Lei Maria da Penha é sancionada

Lei de enfrentamento à violência contra a mulher foi resultado de décadas de pressão de movimentos feministas e da sociedade civil

Por
Pedro Fuini
Data de Publicação

Lei Maria da Penha
A lei nº 11.340 ficou conhecida como Lei Maria da Penha, homenageando a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de agressões do ex-marido por 23 anos, chegando a ficar paraplégica após levar um tiro. (Arte: Pedro Fuini)

Após décadas de pressão de movimentos feministas e da sociedade civil, em 7 de agosto de 2006 foi sancionada no Brasil uma lei para coibir a violência contra a mulher. A lei nº 11.340 ficou conhecida como Lei Maria da Penha, homenageando a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes. Durante 23 anos ela foi vítima de agressões do ex-marido, ficando paraplégica após levar um tiro. Levado a julgamento, seu agressor conseguiu se livrar das penas. 

O Brasil então foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH-OEA), que condenou o Estado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres. “Esse processo de pressão pública culminou na produção da lei, reconhecida como uma das leis mais completas no campo”, diz Isabela Venturoza, mestra em Antropologia Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. 

Antes da Lei Maria da Penha, a violência doméstica e familiar contra a mulher era considerada um crime de menor potencial ofensivo. Vigorava na sociedade a ideia de que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Para Venturoza, dentre os avanços trazidos pela lei, está seu potencial educativo em reconhecer, para além da violência física, outros tipos de violência (verbal, psicológica e patrimonial) não facilmente identificadas. ”Com o crescimento da discussão nas redes sociais e em outros espaços, as mulheres (e também os homens, em algum sentido) sabem mais sobre o que pode ou não ser violência, assim como o que é ou não crime”, afirma.

A pesquisadora, entretanto, reconhece que os equipamentos e ferramentas introduzidos pela lei não garantem que as mulheres consigam acessar seus direitos. “Não temos DDMs [Delegacias de Defesa da Mulher], casas-abrigo ou serviços de reeducação de homens que façam jus ao tamanho do problema”.

No mesmo sentido, Marilda de Oliveira Lemos, doutora em Sociologia pela FFLCH, reconhece a falta de políticas públicas que auxiliem no enfrentamento à violência contra mulheres. Ela cita, por exemplo, a falta de casas-abrigo para mulheres em situação de violência e posteriores políticas de desabrigamento dessas mulheres acolhidas; e a falta de centros de referência especializados para atender, acompanhar e fortalecer as mulheres nessas condições. Além disso, Lemos apontou a falta de capacitação continuada dos atores que lidam com a Lei Maria da Penha, tema de sua tese de doutorado. 

O trabalho mostrou que a falta de uma capacitação específica para compreender e interpretar a lei compromete sua aplicabilidade e dificulta o alcance de seu objetivo. “Ao longo da pesquisa minha suspeita foi se confirmando. Não só delegados, mas também delegadas apresentaram uma visão machista e preconceituosa com referência às mulheres que sofrem violência, e às mulheres em geral; uma mentalidade equivocada acerca da concepção de violência contra mulheres; e uma desconfiança da Lei Maria da Penha”, afirma. 

Isabela Venturoza e Marilda Lemos nos concederam entrevistas sobre a Lei Maria da Penha, nas quais também explicaram sobre as pesquisas que desenvolveram na FFLCH acerca do tema. Confira:

 

Entrevista com Isabela Venturoza

 

Serviço de Comunicação Social: Por que houve a necessidade de se aprovar uma lei específica para a violência contra a mulher?

Isabela Venturoza: A Lei Maria da Penha é resultado de uma luta de décadas dos movimentos de mulheres, feministas e da sociedade civil. Essa lei surge como resultado da luta frente a uma história de omissão do Brasil que tratava a violência contra as mulheres como um crime de menor potencial ofensivo, isto é, menos grave. Por anos, o Brasil naturalizou a violência contra as mulheres e manteve as questões da esfera privada como questões de menor importância. Diante disso, o Brasil foi denunciado internacionalmente na Corte Interamericana por omissão e esse processo de pressão pública culminou na produção da lei, reconhecida como uma das leis mais completas no campo. Um outro problema surge quando pensamos na sua implementação e real execução, ainda longe da ideal.

 

Serviço de Comunicação Social: Passados 16 anos da sanção da lei Maria da Penha, houve avanços significativos no combate à violência contra a mulher?

Isabela Venturoza: Certamente os avanços existem, principalmente porque tais violências passaram a ser mais reconhecidas socialmente. A Lei Maria da Penha, inclusive, é uma das leis mais conhecidas no Brasil. Passamos de um contexto no qual "em briga de marido e mulher nem o Estado metia a colher" para a promulgação de uma lei que é uma das mais conhecidas no país. Com ela, também foi trazido um potencial educativo em termos de não reconhecer apenas violências físicas, mas também verbais, psicológicas, patrimoniais etc., não facilmente identificadas anteriormente. Hoje, ainda há dificuldades nesse campo, mas com certeza, com o crescimento da discussão nas redes sociais e em outros espaços, as mulheres (e também os homens, em algum sentido) sabem mais sobre o que pode ou não ser violência, assim como o que é ou não crime. No entanto, a estrutura de equipamentos e de ferramentas que a lei traz para garantir a proteção das mulheres ainda passa longe do ideal. Não temos DDMs, casas-abrigo ou serviços de reeducação de homens que façam jus ao tamanho do problema. Na verdade, o que percebemos é bem o contrário: as mulheres ainda encontram muita dificuldade em acessar os seus direitos.

 

Serviço de Comunicação Social: Em sua dissertação de mestrado, você se propõe a analisar a violência de gênero na ótica dos denunciados/agressores. Quais reflexões você obteve em sua pesquisa?

Isabela Venturoza: A perspectiva do trabalho era preencher uma lacuna no campo dos estudos de violência contra a mulher, bastante centrados na análise das redes de proteção (DDMS, Juizados Especializados etc.) e na narrativa das mulheres denunciantes. O intuito era explorar as narrativas dos homens participantes de um serviço de responsabilização e reflexão para homens denunciados por crimes de violência contra a mulher na busca por uma compreensão alargada do fenômeno da violência de gênero, afinal os dados demonstram que eles são protagonistas das mesmas. No entanto, o que percebemos é uma ausência de um olhar para os homens e suas narrativas de modo a compreender como eles se envolvem em situações de violência e que modelos de masculinidade são operacionalizados quando os mesmos praticam as violências, não só contra as mulheres, mas também contra outros homens e demais sujeitos. 

No estudo, explorei também aspectos teóricos-metodológicos sobre os desafios de ser percebida como mulher em campo pesquisando (com) homens e masculinidades. O gênero, essa categoria analítica, recortava não apenas meus interlocutores, mas a mim mesma enquanto fazia a pesquisa, determinando a maneira como seria tratada pelos homens em campo e os resultados de pesquisa.

Além disso, identifiquei no contexto pesquisado, o dos serviços de responsabilização e reflexão, também conhecidos como "grupos reflexivos", um espaço inédito para os homens tanto em termos do aprendizado do falar (não comum em outras situações, principalmente sobre boa parte dos temas trabalhados) quanto em termos da possibilidade do desenvolvimento de um repertório crítico para refletir sobre as situações do cotidiano e sobre si mesmos e de fato se posicionar de outras formas. Uma proposta socioeducativa no modelo descrito não é comum e se destaca ao não seguir por lógicas meramente punitivistas e muitas vezes distantes de transformações reais nas relações de gênero.

Por fim, também identifiquei um desafio em termos da criação e manutenção desses espaços (e de outros parecidos) que se relaciona ao que descrevi como "a disputa pela categoria da vítima". Os homens nunca falaram e começam a falar... E, no processo de reflexão, passam por um momento no qual sua narrativa segue um "modelo queixoso", no qual se descrevem como vítimas do machismo (que também incide sobre eles), da Lei Maria da Penha (que só existe para as mulheres), da juíza (que não os ouve) e dos operadores da lei (que às vezes os humilham), das mulheres (que teriam "armado" para eles ou que "também precisam mudar") e por aí vai. O problema que surge daí é que alguns homens passam a se vitimizar mais do que se responsabilizar. Ter cuidado com isso é uma das tarefas dos facilitadores desses espaços e também de outros homens e pessoas envolvidas em outras propostas de intervenção que busquem desconstruir masculinidades calcadas em ideais nocivos. A "responsabilização" como um dos objetivos centrais permanece sendo um dos maiores desafios nessa empreitada. 

 

Entrevista com Marilda Lemos

 

Serviço de Comunicação Social: Em sua tese de doutorado, em 2010, você fez um estudo sobre a interpretação e aplicabilidade da Lei Maria da Penha em Delegacias de Defesa da Mulher. Você pode nos contar mais sobre sua pesquisa?

Marilda Lemos: Sim. Minha pesquisa começou exatamente no ano em que a Lei Maria da Penha (LMP) foi promulgada, 2006. Minha inquietação científica era se essa lei seria, de fato, aplicada, como seria aplicada, se haveria uma capacitação específica para os agentes policiais para “além da letra da lei”, uma vez que haviam relatos [tema tratado em sua dissertação de mestrado]  acerca da omissão da Polícia Civil na aplicação da Lei 9.099, lei anterior à LMP, que julgava os crimes de violência contra mulheres. Minha suspeita era que se não houvesse uma capacitação específica para compreender e interpretar ao menos o artigo 5º da LMP, a aplicabilidade da lei ficaria comprometida e não alcançaria seu objetivo. Ao longo da pesquisa minha suspeita foi se confirmando. Não só delegados, mas também delegadas apresentaram uma visão machista e preconceituosa com referência às mulheres que sofrem violência, e às mulheres em geral; uma mentalidade equivocada acerca da concepção de violência contra mulheres; e uma desconfiança da LMP.

 

Serviço de Comunicação Social: Você enxerga falhas na lei Maria da Penha? Acredita que poderiam ser feitas revisões para aprimorar o combate à violência contra a mulher?

Marilda Lemos: Não sei se poderíamos afirmar que haja falhas na LMP, mas faltam pontos a serem esclarecidos. Por exemplo:

Art. 32. O Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, poderá prever recursos para a criação e manutenção da equipe de atendimento multidisciplinar, nos termos da Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar, promover, no limite das respectivas competências:
V – centros de educação e de reabilitação para os agressores.

A questão é que enquanto o verbo utilizado for PODER e não DEVER, o enfrentamento à LMP fica “manco”. Cuida-se da mulher, mas enquanto o homem autor da violência não for obrigado a passar por um processo reflexivo sobre sua conduta, ele continuará sendo um autor de violência em potencial, com a mesma mulher ou outras.

 

Serviço de Comunicação Social: Passados 16 anos da sanção da lei, você vê quais avanços e retrocessos no combate à violência contra a mulher?

Marilda Lemos: A LMP é muito boa, segundo especialistas, porém faltam políticas públicas como auxílio para o enfrentamento à violência contra mulheres. Faltam casas-abrigo para acolher as mulheres que se encontram em risco de morte; faltam políticas de DESABRIGAMENTO [tema tratado em sua dissertação de mestrado] para as mulheres que são acolhidas nas casas-abrigo; faltam centros de referência especializados para atender, acompanhar, fortalecer as mulheres que se encontram em situação de violência; falta capacitação continuada para os/as atores sociais que trabalham com essa temática. Enfim, a lei é boa, mas não suficiente para que as mulheres brasileiras deixem de ser desrespeitadas, agredidas e assassinadas.

Isabela Venturoza de Oliveira é doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestra em Antropologia Social pela FFLCH e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Integra como pesquisadora o Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS) da USP, o Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (Unicamp) e o Núcleo de Religiões no Mundo Contemporâneo (Cebrap). Colabora, desde 2014, como parte da equipe técnica da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, na qual co-coordena seu Núcleo de Masculinidades (NUM) e facilita grupos reflexivos com homens denunciados por crimes de violência contra as mulheres. Atua principalmente com pesquisa, ensino e extensão nos seguintes temas: relações de gênero, masculinidades, violência, interseccionalidade e feminismos.

Marilda de Oliveira Lemos é doutora em Sociologia pela FFLCH e mestre em Administração pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul - USCS. É professora e foi coordenadora pedagógica da Faculdade Paulista de Serviço Social de São Caetano do Sul no período 2009-2012. Atua principalmente nas seguintes áreas: políticas públicas para mulheres, relações sociais de gênero, violência contra as mulheres, abrigamento para mulheres em situação de risco de morte, sexualidade e políticas públicas transversais.