Nascimento de Millôr Fernandes

Humorista, poeta, desenhista, cronista, dramaturgo, tradutor, chargista e jornalista, Millôr exerceu todas essas atividades com destaque

Por
Alice Elias
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Nascimento de Millôr Fernandes
Segundo Tiago Ferro, "Ao nos fazer rir das grandes formulações da história brasileira, [Millôr] nos coloca diante da pura negatividade, da inviabilidade do país no concerto do que um dia já se chamou de civilização". (Arte: Alice Elias)

 

O humorista Millôr Fernandes nasceu no dia 16 de agosto de 1923, no Rio de Janeiro. Foi também poeta, desenhista, cronista, dramaturgo, tradutor, chargista e jornalista, reconhecido pela crítica pela forma como exerceu tais atividades.

Contribuiu para importantes veículos da imprensa brasileira e, inclusive, foi um dos fundadores do “O Pasquim”, frequentemente se utilizando do humor para driblar a censura. Através de frases como “O patriotismo é o último refúgio do canalha. No Brasil, é o primeiro” (paráfrase da frase de Samuel Johnson) ou mesmo “O Brasil tem um enorme passado pela frente”, Millôr provocou o riso de seu público ao satirizar aspectos estruturais da história brasileira, evidenciando seu ceticismo diante dos rumos que o país seguia.

Conversamos com Tiago Ferro, mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sobre o legado do humorista que “colocou em dúvida as versões oficiais dos fatos e acontecimentos”. Confira:

 

Serviço de Comunicação Social:  Você poderia comentar brevemente sobre quem foi Millôr Fernandes?

Tiago Ferro: Definir Millôr não é uma tarefa muito simples. Listemos as atividades nas quais ele mais se destacou: desenhista, cronista, poeta, dramaturgo, tradutor, chargista e jornalista. Diga-se de passagem, exerceu todas elas com destaque, tendo alcançado reconhecimento da crítica. Contribuiu para alguns dos principais veículos da imprensa brasileira, como “O Cruzeiro” e “Veja”, e foi um dos fundadores  de uma das iniciativas mais importantes da imprensa alternativa brasileira: “O Pasquim”.

No entanto, o que dá sentido geral para toda essa variada produção, de equilíbrio difícil entre o outsider e o estabelecido, é o humor.
Millôr foi antes de tudo um humorista.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Tiago Ferro: Se o humor é a forma que quebra os sentidos bem estabelecidos por outras formas narrativas, a contribuição de Millôr foi colocar em dúvida as versões oficiais dos fatos e acontecimentos. Em um país em que a história sempre se desenvolveu à revelia do grosso da população, o humor, como estudado pelo professor Elias Saliba, funcionou como defesa popular contra o motor da história que passava por cima das vidas comuns. Nesse sentido é possível pensar Millôr na categoria, hoje extinta, dos grandes intérpretes brasileiros; um intérprete muito peculiar, que ao nos fazer rir das grandes formulações da história brasileira, nos coloca diante da pura negatividade, da inviabilidade do país no concerto do que um dia já se chamou de civilização. Daí a frase profética “O Brasil tem um enorme passado pela frente”.

Serviço de Comunicação Social: Em sua dissertação de mestrado, você estudou a produção humorística do escritor entre os anos 1968 e 1982, em meio à ditadura militar. Quais elementos caracterizaram sua escrita nesse período?

Tiago Ferro: Apesar de ter se firmado como um grande frasista, e as redes sociais contribuíram enormemente para isso, me parece que não convém separar as produções escrita e gráfica. Recentemente recebeu mostra individual no IMS e teve sua obra como artista gráfico interpretada pelo crítico Agnaldo Farias na abertura da Flip de 2014.

Nas páginas de “Veja” fica evidente esse encontro entre traço e texto, e a ousadia daquela página dupla oferecida semanalmente aos leitores ainda é espantosa. Vale notar como o humor era utilizado para driblar a censura. Esse é um dos pontos importantes da produção no período. Espanta que tanta crítica tenha passado durante a fase mais pesada da censura.

Nem sempre funcionava... Voltando no tempo, quando Millôr era colaborador importante de “O Cruzeiro”, a pressão moralista dos leitores indignados pela sua A verdadeira história do Paraíso fez com que ele fosse demitido da revista. Se pensarmos no jornalismo como carreira, é curioso notar que o humorista pode ser entendido como alguém que se auto sabota o tempo todo; como artista, aquele que é impossível de ser enquadrado, daí as demissões sumárias e polêmicas.

Ou seja, resumindo, a produção de Millôr não se separa do desenvolvimento da imprensa brasileira, e oferece um excelente caminho para iluminar as concessões dos veículos ao poder. Não foram poucas.

 


Tiago Ferro é mestre e doutorando em História Social pela FFLCH USP. Editor, escritor e crítico, escreve regularmente artigos sobre crítica cultural para revistas. Em 2019, ganhou o Prêmio Jabuti categoria melhor romance e o Prêmio São Paulo de Literatura melhor romance de estreia, pelo livro O pai da menina morta.

Para quem se interessar sobre o tema, sua dissertação de mestrado está disponível em A moral da história: a produção humorística de Millôr Fernandes na revista Veja (1968-1982).