Dia do Orgulho LGBTQIAPN+: conheça pesquisas realizadas na FFLCH sobre a temática

Para marcar a data, foram destacados alguns estudos desenvolvidos nas áreas de Literatura e Antropologia

Por
Eliete Viana
Data de Publicação


28 de junho é celebrado o Dia do Orgulho LGBTQIAPN+, sigla para representar as lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis, queers, intersexuais, assexuais, pansexuais, não-binárias e todas as demais existências de gêneros e sexualidades.

Em todo o mundo, o dia marca a resistência na revolta de Stonewall Inn, que era um dos mais conhecidos bares LGBTs de Nova York, nos Estados Unidos, ocorrida em 1969. Após uma violenta abordagem policial neste bar, o público LGBTQIAPN+ que estava no local se insurgiu. Meses depois, surgiram as primeiras organizações do movimento de liberação LGBT nos Estados Unidos e, após um ano das revoltas, aconteceram as primeiras passeatas do orgulho gay naquele país, que deram origem às outras pelo mundo.

Para marcar a data, serão abordadas neste texto algumas pesquisas desenvolvidas e defendidas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP que envolvem a temática LGBTQIAPN+.
 

Dia do Orgulho LGBTQIAPN+ 2022
 Foto: Banco de imagens do Canva


Amor entre mulheres na literatura 

Na dissertação de mestrado A Bruta Flor do Querer: amor, performance e heteronormatividade na representação das personagens lésbicas, defendida em 2018, a autora Claudiana Gois dos Santos procurou estabelecer a comparação entre as personagens das obras O Corpo, de Clarice Lispector (1974), Eu sou uma Lésbica, de Cassandra Rios (1982) e Azul é a Cor mais Quente, de Julie Maroh (2013).

O intuito foi analisar a representação da afetividade lésbica e a incidência da heteronormatividade nestas personagens em ascensão na literatura das últimas décadas do século XX e início do século XXI, por meio da Crítica Literária Feminista e dos Estudos de Gênero, sobretudo com base nas obras de Judith Butler, Michel Foucault, Adrienne Rich e Monique Wittig.

Para a realização da dissertação que teve orientação do professor Emerson da Cruz Inácio, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, no Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa , Claudiana considerou as diferenças entre os três gêneros literários do corpus (conto, romance e novela gráfica) e seus respectivos suportes que apontam para uma popularização deste tipo de protagonismo, bem como sua recepção pela crítica e pelo público.

"O que me fez escolher esse tema foi um incômodo com uma espécie de fórmula presente em muitas obras com personagens lésbicas. Meu foco era a literatura, mas o incômodo era com uma produção artística em geral, que, salvo raras exceções, criava casais de mulheres sob o estereótipo de relações conflituosas, ou performances de gênero que obedeciam à hetronormatividade, como se fosse necessário que uma performasse o que entendemos como masculinidade e a outra, feminilidade. Uma heteronormatização das relações. (...) Por isso optei por estudar três obras bem diversas em tempo, gênero e espaço, na tentativa de observar se esses fenômenos estavam em escritoras canônicas e não canônicas, nos gêneros mais diversos e em períodos e países diversos", explica Claudiana sobre a motivação para a escolha do tema.

Claudiana constatou que, nas obras que ela estudou, algumas fórmulas permanecem. A pesquisadora notou "traços de heteronormatividade nas relações, ou seja, com a performance masculina ou feminina as relações se condicionam em lógicas de dominação, tal qual, estereótipos de relações heterossexuais em que uma pessoa detêm o poder subjetivo e muitas vezes financeiro sobre a outra, e isso parece ser uma lógica normalizada. Notei também que na obra de 1974 [O Corpo] e na de 2010 [Eu sou uma Lésbica] essa lógica de dominação era mais sutil e menos explorada de que na obra escrita na década de 1980, em que os estereótipos aparecem de modo mais intenso", explica a pesquisadora, que atualmente é doutoranda.

Na pesquisa de doutorado Amadoras e coisas amadas: Novas miradas sobre o amor na literatura do século XXI, que iniciou em 2020, pelo mesmo programa de pós-graduação, Claudiana continua estudando personagens lésbicas. Mas, agora pensando o discurso amoroso e a importância do amor como ferramenta política para as personagens lésbicas negras e não negras, a partir da obra de Amora, de Natália Borges Polesso, e Lundu, de Tatiana Nascimento.

"Penso que quando nos referimos à histórias de amor, na literatura, raramente pensamos em casais de mulheres (...) podemos imaginar algumas razões para que, entre tantos livros sobre o amor, exista tão poucas obras em que personagens lésbicas, predominantemente, enunciem esse discurso amoroso. Muitas vezes há amor, mas em relações conturbadas por razões internas ou externas como ciúme, enlouquecimento, crimes e conflitos com a sociedade por conta de homofobia", destaca Claudiana.

Segundo ela, essas questões retomam alguns fios que sobraram em sua dissertação, como quais personagens são considerados dignos de enunciar o discurso amoroso? Será que muda algo quando essas personagens femininas enunciam seu discurso para outras mulheres? Além disso, a pesquisa que ainda está em desenvolvimento, também procura abordar outros pontos: se o amor que aparece nas obras que estudou no mestrado ainda aparece nas obras mais recentes e se existem outros modelos surgindo.
 

Parada do Orgulho LGBT de São Paulo . Foto Cecília Bastos/Usp Imagens
Participantes da 20ª da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, realizada em 2016 - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens


A letra T 

A letra T da sigla LGBTQIAPN+ foi abordada em duas pesquisas de Bruno Cesar Barbosa, na dissertação de mestrado Nomes e diferenças: uma etnografia dos usos das categorias travesti e transexual, defendida em 2010, e na tese de doutorado Imaginando trans: saberes e ativismos em torno das regulações das transformações corporais do sexo, defendida em 2015. Ambas as pesquisas tiveram orientação do professor do Departamento de Antropologia Julio Assis Simões, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. 

Na dissertação, o objetivo foi discutir os usos das categorias travesti e transexual, referidas a identidades sexuais e de gênero, com base em observações e entrevistas realizadas entre 2008 e 2009 com participantes das reuniões denominadas Terças Trans, que ocorrem quinzenalmente no Centro de Referência em Diversidade (CRD) um equipamento social direcionado para LGBT na cidade de São Paulo.

Barbosa explorou duas frentes de análise. A primeira concentrou-se nos resultados de observação das interações e debates entre os participantes, durante as reuniões, especialmente no que diz respeito ao modo como se elaboram as diferenças entre travestis e transexuais. E a segunda concentrou-se nas narrativas de história de vida de três participantes, que refletem sobre suas vivências de sexualidade e gênero.

"Embora as convenções do discurso médico sejam referências centrais para a definição de corpos, subjetividades e identidades das pessoas pesquisadas, foi possível observar também uma variedade de reelaborações e deslocamentos de sentidos nas trajetórias biográficas e na produção das identidades, que têm relação direta com as situações sociais vividas no presente e com os variados contextos de interlocução. Procuro desenvolver o argumento de que travesti e transexual são categorias performativas, e que tal performatividade não se esgota apenas em enunciados de gênero e sexualidade, mas também podem ser expressas por meio de articulações contingentes que remetem a diferenças de classe, cor/raça e geração", diz o pesquisador no resumo do trabalho.

A pesquisa foi ampliada no doutorado, através do trabalho de campo e de análise bibliográfica e documental durante os anos de 2010 a 2014, cujo objetivo foi compreender a produção das categorias travesti, transexual, trans e transgênero a partir das relações entre saberes e ativismos. Ele tomou como fio condutor os debates em torno das regulações das transformações corporais do sexo, argumentando que estas discussões são uma importante porta de entrada para o entendimento das relações entre movimentos sociais e especialistas, assim como da circulação transnacional e possíveis particularidades construídas acerca dessas categorias no Brasil.

Na análise dos especialistas, ele apresentou tensões entre os saberes biomédicos e os saberes sociais. E, na análise dos ativistas, mostrou como o uso do termo trans é polissêmico, sobretudo se pensarmos suas possíveis articulações com as categorias de travesti, transexual, homens, mulheres e pessoas.

"Discuti o surgimento de um culturalismo travesti como uma forma de politizar certa noção de cultura como núcleo da identidade travesti. Este culturalismo travesti produz a possibilidade de se constituir uma identidade com orgulho, conjuntamente com noções de nação brasileira, constituindo-se como uma contraposição e interlocução ao que chamei de transglobalização, um processo de espraiamento global das categorias transexual, trans e transgênero", ressalta Barbosa.
 

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Manifestação na 20ª da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, realizada em 2016. Em 19/06/2022, foi realizada a 26ª edição. O evento teve início em 1997, com cerca de 2 mil participantes e, desde então, o evento já conquistou um público de 4 milhões de pessoas e entrou para o Guinness Book como o maior do mundo, de acordo com a Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo (APOLGBT-SP) - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens 


Engajamento do movimento LGBT

Em [ALERTA TEXTÃO] Estratégias de engajamento do movimento LGBT de São Paulo em espaços de interação on-line e off-line (2015-2016), dissertação de mestrado defendida em 2017, que também foi orientada pelo professor Simões e realizada no mesmo Programa, Lucas Bulgarelli Ferreira investigou as estratégias de atuação política desempenhadas por meio do engajamento de militantes LGBT da cidade de São Paulo. 

Como o título demonstra, a pesquisa foi realizada em espaços de interação online e offline, por um lado, o desempenho e a sentidos atribuídos quanto à efetividade das dinâmicas de negociação com gestores públicos e representantes do Estado e, por outro, a proliferação de uma atuação concentrada nas mídias sociais e na internet.

"Demonstro como estes modos de atuações políticas concentradas tanto mecanismos de negociação e como na atuação em redes sociais estão atravessados por pontos de tensão, ao passo que permitem acessar a produção das diferenças constitutivas do movimento LGBT. Ao explorar os manejos de diferentes ferramentas, repertórios e disputas entre representantes da sociedade civil organizada no Conselho Municipal LGBT de São Paulo e de ciberativistas trans no Facebook, passo a identificar formatos de atuação política com especificidades e mecanismos próprios, mas que se aproximam ou, em alguns casos, se confundem quanto à natureza da reivindicação de suas demandas políticas", explica Ferreira.

Na sua pesquisa de doutorado em andamento Uma investigação sobre sentidos e significados decorrentes da circulação da noção de ideologia de gênero no Brasil, iniciada em 2018, Ferreira continua a estudar a temática LGBTQIAPN+. Mas, o interesse pela questão vem desde à época da graduação, quando cursou Direito na Faculdade de Direito da USP e fez o Trabalho de Conclusão de Curso intitulado A interpretação jurídica da transexualidade e a luta das travestis e transexuais pelo reconhecimento.

Importância 

Em uma época de negacionismo científico e retrocesso sobre temas ligados aos direitos humanos, estudos sobre gênero e outras temáticas relacionadas à diversidade são muito criticados e questionados se devem ser pesquisados em universidades públicas, com financiamento público. A pesquisadora Claudiana, opina a respeito. 

"Considero que a universidade pública é o espaço em que o livre pensamento deve circular. Sobretudo pelo amparo que o rigor científico nos dá. Chamo de rigor científico o suporte de orientação, a leitura e avaliação dos pares, as discussões teóricas, tudo isso nos ampara para sustentar estudos que socialmente ainda rompem barreiras. É assim com os estudos sobre aborto, sobre racismo, e sobre tantos outros temas sobre os quais circulam tabus e inverdades no senso comum. Falar sobre subjetividade em personagens lésbicas é uma partícula  de uma luta muito maior pelo direito à existência plena de mulheres lésbicas. Claro que isso implica em ter que, muitas vezes, legitimar e relegitimar o objeto de estudo. Ou ainda, temer o cerceamento do projeto em processos de financiamento como bolsas de estudo. No entanto, penso que são justamente nestes espaços de poder, como são as universidades públicas, que precisamos levantar estes temas, com toda a chancela, respeito e legitimidade que o ensino das instituições públicas conferem a pesquisas importantes como estas".