Nascimento de Ferreira Gullar

O maranhense foi um dos principais poetas contemporâneos brasileiros, com uma escrita marcada pela criatividade e experimentação da linguagem

Por
Pedro Fuini
Data de Publicação

Ferreira Gullar
“Não há na poesia de Gullar vagas para rótulos nem definições que possam limitar o seu fazer poético, que não tem hora para começar nem para terminar, dispensando fórmulas e diretrizes para vir ao mundo”, afirma Helba Carvalho.

Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira, foi um dos principais poetas contemporâneos brasileiros. Nascido em 10 de setembro de 1930 em São Luís (MA), vinha de uma família de classe média baixa, sem qualquer tradição literária. Foi também crítico de arte, tradutor, dramaturgo e ensaísta, tendo colaborado na escrita de algumas novelas da Rede Globo. Foi membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e em 2010 recebeu o Prêmio Camões.

Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís
do Maranhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos
e pais dentro de um enigma?
mas que importa um nome
debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre
cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante de
garfos e facas e pratos de louças que se quebraram já
Trecho de Poema Sujo

Helba Carvalho, doutora em Filologia e Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, destaca que a trajetória e a poesia de Gullar refletem as mudanças históricas pelas quais o Brasil passou na segunda metade do século 20. 

Se no início dos anos 1950 a poesia de Gullar era marcada por um formalismo excessivo, influenciada pelos movimentos artísticos concretista e neoconcretista (do qual foi um dos precursores), nas décadas seguintes fica evidente um compromisso político revolucionário do autor, que se envolveu com o Centro Popular de Cultura (CPC) e foi um adversário da Ditadura Militar (1964-1985). 

Entre as principais obras do poeta estão Na Vertigem do Dia (1980), Barulhos (1987) e Muitas Vozes (1999). Porém, foi durante seu exílio em Buenos Aires que Gullar escreveu Poema Sujo (1976), considerado sua obra prima. “Seus mais de dois mil versos se destacam pela criatividade, experimentação da linguagem, memórias de infância e intensidade de sentimentos que se tornam, também, um testemunho e um desabafo contra a ditadura militar”, comenta Carvalho.

Para a pesquisadora, Gullar deixou como legado um fazer poético que conseguiu desprendê-lo de qualquer estrutura. “Não há na poesia de Gullar vagas para rótulos nem definições que possam limitar o seu fazer poético, que não tem hora para começar nem para terminar, dispensando fórmulas e diretrizes para vir ao mundo”. Ela ainda destaca ser a liberdade um dos signos vitais da poesia do maranhense, que “não se rende a camisas-de-força ideológicas ou ao bom-mocismo, nem à cultura de fisiologia e compadrio tão marcantes no cenário político e cultural do Brasil”. Confira na íntegra a entrevista com Helba Carvalho, que pesquisou em seu doutorado a presença de poemas metalinguísticos (metapoemas) na obra de Ferreira Gullar.

 

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Ferreira Gullar?

Helba Carvalho: Nascido na cidade de São Luís do Maranhão em 10 de setembro de 1930, “numa porta-e-janela da rua dos Prazeres”, Gullar, ao contrário de muitos dos seus contemporâneos, foi de uma família sem qualquer tradição literária. Seu pai, Newton Ferreira, comerciante, e sua mãe, Alzira Ribeiro Goulart, dona de casa, emprestariam pouco mais que seus sobrenomes na construção do poeta Gullar, em cuja casa “não havia livro algum, só a Revista X-9”. Seu primeiro contato com a poesia viria quase que acidentalmente, por meio da Gramática Expositiva de Carlos Eduardo Pereira, depois de ter sido contemplado com uma nota noventa e cinco em redação, que o mergulharia em uma obsessão pela norma gramatical que duraria dois anos. É lá que o menino Gullar descobriria Camões, Bocage e os então em voga parnasianos Olavo Bilac e Raimundo Correia, que moldariam os seus primeiros passos na poesia. Sua obra mais conhecida, o Poema Sujo, é tão impregnada de reminiscências e da atmosfera da cidade quanto da agonia e da dor do poeta político exilado, que sentia a mão fria da ditadura se aproximando e calando a voz daqueles que se  opunham, enquanto adivinhava que a sua hora poderia não tardar a chegar. Foi um dos principais poetas contemporâneos brasileiros, além de crítico de arte, tradutor, dramaturgo e ensaísta. Foi imortal da Academia Brasileira de Letras e recebeu vários prêmios, entre eles, o Camões, em 2010. Também colaborou com a escrita de várias novelas da Rede Globo, como Araponga, Dona Flor e Seus Dois Maridos e Irmãos Coragem. Faleceu em 4 de dezembro de 2016.

 

Serviço de Comunicação Social: Quais as características e principais obras que ele escreveu?

Helba Carvalho: A trajetória de Ferreira Gullar e as diferentes vozes que residem em sua poesia remetem ao turbilhão de mudanças na história do Brasil da segunda metade do século 20. Ouve-se nela a voz do jovem apaixonado pelas causas políticas, mergulhado em angústia e piedade pelo povo que o fez poeta. Ouve-se o cronista maduro desiludido com o destino político de seu país e com a morte de um sonho de justiça social. Ouve-se o ser humano que habita um corpo, imerso na miríade de sensações, emoções, cheiros, prazeres e dissabores que o impactam no cotidiano. E há ainda, sob todas as outras vozes, o poeta aguerrido em sua missão primordial, de busca pela representação da realidade, seja a prosaica e particular, seja a universalista e metafísica. Essa trajetória revela muitas contradições, pois sua poesia muda de estilo radicalmente: da experimentação da linguagem dos anos 50, com o livro A Luta Corporal (1954) e a experiência concreta e neoconcreta ao compromisso político revolucionário com poemas de cordel João Boa-Morte, Quem Matou Aparecida e Peleja de Zé Moleza com o Tio Sam. Mas suas principais obras poéticas são Poema Sujo (1976), Na vertigem do dia (1980), Barulhos (1987) e Muitas vozes (1999). Poema Sujo (1976) foi considerado a sua obra prima. Escrito durante o exílio em Buenos Aires, os seus mais de dois mil versos se destacam pela criatividade, experimentação da linguagem, memórias de infância e intensidade de sentimentos que se tornam, também, um testemunho e um desabafo contra a ditadura militar.

 

Serviço de Comunicação Social: Qual o legado deixado por Gullar?

Helba Carvalho: Acredito que o principal legado deixado por Ferreira Gullar, especialmente em sua poesia, foi a forma lúcida, mas contraditória, de sua consciência do fazer poético, que  fez com que o poeta saísse de todas as estruturas, desde o formalismo excessivo da fase concreta e neoconcreta nos anos 50 até o populismo extremo vivido em seu envolvimento com o Centro Popular de Cultura (CPC) nos anos 60. Gullar conseguiu ultrapassar o tempo ao manter certo grau de objetividade, de consciência, de que essas estruturas (formalismo, poesia engajada) vão, aos poucos, revelar suas falências. A liberdade, que é um dos signos vitais da poesia de Gullar de qualquer fase, não se rende a camisas-de-força ideológicas ou ao bom-mocismo, nem à cultura de fisiologia e compadrio tão marcantes no cenário político e cultural do Brasil. Não há na poesia de Gullar vagas para rótulos nem definições que possam limitar o seu fazer poético, que não tem hora para começar nem para terminar, dispensando fórmulas e diretrizes para vir ao mundo.

 

Serviço de Comunicação Social: Por fim, você pode nos contar um pouco sobre a pesquisa que desenvolveu no doutorado acerca do escritor?

Helba Carvalho: Em minhas pesquisas de doutorado, defendido em 2016, analisei, na trajetória do poeta Ferreira Gullar, a presença constante e cada vez mais frequente de metapoemas que sistematizam uma noção de poesia na qual se destaca, entre os diferentes ethé presentes, um ethos professoral, com discurso marcadamente filosófico: o enunciador argumenta, explica, critica e ensina o seu fazer poético, ou seja, o que é a poesia para o poeta. A partir da análise de poemas metalinguísticos presentes em toda a obra poética de Gullar, foi possível concluir que, na medida em que o militante marxista “morre” na poesia gullariana, ganham mais voz o crítico de arte e o filósofo Ferreira Gullar. Nesse sentido, o ethos professoral se faz presente e permite refletir sobre o tom didático dos poemas, na forma como ensinam sobre o gênero e o fazer poético.


Helba Carvalho possui doutorado em Filologia e Língua Portuguesa, com ênfase em estudos aplicados à Literatura Brasileira (2016), mestrado em Literatura Brasileira (2002), graduação e licenciatura em Letras (1998 e 1999, respectivamente), todos pela FFLCH, e graduação em Comunicação Social (Propaganda e Marketing) pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (1996). Sua tese de doutorado, Metapoemas de Ferreira Gullar e o ensino do fazer poético, está disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.