Nascimento de Guy de Maupassant

Guy de Maupassant é um dos grandes nomes da literatura francesa, autor de clássicos como Bola de Sebo (1880), Uma vida (1883) e Bel-Ami (1885)

Por
Pedro Fuini
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Guy de Maupassant
De acordo com Angela das Neves, "a obra de Maupassant aborda e critica, de maneira irônica, os costumes da sociedade burguesa francesa do século 19, num momento em que a cultura francófona era difundida pelo Ocidente como modelar". (Arte: Pedro Fuini)

Romancista, cronista e contista realista, Guy de Maupassant nasceu em 5 de agosto de 1850, no norte da França. De família burguesa, era um típico bon-vivant, alguém que leva uma vida afeita aos prazeres. Era amigo de Gustave Flaubert (autor de Madame Bovary, de 1856), além de frequentar o círculo intelectual de Émile Zola (autor de Germinal, de 1885), dois grandes escritores franceses. Sua obra critica de maneira irônica os costumes da sociedade burguesa francesa do século 19, quando a cultura francófona era difundida pelo Ocidente como modelar, conforme explica Angela das Neves, doutora em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Ela pesquisou a recepção criativa da obra de Maupassant no Brasil.

De acordo com Neves, algumas das obras mais importantes de Maupassant são a novela Boule de Suif [Bola de Sebo], de 1880; os romances Une vie [Uma vida] (1883) e Bel-Ami (1885); os contos Contes de la bécasse (1883), Contes du jour et de la nuit (1885), Le Horla (1887) e L'Inutile beauté (1890). “[São obras que] apresentam uma análise de camadas da burguesia francesa, por meio de uma linguagem simples, clara e precisa, que foge ao detalhismo naturalista do período”, explica. Ela também acrescenta que esse estilo colocou o escritor entre os principais prosadores franceses da segunda metade do século 19. 

Em sua tese de doutorado, Angela das Neves procurou evidenciar que diversos contistas brasileiros no início do século 20 foram influenciados pelo estilo de Maupassant. “O conto maupassantiano é com frequência tratado em análises teóricas sobre a estrutura do conto literário, e o seu narrador é largamente conhecido dos ficcionistas brasileiros do século 20, sobretudo no que se refere à sua qualidade enquanto contador de histórias”, afirma.

Confira na íntegra a entrevista que Angela das Neves nos concedeu.

 

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Guy de Maupassant? Quais suas principais obras?

Angela das Neves: Henry-René-Albert-Guy de Maupassant nasceu no castelo de Miromesnil, em 5 de agosto de 1850, na cidade de Tourville-sur-Arques, na região da Normandia, no norte da França. Sua origem é predominantemente burguesa, ainda que tenha entre seus ancestrais alguns de extração nobre, o que se faz ver em seu nome. Iniciou sua carreira como poeta e dramaturgo, mas destacou-se como romancista, cronista e contista realista. Foi amigo de Gustave Flaubert, com quem trocou larga correspondência literária, e frequentou o círculo de escritores naturalistas promovido por Émile Zola em sua casa, as célebres soirées de Médan, grupo em que lançou sua primeira novela de sucesso, Boule de Suif [Bola de Sebo], em 1880. Desse mesmo ano é o seu primeiro e único livro de poesia, Des vers [Versos], cujos poemas foram proibidos por "atentado à moral e aos bons costumes", e teve polêmica semelhante à sofrida por Flaubert e sua Madame Bovary (1856). 

Ao contrário de seu mestre Flaubert (que faleceu no ano da estreia do discípulo, em 1880), Guy de Maupassant, além de exercer as funções de um homem de letras que rapidamente viu o sucesso, com hábitos de um bon-vivant, frequentava a vida boêmia parisiense e levava uma vida esportiva e afeita aos prazeres, nadando, remando e velejando pelo rio Sena. Aos dezenove anos, abandonou o curso de Direito em Paris para servir em Rouen como soldado no Exército francês durante a Guerra Franco-Prussiana, em 1870 e 1871, assunto sobre o qual versam alguns de seus contos e novelas, entre eles Boule de Suif. Mais tarde, foi funcionário público no Ministério da Marinha, função que abandonou a partir do momento em que passou a viver de literatura, escrevendo para jornais como cronista, crítico e contista e publicando suas obras em livro. 

Nos anos 1880, frequentou as sessões do neurologista francês Charcot e assistiu, portanto, às primeiras experiências que levariam ao nascimento da psicanálise, no princípio do século seguinte com Freud, abordagem por meio da qual muitos de seus contos podem ser lidos. Sua produção literária estende-se até o começo dos anos 1890, quando o autor convalesce e diminui sua atuação, até sua morte em decorrência de sífilis, em 6 de julho de 1893, aos 42 anos. 

Entre seus principais romances, estão Une vie [Uma vida] (1883), Bel-Ami (1885), Pierre et Jean (1887), Fort comme la mort [Forte como a morte] (1889) e seus principais livros de contos, traduzidos no Brasil, são La Maison Tellier [A pensão Tellier] (1881), Mademoiselle Fifi (1882), Le Horla [O Horla] (1887), entre outros. Suas crônicas e sua correspondência estão dispersas em coletâneas e antologias, ainda hoje pouco traduzidas para o português; entre elas, destacam-se Sur l'eau [Vogando] (1888) e La Vie errante [A vida errante] (1890), crônicas de viagem, e a correspondência com Gustave Flaubert, editada na França em 1993, organizada por Yvan Leclerc. 

 

Serviço de Comunicação Social: Quais as características da obra do escritor?

Angela das Neves: A obra de Maupassant aborda e critica, de maneira irônica, os costumes da sociedade burguesa francesa do século 19, num momento em que a cultura francófona era difundida pelo Ocidente como modelar. Romances como Bel-Ami (1885) e Une vie (1883), adaptados para o cinema na França recentemente e divulgados em traduções no Brasil e no mundo todo, bem como mais de uma dezena de coletâneas de contos, entre as quais destaco Contes de la bécasse (1883), Contes du jour et de la nuit (1885), Le Horla (1887), L'Inutile beauté (1890), apresentam uma análise de camadas da burguesia francesa, por meio de uma linguagem simples, clara e precisa, que foge ao detalhismo naturalista do período. Fazendo uso de um olhar observador, filosófico e artístico, ao modo dos impressionistas, e que ele bem teorizou em seu conhecido prefácio a Pierre et Jean, "Le Roman" (1887), o estilo de Guy de Maupassant o coloca entre os principais prosadores franceses da segunda metade do século 19. Seja pelo universo fantástico, que ocupa uma parcela representativa de seus mais de trezentos contos e novelas, seja pelo retrato social do campo e da cidade que então se impunha como modelo (Paris), o conto maupassantiano é com frequência tratado em análises teóricas sobre a estrutura do conto literário, e o seu narrador é largamente conhecido dos ficcionistas brasileiros do século 20, sobretudo no que se refere à sua qualidade enquanto contador de histórias.  

 

Serviço de Comunicação Social: Em sua tese, você analisa a recepção criativa de Guy de Maupassant no Brasil. Você pode nos contar um pouco sobre sua pesquisa?

Angela das Neves: Este estudo começou ainda na fase de iniciação científica na FFLCH, sob orientação da Profa. Dra. Gloria Carneiro do Amaral, quando analisei o conto de Monteiro Lobato intitulado "Meu conto de Maupassant", publicado em Urupês (1918). No mestrado (A volta do Horla, 2007), ampliei esta pesquisa por meio do levantamento e da análise de crônicas e críticas sobre Guy de Maupassant e sua obra em alguns jornais de destaque do Rio de Janeiro e de São Paulo, e em manuais e histórias da Literatura Brasileira. A partir daí, entrei em contato com a obra de diversos escritores brasileiros que leram a obra de Guy de Maupassant e escreveram a partir dele, fazendo uso de técnicas narrativas e de temas recorrentes, sobretudo em sua contística. Esse foi o objeto principal de minha tese, Contistas à Maupassant (2012), em que analiso contos de Lúcio de Mendonça (1854-1909), Medeiros e Albuquerque (1867-1934), Simões Lopes Neto (1865-1916), Monteiro Lobato (1882-1948), Lima Barreto (1881-1922), Viriato Correia (1884-1967), Gastão Cruls (1888-1959) e Ribeiro Couto (1898-1963). Esses autores demonstram em suas obras, e por vezes em entrevistas, cartas e textos críticos, sua dívida para com Maupassant, que estava no horizonte literário brasileiro no fim do século 19 e na primeira metade do século 20, quando diversas obras suas foram largamente lidas, citadas e traduzidas por aqui. Procurei evidenciar, em minhas análises, as marcas da presença do contista francês nessas releituras do conto realista, pré-modernista e neorrealista, sobretudo numa estrutura narrativa que valoriza o reconto e o papel do contador de histórias na literatura escrita. Mais do que temas recorrentes, como a vertente do fantástico, a loucura, a guerra, os contos regionais, os contos de sedução (que foram tema de uma peça brasileira, encenada pelo Grupo Tapa, nos anos 2000), esses contistas leram uma forma de conto em Maupassant, que advém de longa tradição do conto literário, de que o escritor normando foi um bom divulgador entre nós e a qual também procuraram praticar com grande talento. Ainda que alguns deles sejam pouco conhecidos fora do âmbito regional, são todos eles escritores reconhecidos de seu tempo, cujas obras merecem ser revisitadas e republicadas, para que se tenha uma percepção mais ampla de suas produções e de sua atualidade. No caminho inverso, fica também um convite a revisitar a obra de Guy de Maupassant, que permanece lida e continua tendo muito a dizer nos dias de hoje.       

Angela das Neves é pós-doutora em Literatura Brasileira pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, atualmente desenvolve pesquisa sobre a correspondência literária de Lygia Fagundes Telles. Possui mestrado e doutorado em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês, bacharelado e licenciatura em português e francês pela FFLCH. Suas pesquisas de pós-graduação sobre a obra de Guy de Maupassant estão disponíveis na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.