatou que há uma resistência da Universidade na contratação de intérpretes de libras, por isso a maioria é terceirizada. Porém, Adrián trouxe a ideia de ampliar o programa ECOS com intérpretes contratados pela Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (FUSP).
Formação e educação na perspectiva interseccional
O Grupo de Trabalho “Formação e educação na perspectiva interseccional” abordou a necessidade da construção de conhecimentos diversos e complementares entre si por docentes, discentes e funcionários da FFLCH, como uma educação antirracista, a luta contra o assédio sexual no meio acadêmico e a importância das artes para o aumento da inclusão social.
A partir da exposição de dados levantados pelo Programa de Acolhimento aos Estudantes Cotistas (PAECO) e pelas questões sociais citadas, a mesa propôs a presença física de grupos minoritários que enfrentam entraves no ambiente universitário para uma resolução participativa das problemáticas cometidas contra essas pessoas. “Não tem fórmula mágica, mas não tem volta”, conforme afirmou o professor de sociologia Murillo Marschner sobre possíveis soluções para os enfrentamentos em pauta durante a reunião.
Por fim, foi esclarecido que hoje, na USP, a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) que viabiliza a institucionalização de propostas sociais, como a atualização em curso do código de ética da USP, promove uma legislação mais ampla e mais inclusiva na Cidade Universitária.
O evento contou com a presença do professor de antropologia Rosenilton de Oliveira da Faculdade de Educação (FE); da professora de antropologia Heloisa Buarque de Almeida (FFLCH); da especialista em cooperação e extensão universitária do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP e professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP; do professor de sociologia Murillo Maschner (FFLCH) e chefe do PAECO; e da professora de antropologia Soraia Chung Saura da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE/USP)
21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra as Mulheres: quais os avanços pelos direitos das mulheres?
Heloísa Buarque de Almeida, representante da Comissão de Defesa de Direitos Humanos da FFLCH e coordenadora da Rede Não Cala, elucidou sobre o conceito de assédio sexual e os pontos que o permeiam, como a sutileza de ações assediadoras naturalizadas na sociedade e as relações de hierarquia social. A professora utilizou o exemplo de uma pós-graduanda que entrou em contato em 2020 para relatar que estava sofrendo assédio por parte do orientador. “Este caso ajuda a explicitar os dilemas que a gente tem com relação à Universidade. A gente pode pensar que o assédio sexual se refere a um espectro de situações que podem ser mais ou menos violentas, um abuso, uma humilhação… Esse tipo de coisa”, contou ela.
Em seguida, Regina Facchini, membro do Serviço de Atenção à Violência Sexual (SAVS) da Universidade Estadual de Campinas, comentou sobre a atuação do órgão de apoio da Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DeDH) da Unicamp e traçou paralelos com as falas de Heloisa. Para ela, uma das principais ações do grupo foi a diferenciação entre queixas e denúncias, que possibilitou o mapeamento e elaboração de políticas de acolhimento mais assertivas e eficientes. “As pessoas têm que ter a liberdade de fazer uma queixa, que será mantida sob sigilo e serão feitos os encaminhamentos ideais por dentro das estruturas da Universidade”, disse. Regina também destacou a interseccionalidade entre gênero e sexualidade como fator principal nos casos de assédio e a importância da resposta institucional. “Se os assédios existem na instituição, ela tem que se comprometer a fazer algo. Se ela não faz, ela participa desta rede de produção”, afirmou.
Durante a rodada de perguntas dos espectadores, as docentes debateram sobre ações e possibilidades para se combater o assédio e auxiliar organizações não institucionais, como os grupos feministas de estudantes, para não ficarem sobrecarregados com a demanda. Questionada sobre o tempo para que haja avanços sociais, Regina refletiu que as políticas têm se fortalecido cada vez mais. “Será que está andando tão devagar assim? Eu vejo a existência da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP como revolucionária".
Teatro
A última atividade foi a apresentação da peça interativa Peça-jogo: Vulvar - No lugar dela, do grupo Cia de Teatro As Mal Amadas, Poética do Desmonte, com direção de Marta Baião. A apresentação mostrou histórias reais de agressões e violências contra mulheres, apresentadas por quatro atrizes da companhia.
A peça convidou o público para um jogo, onde decidiam os rumos das histórias apresentadas, sempre baseadas em decisões que as vítimas tomaram na vida real. A intenção foi colocar o público no lugar das vítimas e provocar uma reflexão.