Nascimento de Florestan Fernandes

Autor de obras como "Apontamentos sobre a teoria do autoritarismo" e "A integração do negro na sociedade de classes", os livros de Florestan permitem a politização da questão racial

Por
Alice Elias
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Nascimento de Florestan Fernandes
Segundo Gustavo Mesquita, "Florestan é autor de obra vasta e multifacetada, percorrendo dos problemas de relações étnico-raciais ao desenvolvimento de países economicamente dependentes" (Arte: Alice Elias)

Florestan Fernandes nasceu em 22 de julho de 1920, na cidade de São Paulo. Foi um sociólogo e político brasileiro, autor de obras como Brancos e negros em São Paulo, Apontamentos sobre a teoria do autoritarismo e A integração do negro na sociedade de classes. Dentre suas inúmeras contribuições, seus estudos sobre questões étnico-raciais são tidos como referências para propostas que visam combater o racismo.

Conversamos com Gustavo Mesquita, doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e autor da pesquisa Florestan Fernandes e a luta contra o racismo no Brasil: da ditadura à democracia (1978-2002), sobre o legado do sociólogo, cujas contribuições tiveram fortes repercussões políticas.

Serviço de Comunicação Social: Você poderia comentar brevemente sobre quem foi Florestan Fernandes?

Gustavo Mesquita: Florestan Fernandes foi um sociólogo e professor da Universidade de São Paulo entre os anos de 1940 e 1960. Como sociólogo, publicou uma obra extensa e sobre temas variados, mas com a preocupação comum de analisar elementos integrantes e processos de formação da sociedade brasileira. A organização de povos indígenas e as relações raciais entre brancos e negros são temas relevantes em seus primeiros livros, tais como A organização social dos Tupinambá e Brancos e negros em São Paulo, os quais combinam um olhar histórico com etnografia para analisar como grupos sociais diferentes interagiram e participaram da formação da sociedade.

Esses livros foram escritos quando ele era apenas um jovem rapaz, de mais ou menos 28 anos, e que buscava completar sua formação em Ciências Sociais. Para isso, cursou mestrado na Escola Livre de Sociologia e Política e doutorado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, num tempo em que a pós-graduação brasileira era restritiva e selecionava apenas os melhores candidatos saídos das elites intelectuais do País.

Graças à boa recepção de seus primeiros trabalhos, Florestan foi logo convidado a dar aulas de Sociologia na mesma instituição em que se formou. Como professor da USP, se dedicou ao ensino de disciplinas de introdução ao pensamento sociológico, bem como ao treinamento sistemático de novos sociólogos e cientistas sociais para o domínio da pesquisa social em bases que acreditava serem científicas. Foi com esse objetivo, o de tornar as Ciências Sociais uma realidade no Brasil, que ele levou adiante o projeto original dos fundadores da USP de construção de uma Escola Paulista de Sociologia, de modo que alcançasse a liderança nos debates mais candentes da sociedade e da política brasileira. Como procuro mostrar em minha tese de doutorado, os livros de Florestan, em sua fase interacionista e funcionalista, estão marcados pelo objetivo de intervenção em problemas sociais através da Escola Paulista de Sociologia.

Entretanto, depois do golpe militar de 1964 e de sua aposentadoria compulsória na USP, Florestan mudou a maneira pela qual entendia o papel fundamental da Sociologia. Não seria mais a intervenção racional nos problemas sociais, de forma que a ciência contribuísse para o progresso social com crescente democratização da sociedade e da política. A Sociologia passa a ser vista como ciência responsável pela análise do método político capaz de realizar o que ele chamava de revolução contra a ordem. Em outras palavras, já professor titular e aposentado, Florestan fez uma opção pelo marxismo e pelo socialismo, cada vez mais leninista, com os conflitos da Guerra Fria e a implantação da ditadura militar no Brasil. Expressões fortes dessa segunda fase do sociólogo são seus livros A revolução burguesa no Brasil e Apontamentos sobre a teoria do autoritarismo.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Sociologia? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Gustavo Mesquita: Não é tarefa fácil dimensionar suas contribuições para a Sociologia, pois Florestan é autor de obra vasta e multifacetada, percorrendo dos problemas de relações étnico-raciais ao desenvolvimento de países economicamente dependentes, sem falar na parte claramente marxista e socialista de sua obra. Além disso, outra parte de sua obra diz respeito ao estabelecimento da Sociologia como ciência empírica da vida social em meio às condições acadêmicas brasileiras, ou melhor, procura defini-la a partir de regras e procedimentos de análise considerados mais racionais e adequados para a compreensão da sociedade brasileira. Portanto, podemos dizer que há mais de uma contribuição de Florestan para a constituição da Sociologia no Brasil, e suas contribuições geralmente tiveram fortes repercussões políticas.

Em primeiro lugar, eu destacaria o impacto de seus livros Brancos e negros em São Paulo e A integração do negro na sociedade de classes nos debates políticos sobre a questão racial dos anos 1970 em diante. Nesta questão, a contribuição de Florestan é visível pelas formas que seus livros permitem a politização da questão racial. Há uma contribuição acadêmica para os estudos étnico-raciais que gera repercussões políticas posteriores. Seu diagnóstico da exclusão política e social do negro inspira ações de crítica, protesto, reivindicações e lutas por mudança desta situação. Não só organizações do movimento negro como políticos profissionais, tanto negros quanto brancos, tomam os livros de Florestan como uma referência para a discussão política do racismo, e mesmo para a construção de propostas parlamentares e projetos de lei visando combater o racismo e formular políticas públicas de inclusão social. Em síntese, eu diria que sua contribuição para o campo acadêmico das relações raciais teve e ainda tem repercussões no tema do racismo e do antirracismo, e a luta por políticas afirmativas, que se definiu de forma mais clara nas últimas décadas graças à ação do movimento negro, é uma expressão visível dessa repercussão em termos políticos. Entender como tais relações se deram é um desafio e tanto para estudiosos de sua obra. Esse é o tema da pesquisa de pós-doutorado que estou desenvolvendo no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, intitulada Florestan Fernandes e a luta contra o racismo no Brasil: da ditadura à democracia (1978-2002), com financiamento da FAPESP.


Gustavo Mesquita é pesquisador vinculado ao International Postdoctoral Program do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e doutor em História Social pela FFLCH USP. No Cebrap, desenvolve a pesquisa intitulada Florestan Fernandes e a luta contra o racismo no Brasil: da ditadura à democracia (1978-2002), com financiamento da Fapesp e supervisão da professora Márcia Lima.

Para quem se interessar sobre o tema, Gustavo Mesquita é autor de diversos livros e artigos, entre os quais o livro Guerra Fria e Brasil: para a agenda de integração do negro na sociedade de classes (Alameda Editorial, 2020, em coautoria com Elizabeth Cancelli e Wanderson Chaves), e o artigo Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil, presente na revista Estudos Históricos: Vol. 32, n. 67, pp. 429-449, 2019.