"Ulisses", de James Joyce, é publicado

Clássico da literatura mundial, com essa obra James Joyce criou uma nova categoria de romance

Por
Alice Elias
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"Ulisses", de James Joyce, é publicado
"Segundo o próprio autor, ele pretendia 'oferecer um retrato tão completo de Dublin que, se um dia desaparecesse repentinamente da Terra, poderia ser reconstruída a partir do meu livro'", explica Mariana Bolfarine. (Arte: Alice Elias)

 

 

Em 1922, James Joyce publicou o livro Ulisses, que se tornou um clássico da literatura mundial. A trama se passa em 1904 e retrata conflitos de identidade, religião e nação vivenciados pela Irlanda nos anos que precederam a Primeira Guerra Mundial. Os temas cotidianos revelam o herói como um homem comum, que lida com insatisfações pessoais, necessidades corporais, problemas no casamento e dilemas do homem moderno. James Joyce se inspirou em coisas habituais, que frequentemente passam despercebidas, mas também retratou a fragmentação do sujeito e as transformações nas relações humanas advindas da Primeira Guerra Mundial.

Com Ulisses, Joyce criou uma nova categoria de romance ao aperfeiçoar temas e métodos da tradição, e simultaneamente fazer experimentos de vanguarda. Dentre as inovações, a mais marcante foi o emprego do discurso indireto livre, na qual o fluxo de  consciência do personagem é transmitido diretamente pelo narrador. “O movimento estético, artístico e literário do Modernismo fez com que as narrativas se voltassem para dentro, para o interior da mente dos personagens, resultando na verossimilhança ou na mimese do pensamento”, explica Mariana Bolfarine, doutora na área de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Qual a importância de Ulisses para a Literatura? Em linhas gerais, quais as temáticas abordadas pela obra?

Mariana Bolfarine: A importância do Ulisses para a tradição literária reside no fato de que James Joyce, assim como outros escritores modernistas, por exemplo Virginia Woolf e D.H. Lawrence, cria uma nova categoria de romance. Segundo Forrest Read (1967), ao mesmo tempo em que Joyce aperfeiçoava o Realismo dos séculos 18 e 19, ele realizava na literatura os experimentos de vanguarda de Ezra Pound, que viveu em Paris na mesma época que o escritor irlandês e que colaborou para que partes de Ulisses fossem publicadas de forma seriada no periódico norte americano The Little Review de 1918 a 1920.

Como os classicistas, Joyce adaptou temas, métodos e formas da tradição épica ao uso moderno, criando na arte algo que ainda não havia sido concretizado pelos seus antecessores. Joyce se inspirava nas “coisas triviais”, presentes no cotidiano, mas despercebidas, ou talvez tidas como certas e nunca examinadas. De acordo com Read, Joyce tinha um olhar aguçado para a vida como ela era e, assim, apresentava o espaço urbano de forma intensa, transmitindo uma “sensação de beleza abundante”, combinando o fato à resposta sensível. Joyce utiliza como matéria sua vida pessoal, conforme explica em Um Retrato do Artista Quando Jovem (1916), romance que narra o processo de formação do artista e que abre caminho para o Ulisses: “Bem vinda, oh vida! Eu vou encontrar pela milionésima vez a realidade da experiência e forjar na forja da minha alma a consciência incriada da minha raça”.

A importância da coisas triviais permeia suas principais obras: Dublinenses (1914), uma coletânea de 15 contos dispostos como um caleidoscópio que possui a cidade de Dublin como peça central; Um Retrato do Artista Quando Jovem (1916), um Küntlesrroman, no qual explora a formação e o amadurecimento do artista que culmina no seu exílio; Ulisses (1922), que narra um dia da vida do protagonista Leopold Bloom, e Finnegans Wake (1939), expoente do ultramodernismo.

Publicado em 1922, a trama de Ulisses se passa no ano de 1904, sendo, portanto, um memorial dos anos que precederam a Primeira Guerra Mundial, contendo nas suas linhas e entrelinhas os conflitos de identidade, religião e nação vivenciados pela Irlanda no início do século 20. Durante os anos da Primeira Guerra, Joyce permaneceu no exílio, em Trieste e Zurique, porém, entre 1918 e 1920, Joyce passou a buscar um novo direcionamento em relação a sua arte. Foi então que decidiu se mudar com a família para Paris, cidade na qual ele não só terminou Ulisses, mas também conheceu a norte americana Sylvia Beach, fundadora da livraria Shakespeare & Co., que acolhia escritores e a intelectualidade exilada (ou não) na Paris boêmia dos anos 1920 e que concordou em publicar o Ulisses em 2 de fevereiro de 1922, dia do aniversário de Joyce.

Ulisses foi um livro revolucionário no estilo e na concepção, mas seu aspecto mais inovador foi o emprego do discurso indireto livre, por meio do qual a consciência de um personagem é transmitida diretamente pelo narrador. Joyce buscou alcançar uma expressão estilística e formal nos cenários, eventos, ritmos, emoções e perspectivas históricas de Ulisses, que dialoga com a tradição realista, pois, apesar de ser um romance episódico, apresenta um arco que, como na Odisseia, caminha para uma conclusão. Contudo, como expoente do alto modernismo, para se analisar Ulisses foi necessária uma crítica, então inexistente, que abarcasse as transformações no gênero romanesco.

Os temas tratados em Ulisses são os do cotidiano; o herói é um homem comum. O protagonista Leopold Bloom é um “everyman”, que lida com problemas do mundo dos sentidos, como um casamento desgastado pela morte do filho recém-nascido, insatisfações pessoais e necessidades corporais que culminam na desconstrução do herói idealizado, mas que que também foram os principais objetos de censura. Ademais, Ulisses também aborda dilemas do homem moderno, como as amarras das quais o próprio Joyce tentou escapar: identidade nacional, língua e religião, fruto da condição colonial da Irlanda, que se reflete no protagonista Leopold Bloom, em sua condição de judeu e irlandês.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de James Joyce em Ulisses?

Mariana Bolfarine: A fim de se compreender o método de Joyce e a crítica tecida a certos aspectos da sociedade irlandesa de seu tempo, é preciso conhecer um pouco de sua biografia cujos ecos reverberam em sua escrita. James Aloysius Joyce nasceu em Dublin, em 2 de fevereiro de 1882, e era o filho mais velho de dez irmãos. Sua família viveu um curto período de abundância, tendo estudado dos 6 aos 9 anos na renomada escola jesuíta Clongowes Wood, cenário que se tornou fonte de inspiração para o início do romance Um Retrato do Artista Quando Jovem (1916).

Contudo, em pouco tempo a família Joyce voltou à pobreza e foi se mudando para bairros cada vez menos salubres de Dublin. Ainda assim, Joyce concluiu os estudos em Línguas Modernas em 1902 e, em seguida, foi estudar medicina em Paris. Em 1903, retornou à Irlanda por um breve período diante da iminência da morte da mãe, que o impactou profundamente. Em 1904, conheceu Nora Barnacle, com quem viveu entre Trieste, Zurique e Paris, onde morreu em 1941. O casal teve dois filhos, Giorgio e Lucia Joyce.

A forma com que Joyce se estabeleceu como escritor foi sintetizada pelo jornalista e crítico cultural irlandês Fintan O’Toole, segundo o qual, na virada do século 19 para o 20, na Irlanda e na Europa como um todo, em virtude do período pós-guerra, houve uma perda da crença nas instituições e uma mudança na percepção do tempo e espaço pelos escritores modernistas, que influenciaram seus experimentos com a linguagem, forma literária e representação da consciência. Isso fez com que a arte tomasse para si o espaço que, até então, era ocupado pela religião e pelo nacionalismo. O’Toole cita, como exemplo, os nomes das pontes que atravessam o famoso rio Liffey, que corta a cidade de Dublin. Essas pontes, que costumavam ter nome de santos, passaram a ter nome de escritores. Segundo o crítico, a parte do rio que passa entre as pontes Samuel Beckett e James Joyce acabou sendo conhecida como “Stream of Consciousness”, termo que pode ser traduzido como “Fluxo de Consciência''.

Ainda segundo O’Toole, nos anos 1920, a Irlanda vivia uma forte censura apregoada pela Igreja Católica, fazendo com que Joyce lançasse mão das seguintes “armas”: “silêncio, astúcia e exílio”, para poder escrever sobre ser um escritor irlandês escrevendo sobre a Irlanda. Desse modo, restava ao escritor ficar em silêncio, ser astuto o suficiente para contornar a censura, ou se exilar, física ou espiritualmente.
A sagacidade com que Joyce escreveu Ulisses encontrou terreno fértil em vista da necessidade de inovação e experimentalismo das formas artísticas para representar a fragmentação do sujeito e as transformações nas relações humanas advindas da Primeira Guerra Mundial. O movimento estético, artístico e literário do Modernismo fez com que as narrativas se voltassem para dentro, para o interior da mente dos personagens, resultando na verossimilhança ou na mimese do pensamento. Os recursos estilísticos mais conhecidos são: fluxo de consciência, monólogo interior e discurso indireto livre, empregados em toda obra de Joyce.

Como expoente do alto modernismo, Ulisses é uma obra que exige um leitor ativo para preencher os silêncios deixados por Joyce. Segundo Don Gifford: “o que não é dito é central para nossa experiência”. É isso que torna, para muitos, Ulisses um romance hermético e de leitura, em certa medida, trabalhosa. Outra dificuldade com a qual o leitor pode se deparar é a especificidade e meticulosidade com que Joyce apresenta eventos, pessoas e lugares, muitas vezes tirados da vida real. Segundo o próprio autor, ele pretendia “oferecer um retrato tão completo de Dublin  que, se um dia desaparecesse repentinamente da Terra, poderia ser reconstruída a partir do meu livro”.

Serviço de Comunicação Social: Como James Joyce estabelece a correspondência entre sua obra e a Odisseia, de Homero?

Mariana Bolfarine: A correspondência entre Ulisses e a Odisseia está explícita desde o título, que remete ao nome latino de Odisseu, herói da Odisseia, narrativa épica composta por Homero entre os séculos 7 e 8. Contudo, apesar de as correspondências também estarem presentes na forma e no conteúdo de Ulisses, elas não ficam evidentes para o leitor não especializado. Diante da tarefa hercúlea de identificar essas correspondências, Joyce desenvolveu esquemas para os amigos Carlo Linati e Don Gilbert, esse último presente na maior parte das edições de Ulisses. Esses esquemas atuam como pontos norteadores contendo as seguintes categorias, exemplificadas pelo Episódio 1: “Título” (Telêmaco); “Cena” (A Torre); “Hora” (8h00-9h00); “Órgão” ( - ); “Arte” (Teologia); “Cor” (Branco, Ouro); “Símbolo” (Herdeiro), “Técnica” (Narrativa: jovem).

Em se tratando das correspondências quanto ao enredo, a Odisseia narra a história do retorno do herói épico Ulisses à Ítaca após ter lutado bravamente na guerra de Troia, que durou dez anos. Durante sua ausência, sua mulher Penélope era perturbada por pretendentes que tentavam tomar o seu lugar. Com o auxílio do filho Telêmaco, após mais dez anos, Ulisses finalmente retoma o seu lugar. Já o Ulisses, de Joyce, se passa em um único dia, como um drama aristotélico: inicia aos 16 de junho de 1904, às 8h00 da manhã, em uma Martello Tower, em Sandycove, Dublin, com o conflitado intelectual Stephen Dedalus, que havia retornado à Irlanda de Paris, devido à morte iminente da mãe. Concomitante, em termos temporais, mas mais adiante na narrativa, o enredo enfoca o protagonista Leopold Bloom, que sai de casa às 8h00, após o desjejum, porque sabe que Molly Bloom, sua esposa, irá traí-lo em sua casa com seu amante, Blazes Boylan. Por fim, após longo dia, repleto de encontros e desencontros em diferentes lugares de Dublin, a história termina com o retorno de Bloom e Stephen à casa da família Bloom, aos 17 de junho às 3h33 da manhã.

Como na Odisseia, Ulisses apresenta 3 personagens principais: Leopold Bloom, Stephen Dedalus e Molly Bloom que, na Odisseia, correspondem a Ulisses, Telêmaco e Penélope. Além disso, o romance de Joyce é dividido em três partes, como a Odisseia de Homero: a Telemaquia (Telêmaco procurando Ulisses), a Odisseia (viagem cheia de aventuras singulares e inesperada) e o Regresso ao lar e ao leito nupcial (derrota dos pretendentes). Essas três partes, em Ulisses, são constituídas por 18 episódios que convergem para o encontro entre pai e filho, de Bloom e Dedalus, e no retorno de Bloom ao lar e ao leito nupcial com a esposa Molly. Assim como Bloom, que busca resolver internamente suas desavenças com Molly, Stephen vive sua própria odisseia interior.

Por fim, vale destacar que existem diferentes formas de se ler Ulisses e a busca por correspondências com a Odisseia, ou a consulta a edições como Ulysses Annotated: Notes for James Joyce (1974), de Don Gifford e Robert J. Seidman, entre outros manuais, é apenas uma delas. O leitor também pode optar por seguir os passos de Dedalus e Bloom, vivendo sua própria odisseia, e se perdendo e se encontrando pelas ruas de Dublin.

Mariana Bolfarine é mestre e doutora na área de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela FFLCH, com período sanduíche na National University of Ireland, Maynooth. É docente na Universidade Federal de Rondonópolis (UFR) e no PPGEL da UFMT. É pesquisadora da Cátedra de Estudos Irlandeses W.B. Yeats e presidente da Associação Brasileira de Estudos Irlandeses (ABEI).