Políticas urbanas camuflam desigualdades e modificam lideranças locais em favelas na América Latina

Pesquisa da FFLCH analisou como transformação positiva é utilizada pelos governos para destacar as cidades como influentes e crescentes no contexto global
Por
Isadora Batista
Data de Publicação
Foto: Thiago Firmino/Acervo pessoal
Foto: Thiago Firmino/Acervo pessoal

Para camuflar as desigualdades de classe, raça e território, o Estado usa as periferias para criar a ideia de transformação urbana da cidade. Em sua tese de doutorado, Apoena Dias Mano acompanhou situações em duas localidades com o objetivo de investigar como as desigualdades são produzidas e contestadas em territórios populares como as favelas. 

Apoena é formado em Turismo pela UFF e mestre em Ciências Sociais pela UERJ (Foto: Apoena Mano/ Acervo pessoal)
Apoena é formado em Turismo pela UFF
e mestre em Ciências Sociais pela UERJ (Foto: Apoena Mano/ Acervo pessoal)

O pesquisador reuniu experiências de uma viagem junto a Thiago Firmino, guia turístico e liderança comunitária na favela Santa Marta, no Rio de Janeiro. “Ao longo de quase dez anos de diálogo sobre políticas urbanas e a vida cotidiana na favela, construímos uma relação que culminou em um trabalho de campo conjunto em Medellín, na Colômbia”. 

Apoena observou a relação entre as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) das favelas do Rio de Janeiro e o chamado "urbanismo social” desenvolvido nas comunas de Medellín. O pesquisador explica: “Existe a narrativa de que Medellín agora é uma cidade que venceu a guerra. Medellín foi a cidade que teve o maior número de homicídios na América Latina nos anos 1990. E daí se tornou um caso global de uma cidade que se resolveu”. Ele e Thiago conversaram com diferentes pessoas durante a pesquisa de campo em Medellín e entenderam que essas transformações foram baseadas em muitas formas de violência, como a remoção de pessoas.

Essa política inspirou a criação do programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), no Rio de Janeiro, no contexto dos mega-eventos esportivos de 2014 e 2016. Naquele momento, com o projeto de “cidade olímpica”, o Rio de Janeiro buscou resolver os problemas que impediam seu desenvolvimento com a permanência contínua de policiais nas favelas para melhorar a segurança.

Entre as diferenças identificadas pelo pesquisador em Medellín e Rio de Janeiro, é comum ver, nas comunas, o exército armado andando entre as pessoas sem a aura de amedrontamento que persiste nas favelas do Rio de Janeiro. O pesquisador explica que a relação entre crime e Estado foi alterada: “Muitas pessoas foram removidas das suas casas por causa desses processos de transformação. A ideia de transformação exclusivamente positiva é muito problemática”.

 “As pessoas sabem que é problemático, mas, ao mesmo tempo, não causa medo. É problemático, mas de uma forma diferente do que foi no Rio de Janeiro”, comenta Apoena. (Foto: Apoena Mano/Acervo pessoal)
“As pessoas sabem que é problemático, mas, ao mesmo tempo, não causa medo. É problemático, mas de uma forma diferente do que foi no Rio de Janeiro”, comenta Apoena. (Foto: Apoena Mano/Acervo pessoal)

Turismo

Apoena afirma que a ideia de transformação positiva é utilizada pelos governos para destacar as cidades como influentes e crescentes no contexto global: “Chamou nossa atenção como o turismo é promovido como sustentação de formas de governo baseadas na militarização, no empreendedorismo popular e na construção de imaginários globais em torno de ideias de uma suposta ‘transformação’ urbana. No entanto, essas narrativas positivas são tensionadas por uma análise crítica ancorada no cotidiano dessas localidades: desigualdades persistem, agora reconfiguradas por essas novas estratégias urbanas".

Grafitti com peça publicitária na Comuna 13 (Foto: Apoena Mano/Acervo pessoal)
Grafitti com peça publicitária na Comuna 13 (Foto: Apoena Mano/Acervo pessoal)

Outro tema abordado na tese é o crescimento do turismo nas favelas. “A ideia de que uma localidade que ninguém podia entrar de uma hora pra outra se torna um lugar turístico, envolve a militarização, a produção imobiliária, formas de controle e vigilância nesses lugares”, afirma.

Apoena analisa que o turismo em favelas tem um papel central no surgimento de novas lideranças comunitárias, que crescem como resultado do atrito na implementação dessas políticas. “Existem lideranças comunitárias que estão emergindo nesses contextos que têm um conhecimento tácito do que são esses territórios, e é muito importante ser organizado e visibilizado em termos da produção de políticas urbanas do governo”.

“No que diz respeito às conclusões mais práticas, eu estabeleço um tipo de crítica às políticas urbanas, do Rio de Janeiro e de Medellín, que traz à tona que a experiência vivida dessas pessoas é muito diferente do que o governo sempre fala sobre o que está acontecendo nesses lugares”, finaliza.

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A tese de doutorado Do atrito à ação: uma etnografia móvel sobre desigualdades socioespaciais de Apoena Dias Mano e orientada por Bianca Freire-Medeiros, foi defendida em novembro de 2024 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e recebeu Menção Honrosa no Prêmio Tese Destaque USP.