Na FFLCH também tem carnaval

Conheça algumas pesquisas realizadas na Faculdade sobre essa festa popular

Por
Eliete Viana
Data de Publicação

 

máscara de carnaval

“Moro num país tropical, abençoado por Deus
E bonito por natureza (mas que beleza)
Em fevereiro (em fevereiro)
Tem carnaval (tem carnaval)...”

Trecho da letra da música País Tropical, de Jorge Bem Jor. 


Por causa da continuação da pandemia do novo coronavírus (Covid-19) e o isolamento social, a certeza de que no mês de fevereiro – ou em março, dependendo da data do domingo de Páscoa – o carnaval será realizado não vai ser concretizada neste ano de 2021, como é cantada na música País Tropical, de Jorge Bem Jor. 

Para evitar a aglomeração, uma característica das comemorações de carnaval, as festas realizadas na data foram cancelas ou suspensas – em alguns lugares ainda há a ideia de fazer a comemoração em outra data ainda neste ano. No Estado de São Paulo, o governador João Doria suspendeu o ponto facultativo no período, já que a data não é um feriado nacional, e no serviço público e em muitas empresas será expediente normal.

Para matar a saudade desta festa popular que já faz parte da cultura e da identidade do Brasil, reunimos algumas pesquisas realizadas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP sobre o assunto. 

A importância do carnaval

“O Carnaval é o festejo, mais do que o festejo que participamos ou assistimos no feriado, é uma rede significativa de trabalho, saberes, técnica e convivência que acontece nos 365 dias do ano. (...) Nesse momento atípico, tenho dito que aguardamos para poder desaguar as cinzas que, por hora, não viveremos em 2021. A quarta de cinzas para o sambista não representa o fim do Carnaval, mas o momento em que temos foco total em iniciar os trabalhos do próximo ano, em um ciclo que tem começo, mas não tem fim”, comenta Marília Belmonte, sambista, foliã, avaliadora do carnaval de bairros de São Paulo e pesquisadora sobre cultura popular, história do samba e do carnaval, entre outros temas, no Programa de Pós-Graduação em História Social da FFLCH.

Segundo Marília, a importância do carnaval vai além da festa. “Historicamente, o Carnaval é uma manifestação cultural, mas também política e por isso, houve e ainda hoje perdura a tentativa de um processo de controle e disciplinarização dos corpos festejantes, que perpassa pela elaboração de um discurso deslegitimador, que aponta o festejo como alienado e alienante, tentando afastar a ideia de criação, inovação, improviso e resistência a partir das frestas na ordem cotidiana e do direito em ocupar e transformar a paisagem da cidade, articulando a ideia de pertencimento e identificação com vínculos afetivos, que contribui diretamente para a identidade cultural”.

História do carnaval

Em 2008, dois trabalhos foram apresentados mostrando um pouco da história do carnaval. A dissertação de mestrado Da festa da representação a representação da festa: apontamentos sobre a transformação do tempo-espaço carnavalesco trata de entender a história da festa carnavalesca segundo três de seus momentos principais: a festa como centralidade de conteúdos precários, limitados e locais – como foram os carnavais medievais; depois entra em foco a centralidade urbano-festiva rica, complexa e eventualmente descontrolada dos carnavais do século XIX e começo do século XX; e, por fim, há o surgimento do pseudocentro carnavalesco: sob o peso das abstrações mercantis que transformam os modos de vida, a festa deteriora-se. 

A autoria é de Rodrigo Linhares, feita pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana, com orientação da professora Amelia Luisa Damiani. 

O outro trabalho que resgata a história da festa é a tese de doutorado Caricaturas carnavalescas: carnaval e humor no Rio de Janeiro através da ótica das revistas ilustradas Fon-Fon! e Careta (1908-1921), realizada por Fabiana Lopes da Cunha, com orientação da professora Maria Inez Machado Borges Pinto, pelo Programa de Pós-Graduação em História Social.

Na tese, o carnaval e o humor no Rio de Janeiro são abordados através de textos e ilustrações divulgadas pelas duas publicações que estão no título do trabalho. Por este material é possível perceber a importância do carnaval na vida destes nomes da caricatura e da literatura e de jornalistas – que ficaram no anonimato por conta de suas crônicas e artigos não conterem assinaturas – e também resgatar e reconstruir não apenas a história do carnaval, mas também compreender o contexto do período, os problemas políticos, a moda, as inovações e mudanças na vida da população carioca. 

Para entender mais sobre a história do carnaval é importante conhecer um pouco da velha guarda das escolas de samba, cujos integrantes possuem muita vivência. O trabalho O samba em pessoa: narrativas das Velhas Guardas da Portela e do Império Serrano trata das narrativas de experiências pessoais de velhos sambistas das escolas de samba Portela e Império Serrano, que estão localizadas no bairro de Madureira, considerado o berço do samba, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro.

As histórias de vida de sambistas e pastoras, produzidas adotando os procedimentos da história oral, expõem temas polêmicos afeitos à tradição e à modernização dos desfiles. A partir das vivências e das visões dessas pessoas sobre a evolução das escolas de samba, procura-se entender o papel dos grupos aos quais pertencem, localizados simbolicamente entre as raízes e os desafios da atualização das agremiações carnavalescas.

A dissertação de mestrado foi realizada por Fernanda Paiva Guimarães, com orientação do professor Jose Carlos Sebe Bom Meihy, no Programa de Pós-Graduação em História Social, em 2011. 

Na FFLCH, há uma pesquisa de mestrado em andamento, desenvolvida pelo mesmo programa acima, que também valoriza essa experiência dos mais antigos: Quem faz do samba seu viver? História oral de vida de mulheres da ala das baianas e da velha guarda de escolas paulistanas. Neste trabalho, que tem orientação do professor Marcos Antonio da Silva, a pesquisadora Marilia Belmonte escuta as vozes femininas da Ala das Baianas e da Velha Guarda de escolas de samba tradicionais de São Paulo: Camisa Verde e Branco, Nenê da Vila Matilde, Unidos da Peruche e Vai-Vai).

​​​​​​​Marília conta como essas vozes são importantes para suas agremiações e ao mesmo tempo são importante para a história de vida delas. “Tenho me debruçado há alguns anos a entender os festejos do Carnaval a partir do olhar de quem constrói cotidianamente a festa, especificamente mulheres da ala das baianas e da velha guarda de escolas de samba paulistanas. Viver o Carnaval é para essas mulheres parte da história de suas famílias, parte central de suas histórias e especialmente, de suas redes de sociabilidade. Em uma sociedade em que o idoso é muitas vezes visto como um cidadão improdutivo, o Carnaval subverte a ordem, centralizando e colocando como protagonistas tais figuras, uma escola não pode participar de eventos e desfilar sem suas baianas, assim como é um elemento distintivo apresentar seus baluartes, representantes vivos da história, das glórias e insucessos de cada entidade carnavalesca”. 
 

carnaval antigo
Primeiro folguedo negro criado especialmente para desfilar no carnaval paulistano. O cordão do Camisa Verde e Branco, criado por Dionísio Barbosa. Aqui vemos “Camponeses do Egito” - Foto: USP Imagens

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Escolas de samba em São Paulo 

Mas, como o carnaval não só acontece no Rio de Janeiro, a cidade de São Paulo também tem destaque nesta história.

A dissertação de mestrado Fantasias negociadas. Políticas do carnaval paulistano na virada do século XX tem autoria de Clara de Assunção Azevedo, orientação do professor Vagner Goncalves da Silva, e foi realizada pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, no ano de 2011.

Este trabalho tem por objetivo analisar as relações entre o carnaval, enquanto iniciativa popular das escolas de samba, e o poder público que o promove e financia, sobretudo nas três últimas décadas do século passado. 

Para tal, identifica, inicialmente, os principais agentes que tem participado da organização oficial do festejo: do lado das escolas, os líderes sambistas das grandes agremiações e seus vários órgãos de representação (Liga, Superliga etc.), e do lado do estado, seus órgãos públicos (principalmente a SPTuris) e funcionários. Observando alguns casos concretos de negociações entre esses sujeitos (que envolvem desde a definição de políticas públicas formais ao uso dos espaços na cidade, como a rua, quadras, barracões e o sambódromo), o trabalho analisa de que forma um conjunto de noções é posto em debate associando o carnaval ao folclore, à cultura, ao turismo, ao negócio, ao espetáculo, ao lazer etc. 

O trabalho Da oficialização ao sambódromo: um estudo sobre as escolas de samba de São Paulo (1968-1996) aborda um período parecido, mas sob outro olhar. Pois, a dissertação de mestrado foi defendida pelo Programa de Pós-Graduação em História Social, com autoria de Bruno Sanches Baronetti, com orientação do professor Mauricio Cardoso, em 2014.

Esta dissertação apresenta as principais transformações institucionais, estéticas e musicais das escolas de samba da cidade de São Paulo entre 1968 e 1996. O corte cronológico inicial se justifica a partir da oficialização do concurso de cordões carnavalescos e das escolas de samba pela prefeitura da cidade, em 1968, que introduziu novas regras que modificaram a estrutura dos desfiles, contribuindo para a extinção dos cordões nos bairros da cidade. 

O corte final é justificado pelas transformações ocorridas na década de 1990, quando os desfiles deixam o espaço público da rua e passam a acontecer em um espaço construído exclusivamente para esse fim, o sambódromo. A pesquisa histórica se dá reconstruindo a atuação das duas principais federações carnavalescas da cidade de São Paulo: a União das Escolas de Samba Paulistanas (UESP), fundada em 1973 com o objetivo de reunir as escolas de samba e blocos carnavalescos e representá-las junto ao poder público, e a Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo (Liga), fundada em 1986 a partir de membros descontentes com a atuação da UESP e que representa as escolas de samba do Grupo Especial e Grupo de Acesso.
 

carro alegórico Vai-Vai
Carro alegórico do Vai-Vai no desfile de 2020, pelo grupo de Acesso em São Paulo - Foto: Ardilhes Moreira/G1


Vai-Vai

E para falar sobre escola de samba em São Paulo é necessário também lembrar do Grêmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Vai-Vai, cuja agremiação é a maior campeã do carnaval de São Paulo, com nove títulos como cordão, 15 do grupo especial e 10 vice-campeonatos.

A dissertação de mestrado O Cotidiano de uma Escola de Samba Paulistana: O Caso do Vai-Vai foi realizada por Reinaldo da Silva Soares, com orientação do professor João Baptista Borges Pereira, pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, em 1999. 

O objetivo do trabalho foi analisar o processo de produção do ciclo carnavalesco do Grêmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Vai-Vai. O cotidiano da agremiação foi retratado através da descrição etnográfica das principais atividades organizadas pelos sambistas: ensaios, festas e concursos de samba enredo. 

Durante o processo, o Vai-Vai revelou-se como um espaço de sociabilidade cujo um dos principais objetivos é a valorização da cultura negra perante a sociedade global. A história da agremiação relativiza o processo de oficialização do carnaval enquanto conquista da classe dominante, demonstrando como os negros conseguiram ampliar a dimensão da sua manifestação cultural, utilizando-se de estratégias de resistência inteligente.

20 anos depois, outra dissertação foi defendida pelo mesmo programa sobre o Vai-Vai, com autoria de Eduardo Guilherme Moraes Ferreira Sierra e orientação da professora Rose Satiko Gitirana Hikiji: Guerreiros da Avenida: música e competição na escola de samba.

O trabalho procura compreender o fazer musical de uma escola de samba através da lógica da competição que permeia suas atividades. Baseado em uma etnografia de dois anos na escola de samba Vai-Vai a maior campeã da história do carnaval paulista que, em 2019, enfrentou seu primeiro rebaixamento – e no ano de 2020 foi campeã do grupo de acesso e voltou para o grupo especial –, o autor reflete sobre a forma como a busca pelo título interfere nas práticas musicais da agremiação. 

A pesquisa se estabelece a partir de uma aproximação teórica entre a antropologia da performance e a antropologia da música e se divide em três capítulos: O Desfile, O Samba e A Comunidade. Questões recorrentes em estudos sobre as escolas de samba, como a oposição entre a tradição e a modernidade e a capacidade ou incapacidade da festa de promover uma inversão da ordem social são atualizadas neste trabalho ao serem observadas sob o viés da competição.

A relação da cidade de São Paulo com o carnaval e o samba foram retratadas em outros trabalhos do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana. Em duas dissertações de mestrado: O espaço do carnaval na periferia da cidade de São Paulo e em O enredo do carnaval nos enredos da cidade: dinâmica territorial das Escolas de Samba em São Paulo; e uma tese de doutorado: Territórios negros em trânsito: Penha de França - sociabilidades e redes negras na São Paulo do pós-abolição.

Sobre a mesma ligação, podemos destacar ainda duas dissertações, uma em Antropologia Social: Cartografias cruzadas: os caminhos do samba e os traçados do Plano de Avenidas em São Paulo (1938-1945) e outra em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades: Territórios negros em trânsito: Penha de França - sociabilidades e redes negras na São Paulo do pós-abolição

 

Bloco Afro Ilú Obá De Min
Bloco Afro Ilú Obá De Min - Foto: Luciana Cury


Bloco 

Nem todo bloco necessariamente passa a ser escola de samba depois, como aconteceu na história. Um exemplo é o Ilú Obá De Min, uma associação paulistana, sem fins lucrativos, que tem como base o trabalho com as culturas de matriz africana, afro-brasileira e a mulher, fundada em novembro de 2004, e que sai em cortejo desde 2005, tendo sua bateria formada exclusivamente por mulheres. 

Em Os tambores das 'yabás': raça, sexualidade, gênero e cultura no Bloco Afro Ilú Obá De Min, foi investigada as maneiras pelas quais as componentes do Bloco Afro Ilú Obá De Min: Educação, Cultura e Arte operacionalizam e articulam os marcadores sociais da diferença raça, gênero e sexualidade no sentido de entender como, a partir desta articulação, o grupo construiu um diálogo e agenciou políticas culturais e os discursos sobre cultura e identidade negra na cidade de São Paulo.

No trabalho, foram percorridos quatro pontos fundamentais: a história do carnaval no Brasil e o lugar ocupado pelo Ilú Obá no carnaval paulistano; os processos que deram origem ao bloco, sua composição artística e o perfil das integrantes; as dinâmicas das relações de raça, gênero e sexualidade no interior do bloco; o trânsito entre o Bloco Afro Ilú Obá De Min e o seu Ponto de Cultura Ilú Oná: Caminhos do Tambor. 

A dissertação de mestrado foi feita por Valéria Alves de Souza, com orientação da professora Laura Moutinho da Silva, defendida em 2014, pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social.

Literatura e carnaval 

A tese de doutorado Samba, suor e cerveja: a poética do mascaramento no Carnaval modernista foi realizada por Victor Roberto da Cruz Palomo, com orientação do professor Emerson da Cruz Inacio, pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, no ano de 2019. 

Apesar de falar também da história do carnaval, o foco do trabalho são os textos modernistas, pois a pesquisa sobre as figurações do carnaval fundamenta uma das estratégias textuais dos escritores no primeiro tempo modernista. A adoção da festividade momesca, por parte dessa geração, ocorre após a leitura dos poemas coligidos por Manuel Bandeira no volume Carnaval, em 1919, o que motiva significativas enunciações em poemas e manifestos literários de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e outros escritores e artistas iconográficos coetâneos. Essa visada nacionalista crítica assegura-se numa permeabilidade com as manifestações culturais desvinculadas das abordagens academicistas, entre as quais estão os registros do cancioneiro popular, poesia cantada em que as figurações carnavalescas são profusas.

Ritual indígena

O carnaval pode ter outro significado de acordo com a cultura. Na tese de doutorado Carnaval: alegria dos imortais. Ritual, pessoa e cosmologia entre os Chiquitano no Brasil, o objetivo é compreender, por meio de um exame etnográfico, o lugar que o ritual carnaval ocupa na vida sociocosmológica do povo indígena Chiquitano que vive na fronteira do Brasil com a Bolívia.

Carnaval é o nome da festa e da entidade sobrenatural que desperta acionada pelo som dos instrumentos musicais, do local onde foi enterrado, a fim de pôr em relação seres humanos e não humanos por meio da Alegria. A festa é realizada na mesma data do carnaval ocidental, contudo há um calendário ritual próprio que marca o fim e o início do ciclo anual.

O trabalho foi feito por Verone Cristina da Silva, com orientação da professora Marta Rosa Amoroso, pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, defendida em 2015.

Lampião no carnaval

A história de Lampião poderia muito bem ser enredo de uma escola de samba do Rio de Janeiro ou de São Paulo, por exemplo. Mas, a dissertação de mestrado Sentidos da memória: a experiência do cangaço em Paulo Afonso - BA mostra que essa história é contada pelo grupo Os Cangaceiros de Paulo Afonso e não por passistas, que experimentam a vida e a morte de Lampião durante o carnaval.

Neste período, cangaceiros e volantes, devidamente trajados, saem pelas ruas da cidade de Paulo Afonso, na Bahia, combatendo entre si com punhais de madeira e espingardas munidas com balas de festim, cantando e dançando músicas de composição própria, terminando a festa com a morte de Lampião na terça-feira de carnaval. Esta dissertação se debruça sobre o modo como os Cangaceiros de Paulo Afonso memorizam o cangaço, através da experimentação de uma narrativa do fenômeno histórico.

A autoria da dissertação é de Isabela Mouradian Amatucci, com orientação do professor Miguel Soares Palmeira e da coorientação da professora Ana Claudia Duarte Rocha Marques, realizada pelo Programa de Pós-Graduação em História Social, em 2019.​​​​​

 

O Vai-Vai: escola sempre deve ser tratada no Masculino O Vai-Vai, em referência ao Grêmio Recreativo, evolução do Cordão, de acordo com o site da agremiação.