Leonardo Belinelli, Pedro Luiz Lima e Karim Hayel*, os professores que organizaram o livro Fernando Henrique Cardoso: Modos de Ler, lançado na última quarta-feira, 19 de agosto, em mesa-redonda realizada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, escrevem na introdução da publicação: “Não constitui exagero nenhum afirmar que Fernando Henrique Cardoso é um dos intelectuais brasileiros mais relevantes e influentes da segunda metade do século 20, cujas formulações continuam a nos interpelar, especialmente em um contexto no qual diversos nacionalismos e autoritarismos teimam em nos assombrar no Brasil e mundo afora”.
O texto continua: “Contudo, ainda que sua relevância seja acentuada, há momento em que ela acaba por ser, paradoxalmente, obscurecida. Isso se deve, em boa medida, ao fato de ele ter se tornado não apenas um ator, mas, sobretudo, protagonista da vida política nacional. Talvez fosse inevitável que o senador, o constituinte, o ministro e o presidente eclipsassem de alguma forma o sociólogo no debate público. Mas, se há tantas razões para o ocasional empobrecimento do debate sobre sua obra intelectual, existem também tantas outras e, por vezes, as mesmas que impulsionam investidas interpretativas originais sobre os sentidos dos seus trabalhos acadêmicos”.
A publicação Fernando Henrique Cardoso: Modos de Ler é fruto de seminário de mesmo nome, realizado entre os dias 7 e 10 de junho de 2021, em plena pandemia de covid-19, no Rio de Janeiro, e transmitido pelo canal do YouTube da FFLCH-USP. Na época, o Jornal da USP publicou reportagem a respeito (leia aqui).
“O nosso interesse em organizar o seminário era promover reexames críticos das contribuições de Fernando Henrique Cardoso para as ciências sociais brasileiras”, lembram os organizadores. O seminário, depois de pronto o livro, foi repetido na FFLCH-USP em São Paulo, em 19 de agosto último.
Seguem alguns trechos da publicação.
Maria Arminda do Nascimento Arruda, socióloga e vice-reitora da USP, no prefácio do livro:
“A despeito das inclinações ocorridas no seu pensamento, principalmente pelo impacto da prática política, Fernando Henrique Cardoso conciliou de modo próprio, nem sempre apaziguado, as duas faces de sua biografia que, de resto, estavam pressupostas nas escolhas que se lhe apresentaram e para as quais possuía disposições, aliado a um cabedal intelectual formado nas relações que estabeleceu nas instituições nas quais atuou. Se o sociólogo crítico não é o político, dadas as suas lógicas diversas, esses dois mundos acabaram por se sobrepor no plano das vivências pessoais.”
José de Souza Martins, professor emérito do Departamento de Sociologia da USP, no capítulo “Fernando Henrique Cardoso e o Lugar das Ideias”:
“Fernando Henrique Cardoso deu a um de seus livros o significativo título de As Ideias e Seu Lugar (1980), indicação de seus cuidados metodológicos no diálogo com os principais autores de sua referência quanto à relação entre a realidade social e as ideias que fundamentam a investigação e a explicação sociológicas.”
E continua: “No meu modo de ver, essa é, em suas obras, uma questão central que as distingue das de outros também referenciais autores da sociologia brasileira. Nelas, seu intuito é o de salientar, para evitá-lo, o equívoco de na sociologia se utilizar aqui conceitos desenvolvidos para expressar e explicar realidades diferentes da nossa. Mesmo que as ideias fora do lugar possam ganhar sentido diverso da referência inicial no que ele define ‘como originalidade da cópia’”.
“A sociologia de Fernando Henrique Cardoso tem como uma de suas orientações a de viabilizar o reencontro atualizado do sociólogo com a historicidade da sociedade que analisa e explica. Especialmente em face de uma nova de busca de conhecimento sobre os fatores das transformações sociais e históricas, de que as sociedades, como atual e esta, demonstram ansiosamente carecer”, acrescenta Martins.
O sociólogo André Singer, no texto Revolução Burguesa Dependente e Modelo Político Brasileiro, analisando alguns cenários de um possível fim do regime militar instaurado em 1964:
“O terceiro cenário consistia em a oposição articular uma frente com o segmento interessado na volta do Estado de direito, de maneira que ampliasse aos poucos os espaços de liberdade em busca da redemocratização completa. Esta acabou por ser a estratégia adotada pela maioria dos oposicionistas, com a contribuição de Fernando Henrique no seu esclarecimento. Registre-se, porém, que a transição levou quinze anos para se completar, durante os quais a autocracia militar-burocrática imprimiu marcas, talvez, indeléveis na sociedade.”
Juarez Guimarães, professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, no texto Fernando Henrique Cardoso: “Desventuras de Um Liberal Cosmopolita na Era Neoliberal”:
“Foi decerto uma perspectiva inteligente e perspicaz, a dos propositores deste seminário, em concentrar a atenção na obra intelectual de Fernando Henrique Cardoso, propondo não uma separação, mas um discernimento entre autor e ator. Há já uma certa saturação da polêmica, desde o início mal formulada, das relações entre o cientista social e o político. Que parte de uma relação falseada entre as duas dimensões, ou seja, a de um continuum ou de uma contradição drástica entre o que se escreve e o que se faz, como se os planos de abstração do pensamento e as contingências da realidade fossem assimiláveis. Não o são, mas também não podem ser dissociados, ainda mais para um intelectual orgânico, para utilizar um conceito de Antonio Gramsci, criador de um partido histórico e de uma práxis de profundo impacto na história brasileira das últimas décadas.”
O livro, lançado pela Editora Hucitec, publica artigos de mais nove autores além dos já citados neste texto, que abarcam inúmeros outros enfoques da obra de Fernando Henrique Cardoso como sociólogo, abrangendo uma rica discussão sobre sua contribuição para os caminhos e descaminhos do desenvolvimento social e político brasileiros.
*Leonardo Belinelli é professor de Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; Pedro Luiz Lima é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Karim Helayel é doutor em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Texto original de Luiz Roberto Serrano, com arte de Gustavo Radaelli: https://jornal.usp.br/cultura/fernando-henrique-cardoso-modos-de-ler/