Nascimento de Paulo Freire

Patrono da Educação Brasileira, o educador se destacou por defender uma educação crítica e popular

Por
Pedro Fuini
Data de Publicação

Paulo Freire
Freire foi defensor de "uma educação que forme pessoas autônomas, capazes de tomarem decisões por conta própria, e que seja inclusiva e respeitosa, assegurando o direito de todos a seu acesso e permanência", de acordo com Taís Araújo. (Arte: Pedro Fuini)

O educador e filósofo brasileiro Paulo Freire nasceu em 19 de setembro de 1921, em Recife (PE). O Patrono da Educação Brasileira, título conferido pela Lei nº 12.612/2012, notabilizou-se por defender uma educação crítica, voltada para a liberdade e a transformação social. Sua influência não se restringiu à Pedagogia, estendendo-se às Ciências Humanas em geral, sendo ele o terceiro autor mais citado do mundo nessa área, de acordo com a London School of Economics.

Freire chamou atenção ao coordenar um projeto que alfabetizou 300 adultos em 40 horas, na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, em janeiro de 1963. Tendo alcançado resultados bem-sucedidos, passou a integrar o Ministério da Educação, visando expandir seu método de alfabetização para todo o país. Porém, devido ao Golpe Militar (1964), o educador foi preso temporariamente e decidiu se exilar.

Educação 

Taís Araújo, mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, explica que o conceito de educação de Freire “aborda o aspecto crítico e transformador que essa atividade tem o potencial de suscitar nos estudantes”, que deveria, para ele, dialogar com a realidade dos educandos, de forma que pudessem ressignificar a ‘leitura do mundo’ e se engajarem em transformá-lo. “Em suma, uma educação que forme pessoas autônomas, capazes de tomarem decisões por conta própria, e que seja inclusiva e respeitosa, assegurando o direito de todos a seu acesso e permanência”, destaca.

Sobre as críticas frequentes que o educador recebe, Araújo acredita que se devem a uma maior projeção nos últimos anos de movimentos conservadores como o “Escola sem partido”. A partir daí, o consenso que existia em torno da importância de Freire se desfez, sendo seu trabalho reduzido a uma “pedagogia de esquerda”. “Essas associações, diga-se de passagem, são realizadas sem base na realidade, a partir de total desconhecimento sobre quem foi Freire e sobre seus escritos.” Confira na íntegra a entrevista que Taís Araújo concedeu ao Hoje na História. 

 

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Paulo Freire?

Taís Araújo: Antes de mais nada, vamos lembrar que não é nada fácil resumir uma vida. Em relação a Paulo Freire, essa é uma árdua tarefa pois estamos nos referindo a alguém que transformou a forma como olhamos para a educação, para a política, para as classes populares, para os países pobres e explorados, um intelectual cujos escritos não só tiveram importância para o desenvolvimento de pesquisas em Educação como mobilizaram e ainda mobilizam paixões, inspiram projetos, engajam sujeitos nas lutas pela defesa da educação pública e de uma sociedade mais justa. Poderia dizer que Freire foi um escritor profícuo, autor de uma obra composta por quase 40 livros, sendo que uma de suas primeiras publicações, Pedagogia do Oprimido (1968), foi a de maior repercussão, traduzida para mais de 20 idiomas. Posso mencionar também o reconhecimento internacional obtido pelo pensador brasileiro, concretizado em inúmeros convites para lecionar, ministrar palestras, realizar projetos de Educação Popular, em dezenas de prêmios que recebeu ao longo de sua carreira, em especial títulos de “Doutor Honoris Causa” concedidos por universidades mundo afora, sem contar a sua relevância para a pesquisa em Ciências Humanas, sendo um dos autores mais citados em dissertações, teses e artigos científicos. Tendo em vista a dimensão tomada por suas práticas e pela sua obra, até mesmo definir Paulo Freire é difícil: educador, pesquisador, militante, filósofo? Poderia dizer, de forma breve, que Freire iniciou sua carreira como professor de português em um colégio conceituado no Recife, o Oswaldo Cruz, onde havia conseguido terminar seus estudos em decorrência de uma bolsa conseguida por sua mãe junto ao dono do colégio. Formou-se advogado, atuou um pouco na área durante a década de 1940, mas logo migrou para a educação, quando foi trabalhar no SESI-PE, em 1946. Ao mesmo tempo, Freire lecionava e pesquisava na Universidade do Recife e atuava em âmbito de governos municipais e estaduais na construção de políticas públicas em educação, com destaque para a sua participação no Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife. Ao assumir a direção do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, Freire conseguiu a autonomia e estrutura que precisava para colocar em prática suas ideias a respeito da alfabetização de adultos sem o uso de cartilhas. É nesse momento que recebe o convite para coordenar o projeto das 40 horas de Angicos, no Rio Grande do Norte, a ser realizado em janeiro de 1963. O projeto previa a alfabetização de um grupo de 300 pessoas na cidade de Angicos, sertão do estado, a partir do desenvolvimento de um projeto no qual os adultos encontravam-se com os educadores por 1 hora ao dia, totalizando 40 dias (ou 40 horas). Em razão dos resultados exitosos alcançados logo nas primeiras semanas de realização do projeto, a iniciativa tomou repercussão nacional e contou com a participação, no último dia, do presidente João Goulart e de outras figuras da política institucional da época como o marechal Castelo Branco. Freire passou a integrar o Ministério da Educação e a trabalhar para a expansão do seu “sistema” de alfabetização para todo o país, porém, com o Golpe civil militar de 1964, esse e outros projetos reformistas foram interrompidos. Freire foi preso para averiguações e decidiu exilar-se. A partir desse momento, Freire concentra-se na escrita sobre temas relacionados à educação e política e na participação de movimentos em prol da Educação Popular em diversos lugares do mundo, como aqueles realizados em países africanos de língua portuguesa, em especial na Guiné-Bissau. Com a anistia de 1979, Freire retorna ao Brasil em 1980, onde continuará a escrever e atuar em projetos de educação, além de lecionar na PUC-SP. Vale a pena destacar sua experiência na Secretaria de Educação da cidade de São Paulo, entre 1989 e 1991, que até hoje é lembrada pelos professores da rede como uma das que mais contribuíram para a valorização da carreira.

 

Serviço de Comunicação Social: Que tipo de educação Freire defendia e como ela se relaciona com a democracia?

Taís Araújo: Se fôssemos definir um conceito de educação em Freire de forma geral, eu diria que o pensador defendeu uma educação crítica, voltada para a liberdade e a transformação social, com profundo vínculo com a Democracia, ainda que possamos conceber diferentes significados para esse termo na sua obra. De modo geral, pensando, sobretudo, nos seus escritos desde Pedagogia do Oprimido, seu conceito de educação aborda o aspecto crítico e transformador que essa atividade tem o potencial de suscitar nos estudantes, sempre em diálogo com a realidade deles, os levando a ressignificar a “leitura do mundo” ao qual pertencem e os incentivando a tomar parte nesse mundo, a querer transformá-lo. Nesse sentido, alfabetizar não seria somente aprender os códigos da cultura letrada, mas se apropriar dessa linguagem a fim de ressignificar as próprias experiências e de instrumentalizar a leitura do mundo com o objetivo de estimular a intervenção, a mudança. A maior parte de seus escritos são voltados à Educação Popular, ou seja, não-escolar. Entretanto, podemos refletir também sobre seu conceito de educação em termos de sala de aula. Para Freire, na escola os estudantes devem ter contato com os conteúdos clássicos disciplinares, mas por meio de uma aproximação com suas histórias de vida e da valorização das suas formas de ver o mundo, de pensar, de agir, enfim, da sua cultura, seu “saber de experiência feito”. Em nenhum momento, ao refletir sobre educação no contexto da escola, Paulo Freire desconsidera a importância dos conteúdos na educação, porém o ensino deve pautar-se pelo diálogo entre esses conteúdos e a experiência dos estudantes e levar a uma postura ativa diante da realidade, uma postura transformadora, algo que é bastante desafiador até hoje. Essa forma de conceber a educação exige dos educadores comprometimento com os Direitos Humanos e com a valorização e defesa da Democracia na sua acepção mais radical, ou seja, uma Democracia que conte com a participação efetiva das classes populares, participação que não seja restrita ao voto nas eleições, mas que dê espaço para a atuação dos sujeitos nas decisões políticas tomadas em âmbito local ou nacional, em prol da justiça social e do fim das desigualdades sociais e econômicas. Nos seus últimos escritos, Freire defendeu inclusive uma “escola pública, popular e democrática”, o que nos leva a justificar a definição de educação que fizemos aqui. Em suma, uma educação que forme pessoas autônomas, capazes de tomarem decisões por conta própria, e que seja inclusiva e respeitosa, assegurando o direito de todos a seu acesso e permanência.

 

Serviço de Comunicação Social:  Você pode nos contar sobre a pesquisa que você desenvolveu no mestrado sobre Freire?

Taís Araújo: O que fiz foi direcionar meu olhar para um período que eu diria ser “mitológico” na vida de Freire – o momento inicial da sua carreira na educação, antes da escrita de seus livros mais famosos – Educação como Prática da Liberdade (1967) e Pedagogia do Oprimido, ou seja, o período “pré-Golpe” de 1964 e assim esboçar uma abordagem mais historiográfica para esse momento. Acredito que a diferença da minha abordagem se traduziu nos meus esforços de evitar reproduzir uma “ilusão biográfica”, nos dizeres de Pierre Bordieu, a respeito da vida de Freire nesse período. Isso significou buscar descontinuidades, conflitos, problemas novos sobre o pensamento de Freire, cujas interpretações, entre os comentadores, são muito marcadas pelos afetos que o educador suscita com seus escritos e experiências. Nesse ímpeto, percebi que a defesa da Democracia foi uma marca constitutiva de sua formação, sendo que, nesse momento, Freire partilhava dos pontos de vista de alguns intelectuais que praticamente não foram mencionados na fortuna crítica como fontes importantes para seu pensamento tais como Anísio Teixeira, Gilberto Freyre e, sobretudo, os integrantes do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Na minha dissertação, analiso esse momento da vida intelectual de Freire, sob o impacto das ideias do “escolanovismo” e principalmente do “nacional-popular”, observando uma mudança importante na sua abordagem, a partir de 1962, quando o pensador passa a dialogar mais intensamente com a filosofia existencialista cristã, algo que será definidor de suas concepções sobre educação e política. Em suma, matizei mais propriamente o perfil de “intelectual reformista” de Freire, aspecto que se transforma pós-Golpe, exílio e a escrita de Pedagogia do Oprimido, quando Freire assume uma postura definitivamente libertária a partir da qual ele será reconhecido de forma mais ampla. 

 

Serviço de Comunicação Social: Mesmo considerado o Patrono da Educação, as ideias de Paulo Freire são alvo de ataques constantemente. Na sua opinião, Freire ainda contribui na formação de professores?

Taís Araújo: Quando defendi a dissertação, em 2014, esses ataques mais virulentos à imagem de Freire estavam começando a acontecer. Até então, a sua figura era praticamente isenta de críticas, mesmo entre aqueles localizados mais à direita no espectro político. Com a relevância da sua trajetória, Freire tornou-se uma figura bastante consensual, cujas ideias de educação estavam presentes em escolas de elite, em escolas tradicionais, para além da escola pública ou dos grupos de Educação Popular. Essa é uma pesquisa ainda a ser feita, mas tenho a impressão de que esses ataques foram motivados por uma maior projeção do movimento “Escola sem partido”. Desde então, essa espécie de consenso que existia se desfez e Freire passou a ser reduzido a uma “pedagogia de esquerda”, marxista, comunista ou algo do tipo, como se tendências pedagógicas se dividissem em polarizações simples. Essas associações, diga-se de passagem, são realizadas sem base na realidade, a partir de total desconhecimento sobre quem foi Freire e sobre seus escritos. Até porque, podemos dizer que Freire tinha ideias progressistas sobre educação e política, mas não se pode generalizar os grupos à esquerda sob uma “etiqueta” como se não houvesse tensão, conflito e diferenças entre suas posturas, concepções. Conforme disse anteriormente, Freire sempre foi um defensor da Democracia e tinha um entendimento sobre “engajamento político” que não passava por assumir somente uma determinada tendência de forma “panfletária” ou “sectária” como ele mesmo dizia. Essa mudança a respeito da forma como parte da sociedade passou a conceber os trabalhos de Freire, como sabemos, não se restringe à educação, mas integra um contexto mais amplo de ascensão de grupos da extrema-direita no Brasil. Por isso que, mais do que nunca, as ideias e a vida de Freire têm muito a contribuir para a formação de professores, inclusive esse período da gestação de sua trajetória e da realização do projeto das 40 horas de Angicos.  Paulo Freire participou de uma geração que não só acreditou na construção de um outro país, capaz de romper com sua herança colonial, como atuou ativamente em um processo gerador de mudanças significativas que estavam sendo realizadas no Brasil no período anterior ao golpe civil militar de 1964. Creio que hoje precisamos nos inspirar, enquanto professores, nessa possibilidade de construção de projetos alternativos de país, contra a realidade que se impõe, para que possamos agir politicamente em prol de um outro Brasil, mais justo, menos desigual e que respeite e valorize suas escolas e educadores. 

Taís Araújo é doutora em Filosofia da Educação pela Faculdade de Educação (FE) da USP e mestre em História Social pela FFLCH, pela qual também é graduada em História. Tem experiência de pesquisa na área de Filosofia da Educação, História Intelectual e História da Educação. Sua pesquisa de mestrado, Educação e democracia: uma análise das afinidades entre Paulo Freire, as ideias da Escola Nova e do Nacional Popular (1957-1963), está disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.