"O Estrangeiro", de Albert Camus, é publicado

A obra é reconhecida como um divisor de águas na história da literatura

Por
Alice Elias
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"O Estrangeiro", de Albert Camus, é publicado
"Camus  dá  ao  leitor  um  universo  absurdo,  para  que  o  leitor  tome  consciência  de  sua própria  absurdidade", explica Samara Geske. (Arte: Alice Elias)

 

Em 1942, Albert Camus publicou O Estrangeiro, obra reconhecida como um divisor de águas na história da literatura. No contexto da Segunda Guerra Mundial, O Estrangeiro representou uma nova forma de compreender o mundo profundamente transformado pelo conflito. Camus é conhecido popularmente como o filósofo do absurdo, uma vez que colocou o leitor diante do absurdo da existência.

O chamado “ciclo do absurdo” de Camus começa a se delinear a partir das obras O Estrangeiro, O Mito de Sísifo e a peça de teatro Calígula: para o autor, o absurdo não se trata de uma conclusão, mas sim de um ponto de partida. Antes de tudo, o  absurdo é um sentimento que o indivíduo experimenta ao ser confrontado pela ausência de sentido de sua existência. “O absurdo é um divórcio entre o homem e sua vida”, afirma Samara Geske, doutora em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Em O Estrangeiro, o sentimento do absurdo se manifesta através dos atos desprovidos de razão do narrador. O clássico da literatura do século 20 toma forma a partir de Meursault – o narrador que, embora em primeira pessoa, não revela sua interioridade ao leitor. Meursault é estrangeiro ao mundo, a si mesmo e ao leitor, “precisamente porque procuramos nesse personagem e em sua história um sentido que ele constantemente nos nega”, continua Samara Geske. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Qual a importância de O Estrangeiro para a literatura? Qual a principal crítica da obra?

Samara Geske: O Estrangeiro, publicado em maio de 1942, em meio à Segunda Mundial, foi logo reconhecido como um divisor de águas na história da literatura, pois representava uma ruptura formal com o romance do século 19 e uma nova forma de apreender o mundo que sairia transformado após o final do conflito. Camus colocava seu leitor (ainda sem a mediação do ensaio, publicado alguns meses depois) diante do absurdo da existência. Mas apesar do tema filosófico, a narrativa em nada se aparentava a um romance de tese. Como bem mostrou Roland Barthes, para esse novo tema, era preciso uma nova forma de conceber a narrativa. Essa seria, na minha opinião, a importância de O Estrangeiro para a literatura: a profunda imbricação entre literatura e filosofia a ponto de que o absurdo não é apenas um conceito filosófico a ser ilustrado, mas está presente na própria tessitura da narrativa. "Se quiser ser filósofo, escreva romances", escreveu Camus numa das primeiras notas de seus Cadernos que tive a honra de traduzir para o português. Dessa forma, considero que existem dois textos fundamentais que nos ajudam a compreender a narrativa, justamente porque são os primeiros a lançar luz sob este aspecto: o primeiro, escrito por Jean-Paul Sartre Explicação de O Estrangeiro, publicado em 1943 e o segundo, Reflexões Sobre o Estilo de O Estrangeiro de Roland Barthes, publicado em 1944. Para Sartre, a leitura da narrativa é uma comunhão brusca entre o autor e o leitor, tendo entre eles o absurdo. Para citarmos um exemplo, Camus escolhe um narrador em primeira pessoa, mas o leitor não tem acesso à interioridade desse "eu" que narra. Como explica Genette, Meursault é um tipo estranho de narrador intradiegético que narra sua história em primeira pessoa, mas com uma espécie de focalização externa. Estrangeiro ao mundo, a seus semelhantes e a si mesmo, o narrador absurdo, também o é ao leitor. Meursault nos é estrangeiro precisamente porque procuramos nesse personagem e em sua história um sentido que ele constantemente nos nega. Emprestando uma imagem empregada no Mito de Sísifo, Sartre afirma que Meursault é como o homem que telefona em uma cabine envidraçada: você pode ver seus gestos, mas não pode ouvi-lo. Seus gestos, portanto, estão desprovidos de todo o sentido. O absurdo é precisamente o "vidro" entre personagem e leitor. Barthes, por sua vez, vai empregar uma bela metáfora marinha, segundo a qual O Estrangeiro é como uma superfície sujeita à "presença submarina das areias imóveis" do absurdo. A narrativa seria, para ele, um notável exemplo de incidências do fundo sobre a forma.

Serviço de Comunicação Social: Em sua dissertação de mestrado, você fala sobre o que Camus nomeou “ciclo do absurdo''. O que é o ciclo do absurdo? E o que é o absurdo?

Samara Geske: Quando esteve no Brasil, em 1949, Camus foi chamado pela imprensa de "filósofo do absurdo" o que era justo, uma vez que o ciclo da revolta estava apenas começando. A Peste foi publicada em 1947 e o Homem Revoltado estava em plena gestação e seria publicado em 1951. O que nos leva a questão do ciclo em Camus, segundo o qual um mesmo tema filosófico seria apresentado sob três gêneros diferentes: o ensaio, a narrativa e o texto dramático. O ciclo do absurdo, o primeiro a ser composto, incluía assim o ensaio O Mito de Sísifo, O Estrangeiro e a peça de teatro Calígula. Em seguida, vieram os ciclos da revolta e do amor, que Camus deixou inacabado devido a sua morte em janeiro de 1960. No entanto, passados mais de 80 anos da publicação do primeiro ciclo, Camus ainda é visto "apenas" como o filósofo do absurdo, ou como um simples niilista. O que nos leva à segunda parte da questão, e a nos debruçarmos sobre o ensaio, O Mito de Sísifo, publicado em outubro de 1942. Camus inicia sua reflexão destacando precisamente que o absurdo não é uma conclusão, mas um ponto de partida. Ele é uma apresentação do "estado das coisas" e o ensaio é, antes de mais nada, uma tentativa de responder a esta pergunta: e agora, como viveremos?

O absurdo é uma noção, ao mesmo tempo, de simples e de difícil apreensão. Ele é simples, pois todos os homens em algum momento já se defrontaram a ele: como nos lembra Camus, o absurdo é, antes de tudo, um sentimento que o homem experimenta quando confrontado com a ausência de sentido de sua existência. O momento em que o homem percebe que está separado do mundo, na medida em que sua existência finita é confrontada com a natureza que permanece, indiferente à dor e ao sofrimento humanos. Mas como defini-lo de um ponto de vista filosófico? Percebemos a dificuldade quando o próprio Camus lança mão de diversas metáforas e comparações. O absurdo é um divórcio entre o homem e sua vida. O absurdo é uma descoberta abrupta: o momento em que o cenário desaba.

Mas o mundo em si mesmo não é absurdo, conclui Camus: o absurdo nasce de um confronto entre o homem e o mundo: elimine um desses termos, e o absurdo desaparece. É por esse motivo, aliás, que o ensaio começa por essas conhecidas palavras: "Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio." Diante do absurdo, o homem tem várias escolhas, as duas primeiras, rejeitadas por Camus: por termo à sua vida ou escolher o caminho da religião. Resta-lhe então o enfrentamento lúcido do absurdo.

Serviço de Comunicação Social: De que forma O Estrangeiro e O Mito de Sísifo se relacionam? O absurdo se manifesta nestas obras?

Samara Geske: Gosto de pensar em O Estrangeiro e O Mito de Sísifo como irmãos gêmeos, pois são gestados concomitantemente. Mas se trata de gêmeos bivitelinos, isto é, de aparência muito diferente. De um lado, temos uma narrativa e, de outro, um ensaio filosófico. Sobre O Mito de Sísifo, é o próprio Camus quem nos adverte que seu ensaio tratará mais de uma sensibilidade absurda do que de uma filosofia do absurdo. Para ele, ser filósofo não significava criar um sistema de explicação, mas colocar-se diante das questões essenciais inerentes à nossa condição. Tomemos, por exemplo, a maneira como Camus ilustra a descoberta do absurdo no ensaio por meio de uma imagem: "Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o "por que" e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro." Interessante notar que apesar de ilustrar esse momento por meio de uma imagem, essa não será empregada em O Estrangeiro. Em Meursault o “porquê” nunca se levanta. A palavra "absurdo", por exemplo, aparece apenas uma vez na narrativa. Esse fato nos faz pensar que Camus poderia ter optado por outro caminho criando um personagem que levasse uma vida mecânica e que um dia tomasse consciência da absurdidade de seus atos. Ao contrário, na narrativa, o autor nos coloca sem mediação em contato com o sentimento do absurdo expresso através dos atos de Meursault: gestos desprovidos de razões, de álibis. Perguntado sobre o motivo pelo qual matara, ele responde que fora por causa do sol. Para  poder  condená-lo,  o  tribunal  tenta  “restituir-lhe  a  alma”,  nas palavras de Sartre “introjeta  nele  motivos  que  não  tivera,  maldades  que  não  conhecera,  uma  coerência  de atitudes que ignorara.” Esse tribunal não se satisfaz com a explicação absurda de Meursault e tenta dar sentido a seus atos, demonstrar por arrazoados que seu crime fora premeditado. 

E voltamos aqui à questão do absurdo como efeito de leitura: o desejo de familiaridade, de unidade, de sentido que o homem busca no mundo é o mesmo desejo que o leitor buscaria no texto. Camus  dá  ao  leitor  um  universo  absurdo,  para  que  o  leitor  tome  consciência  de  sua própria  absurdidade.

Samara Geske é mestre em Letras pela FFLCH, e doutora em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês pela mesma instituição, com período sanduíche no Institut des Textes & Manuscrits Modernes. Para quem se interessar sobre o tema, sua dissertação de mestrado está disponível em O Avesso e o Direito da escritura camusiana: de L'Êtranger aos Écrits de Jeunesse, e sua tese de doutorado em La rosée sur les ruines: une lecture du processus de création du roman inachevé Le Premier Homme d'Albert Camus.