Nascimento de Manuel Said Ali

Precursor dos estudos linguísticos no Brasil, Said Ali é um dos maiores nomes da Linguística Histórica brasileira

Por
Alice Elias
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Nascimento de Manuel Said Ali
Segundo o professor Mário Eduardo Viaro, "a obra de Said Ali, longe de ser ultrapassada, dispõe de um cabedal inesgotável de reflexões, que a tornam atual, independentemente das décadas que nos separam dela". (Arte: Alice Elias)

 

Em 21 de outubro de 1861, nasceu o linguista brasileiro Manuel Said Ali. Precursor dos estudos linguísticos no Brasil, é um dos maiores nomes da Linguística Histórica brasileira. Autor de obras como Gramática Histórica, Versificação Portuguesa e Lexeologia do Português Histórico, Said Ali foi um polímata que se dedicou a diversas áreas importantes para os cursos de Letras, como Gramática, Linguística, Estilística e Filologia.

Conversamos com Mário Eduardo Viaro, professor livre-docente da área de Filologia e Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sobre seu importante papel nos estudos linguísticos. Confira:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Said Ali?

Mário Eduardo Viaro: Manuel Said Ali Ida nasceu em 21 de outubro de 1861, em Petrópolis e faleceu em 27 de maio de 1953. Foi professor do Colégio D. Pedro II e autor de importantes gramáticas e estudos de história da língua portuguesa, contemporâneo de Ferdinand de Saussure (1857-1913), Adolfo Coelho (1847-1919), Leite de Vasconcelos (1858-1941), Carolina Michaelis (1851-1925), Gonçalves Viana (1840-1914) e precursor dos estudos da Linguística no Brasil.

Said Ali não costuma ser conhecido pelos linguistas brasileiros, a não ser daqueles que trabalham com Linguística Histórica, mas, sem dúvida, é um dos maiores nomes da área. Mesmo numa época em que não havia faculdades de Letras no Brasil, mostrou-se um pesquisador muito atualizado em relação às novas correntes dos estudos da linguagem, tendo sido um leitor de Friedrich Diez (1794-1876), Hermann Paul (1846-1921), Georg von der Gabelenz (1840-1893), Franz Miklosisch (1813-1891), Karl Brugmann (1849-1919), Berthold Delbrück (1842-1922), Eduard Sievers (1850-1932), Henry Sweet (1845-1912), Victor Henry (1850-1907), Michel Bréal (1832-1915), Paul Passy (1859-1940), William Whitney (1827-1894). Dentre seus discípulos no Colégio II, encontram-se o lexicólogo Antenor Nascentes (1886-1972), o linguista Joaquim Mattoso Câmara Jr (1904-1970), o filólogo Serafim da Silva Neto (1917-1960), o gramático e lexicólogo Cândido Jucá Filho (1900-1982), o gramático e crítico literário Sousa da Silveira (1883-1967), que compartilharam com o mestre uma postura científica em relação à linguagem, além do poeta Manoel Bandeira (1886-1968). Dentre suas obras, citem-se: Dificuldades da Língua Portuguesa (1908); Lexeologia do Português Histórico (1921), Formação de Palavras e Sintaxe do Português Histórico (1923); Gramática Elementar da Língua Portuguesa  (1923); Gramática Secundária da Língua Portuguesa (1927); Meios de Expressão e Alterações Semânticas (1930); Gramática Histórica (1931); Versificação Portuguesa (1948), entre outras. Trata-se de um polímata que transitou em várias áreas importantes para os cursos de Letras: Gramática, Linguística, Estilística e Filologia. Recentemente, houve um evento em homenagem à sua obra, cujos textos se reuniram numa edição da revista Língua e Instrumentos Linguísticos, vol. 25, nº 49 (disponível aqui)

Serviço de Comunicação Social: O que é Filologia e qual seu objeto de estudo?

Mário Eduardo Viaro: Há pelo menos duas formas de entender a Filologia. Há um significado mais amplo para esse estudo, defendido por pesquisadores que se preocuparam muito com sua divulgação, tais como o professor José Pereira da Silva (1947-2020), do Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos (CIFEFIL) e pelo prof. Bruno Fregni Bassetto (1935-2019), da FFLCH, que refletem ainda a ideia anterior ao surgimento da Linguística Geral, em que os estudos das linguagens estavam unificados. O filólogo Serafim da Silva Neto, já mencionado, define-a como o estudo científico, histórico e comparado, em toda sua amplitude, que não se confunde com a Gramática (que estudaria a Fonética, a Morfologia e a Sintaxe) e com a Etimologia, mas também está a serviço da Literatura e da História. Há, porém, a forma mais reconhecida atualmente, mais restrita, que identifica a Filologia quase exclusivamente à Crítica Textual, uma área transdisciplinar que se preocupa com edições de textos antigos (as quais podem ser paleográficas, diplomáticas, semidiplomáticas ou críticas) e tem pontos em comum com a Diplomática, a Codicologia e a Linguística. De qualquer forma, as pesquisas de Said Ali, apesar de ocuparem um grande espectro de estudos linguísticos, não se identificam exatamente com muitas das preocupações da Crítica Textual, mas se valem dos resultados dela, sobretudo os dados linguísticos, que reinterpretam e analisam de forma primorosa e exata, contendo informações de grande interesse para a Linguística Histórica, a Morfologia e a Sintaxe. Em sua Gramática Histórica, por exemplo, podemos encontrar capítulos raramente tratados em outras obras, desde então, que ainda necessitam ser amplamente explorados: a associação da terminação dos substantivos ao seu gênero morfológico, o antigo sistema de numeração, o uso do pronome “ela” associado a formas de tratamento, a documentação e o uso dos particípios dos verbos abundantes, a polêmica explicação psicológica para as vozes verbais com partícula apassivadora, o uso antigo das conjunções, o estudo minucioso dos sufixos e muitas considerações ainda pouco conhecidas sobre sintaxe histórica.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Linguística? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Mário Eduardo Viaro: Quando foi fundado o Grupo de Morfologia Histórica do Português (GMHP), a minha primeira preocupação foi a de pesquisar apenas uma das seções inexploradas da Gramática Histórica, a saber a dos sufixos da língua portuguesa, que corresponde aos parágrafos 1137 a 1241. Apesar de, ao longo de tantos anos, muitas iniciações científicas, mestrados, doutorados e pós-doutorados terem sido desenvolvidos na área de pesquisa de Morfologia Histórica do programa de pós-graduação de Filologia e Língua Portuguesa, mesmo após a fundação de um núcleo de pesquisa para questões de Linguística Histórica  e dos alicerces do projeto Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, ambos também fortemente ancorados nas premissas de Said Ali inicialmente, posso afirmar que ainda estamos longe de fazer uma análise exaustiva de todo o prisma de informações que o autor nos oferece: dados, conceitos, hipóteses e considerações tecidos em sua obra. Said Ali foi o primeiro leitor de Ferdinand de Saussure no Brasil, que já aparece citado na segunda edição de sua obra Dificuldades da Língua Portuguesa, em 1919, ou seja, apenas três anos após o lançamento do Cours de Linguistique Générale. Segundo Serafim da Silva Neto, a mesma obra só voltou a ser mencionada em 1955. Isso mostra que a obra de Said Ali, longe de ser ultrapassada, dispõe de um cabedal inesgotável de reflexões, que a tornam atual, independentemente das décadas que nos separam dela. Eu tive o prazer de editar, em 2001, a sua Gramática Histórica e acrescentei, ao final dessa obra, um índice de assuntos bastante exaustivo com referências sucintas às páginas de outras obras que tratavam de capítulos similares, a saber, do Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa (1919), de José Joaquim Nunes (1859-1932); a Gramática do Português Arcaico (1933, tradução de 1986), de Joseph Huber (1884-1960); o livro Do Latim ao Português (1935, trad. 1961), de Edwin B. Williams (1891-1975);  a Sintaxe Histórica Portuguesa (1959), de Augusto Epifânio da Silva Dias (1841-1916); o livro Estruturas Trecentistas (1989), de Rosa Virgínia Mattos e Silva (1940-2012), além de diversos outros artigos acadêmicos atuais e não deixa de ser impressionante a gama de assuntos tratados por Said Ali nessa obra.


Mário Eduardo Viaro é professor livre-docente da área de Filologia e Língua Portuguesa no DLCV da FFLCH, doutor em Filologia Românica, com especializações em Mannheim/Alemanha (DAAD - Institut für deutsche Sprache), Heidelberg (DAAD - Romanisches Seminar/ Universität Heidelberg) e em Chur/Suíça (Pro Helvetia - Lia Rumantscha/ Institut dal Dicziunar Rumantsch Grischun) e possui pós-doutorado pela Universidade de Coimbra. Orienta em Morfologia Histórica do Português e em Etimologia da Língua Portuguesa, área que fundou nas universidades brasileiras.
Representante de estudos etimológicos de língua portuguesa junto à equipe "Iberoromania" do projeto DÉRom/ATILF-Nancy. Desenvolve a pesquisa O legado de Jerônimo Cardoso: descrição e etimologia do português do séc XVI (PQ-1D/ CNPq) , coordenador do Grupo de Pesquisa Morfologia Histórica do Português (GMHP) desde 2005; fundador do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa (NEHiLP), ligado à Pró-Reitoria de Pesquisa, da USP em 2012 e atualmente vice-coordenador; coordenador do projeto Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (DELPo). É membro correspondente pelo Estado de São Paulo pela Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL).