Artigo premiado internacionalmente propõe nova origem teórica para mudança na sociologia da religião de Durkheim

Pesquisador da FFLCH afirma que Henri Hubert, e não William Robertson Smith, foi a principal influência na virada teórica de Durkheim sobre religião
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Gabriela César
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Montagem: Gabriela César/ Imagens: Unsplash e Wikipedia

Em julho de 2025, o sociólogo Romulo Lelis Lima, egresso da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, recebeu o prêmio Junior Theorist Award da Associação Internacional de Sociologia (ISA). Ele foi reconhecido por seu artigo The great transformation: The Durkheimian sociology of religion from Émile Durkheim to Henri Hubert, publicado na revista Anthropological Theory.

Segundo a associação, o prêmio reconhece artigos de destaque em teoria sociológica escritos por pesquisadores em início de carreira acadêmica. A iniciativa também busca incentivar o interesse e a participação de estudantes de pós-graduação, oferecendo ao vencedor um certificado de menção honrosa e o custeio da viagem para participar da conferência quadrienal do comitê de Teoria Sociológica da ISA.

O vencedor de 2025, Romulo, construiu toda sua trajetória acadêmica na FFLCH — da graduação em Ciências Sociais ao doutorado no Departamento de Sociologia. Atualmente, desenvolve pesquisa de pós-doutorado no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e já havia sido reconhecido anteriormente pela Associação Americana de Sociologia pelo mesmo artigo.

“O comitê considerou o artigo de Lelis verdadeiramente inovador, apesar de tratar sobre um assunto que tem estado no centro da atenção teórica por décadas: a tentativa de descobrir as origens da sociologia religiosa mais recente de Durkheim”, afirmou Paul Joosse, presidente do comitê de avaliação do ISA.

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Imagem: Acervo pessoal

A pesquisa

O artigo investigou as influências teóricas que levaram à mudança do pensamento sociológico religioso de Émile Durkheim - transição que, por muito tempo, foi entendida como contribuição das ideias do estudioso escocês William Robertson Smith. Para Lelis, entretanto, a principal influência nessa transformação foi do francês Henri Hubert.

A sociologia da religião de Durkheim possui duas fases de pensamento. A primeira foi especialmente influenciada pelo francês Henri de Saint-Simon, considerado o fundador do socialismo, além de outros pensadores iluministas de sua época. Neste momento inicial, Durkheim acreditava que a vida moderna iria afastar as pessoas de práticas religiosas, retirando do cotidiano a centralidade dos fenômenos sagrados. Isso porque os indivíduos modernos estariam mais preocupados com o trabalho e com suas aspirações individuais do que com a religião.

Já a segunda fase marca uma mudança em seu pensamento religioso, que é justamente o foco do artigo de Lelis. Nesse período, Durkheim passa a estudar as primeiras etnografias profissionais de povos indígenas da Oceania e percebe que a vida dessas populações gira em torno de uma tradição coletiva, sustentada por festivais e rituais periódicos. Segundo Lelis, esses festivais religiosos são momentos em que as pessoas se encontram, cantam, dançam, comem e constroem uma linguagem comum. Entretanto, ao invés dessas práticas sumirem com a vida moderna, Durkheim passa a entender que elas permanecem incorporadas às práticas sociais no mundo contemporâneo.

“Toda vez que você se encontra numa multidão, existe a necessidade de sincronizar os movimentos das pessoas para que uma ação conjunta seja possível. Por exemplo, se você está numa manifestação na Avenida Paulista, até os passos que você dá para andar precisam ser sincronizados com as pessoas — senão, todo mundo começa a se trombar. Ou seja, esses movimentos corporais em multidão têm de acontecer dentro de um certo ritmo. O ritmo é, então, essa categoria estética que conecta a dimensão festiva à dimensão política da vida coletiva, pois serve tanto para cantar e dançar quanto para agir numa manifestação”, explica Lelis, mostrando como a vida moderna absorve esse mecanismo coletivo de origem religiosa.

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Romulo ressalta que a premiação foi uma leitura honesta de seu trabalho e conseguiu acessar e reconhecer a contribuição que a pesquisa pode ter. Imagem: Acervo pessoal

A partir da análise cronológica de textos de Hubert e Durkheim, o pesquisador pôde analisar a variação das terminologias empregadas em suas teorias e os sentidos criados por elas. “As outras abordagens que tentavam explicar a mudança no pensamento de Durkheim prestavam pouca atenção ao léxico que os autores empregavam em seus textos. Isso acontecia porque os textos são antigos e, às vezes, as pessoas liam traduções de maneira desorganizada cronologicamente, então elas também possuíam dificuldade de entender o que vinha antes e o que vinha depois”, afirma.

Dessa forma, o pesquisador avaliou a semelhança e a recorrência de alguns conceitos nas teorias de Durkheim e Hubert, como a ideia de “drama” e o termo “sagrado”. Também encontrou evidências de abordagens semelhantes nos métodos de investigação dos dois sociólogos: ambos basearam suas teorias em pesquisas etnográficas com povos originários e publicaram seus trabalhos na mesma revista científica, L'Année sociologique.

Por outro lado, Smith desenvolveu ideias sociológicas a partir da tradição britânica, com forte influência da psicologia individual para seu embasamento - o oposto da abordagem de Durkheim, que focava nos aspectos coletivos dos fenômenos sociais. “O que meu artigo traz de novo é tentar buscar uma outra fonte teórica, que não Smith, para explicar a mudança no pensamento de Durkheim. Essa fonte reside nos trabalhos dos colegas que colaboraram com Durkheim no Année sociologique, como é o caso de Hubert”, destaca o pesquisador.

Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Lelis finaliza destacando que a pesquisa em ciências humanas não serve apenas para encontrar algo imediatamente aplicável, mas também para refletir sobre problemas que ainda não fazem parte do debate público. "É importante pensar nas questões impensadas, nos problemas que ainda não fazem parte do debate público. É esse tipo de exercício que leva a uma tomada de consciência das limitações impostas pelo presente e, eventualmente, ao advento do novo”, conclui.