Nascimento de Ferdinand de Saussure

O linguista e filólogo é considerado o fundador da linguística estrutural

Por
Alice Elias
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Nascimento de Ferdinand de Saussure
Segundo o professor Antonio Pietroforte, "para Saussure, os estudos concentravam-se nas línguas, em suas estruturas fonológicas e morfossintáticas, com vistas a pensar a história interna das línguas". (Arte: Alice Elias)

 

Em 26 de novembro de 1857, nasceu Ferdinand de Saussure, linguista e filólogo suíço. Considerado o fundador da linguística estrutural, os principais trabalhos de Saussure são nas áreas de linguística histórica, especificamente nos estudos do indo-europeu. Entre suas principais contribuições, destacam-se sua teoria do signo e os princípios da linguística, da semiologia e da semiótica modernas.

Saussure possuía profundo conhecimento das semelhanças e diferenças entre diversas línguas, aspecto que proporcionou a formulação de sua teoria sobre significação. Inclusive, sua teoria a propósito das vogais do indo-europeu foi considerada por especialistas como a tese mais brilhante da época.

“Saussure não se vale de reflexões filosóficas, sequer fazia parte de seus objetivos a construção de uma lógica das relações entre o homem, suas linguagens e o mundo; para Saussure, os estudos concentravam-se nas línguas, em suas estruturas fonológicas e morfossintáticas, com vistas a pensar a história interna das línguas, quer dizer, as transformações nessas estruturas fonológicas e morfossintáticas, capazes de possibilitar a reconstrução do indo-europeu e das línguas dele derivados”, explica Antonio Pietroforte, professor do Departamento de Linguística na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Ferdinand de Saussure?

Antonio Vicente Seraphim Pietroforte: Saussure teve uma vida bastante intensa, entre os muitos aspectos interessantes de suas realizações, escolho discorrer a respeito de apenas duas contribuições suas, isto é, sua teoria do signo e os princípios da linguística, da semiologia e da semiótica modernas advindos de suas propostas.

Atualmente, no cenário das teorias do signo e da significação, dois pensadores se impõem; referimo-nos a Charles Sanders Peirce e Ferdinand de Saussure. Separados pelo Oceano Atlântico, o primeiro nos EUA, o segundo vivendo entre a Suíça e a França, é de se lamentar não haverem se conhecido pessoalmente, sequer trocado correspondências... parece que Peirce conhecia enologia, que Saussure gostava de se embriagar... enfim, tratando ou não de semiótica e semiologia, ambos provavelmente se divertiriam.

Embora os dois pensadores sejam teóricos da significação e do signo, suas formações, objetivos e propostas teóricas são sensivelmente distintas para serem aproximadas sem os devidos cuidados. Saussure não foi filósofo, sua formação é na filologia, seus trabalhos principais são nas áreas de linguística histórica, especificamente nos estudos do indo-europeu, além de ser considerado o fundador da linguística estrutural. O século 19 foi marcado, no campo da linguística, pela linguística histórica com suas concepções de evolução das línguas e agrupamentos em troncos linguísticos; segundo aqueles linguistas, as línguas mudam através dos tempos em função de leis fonéticas bastante precisas, cuja determinação permitiria a reconstrução também de suas gramáticas e vocabulários, possibilitando, por meio de comparações entre diversas línguas, traçar graus de parentesco entre elas.

Assim, agrupam-se as línguas latinas, helênicas, germânicas, eslavas, celtas, védicas etc. no tronco indo-europeu; concebem-se outros troncos, por exemplo, o tronco afro-asiático, no qual se agrupam as línguas semíticas; segundo os especialistas, a tese mais brilhante da época teria sido a teoria de Saussure a propósito das vogais do indo-europeu. Seguindo a tradição de seus professores e colegas, Saussure conheceu profundamente várias línguas, suas semelhanças e diferenças; tais conhecimentos, somados a sua engenhosidade, permitiram a ele formular uma teoria sobre a significação.

Nas teorias do signo, a presença do objeto, referente ou coisa é constante; em todas elas, inclusive na semiótica de Peirce, o signo está articulado a sua referência. Para Saussure, porém, um signo se define em relação a outros signos, e não em relação às “coisas”; isso precisa ser explicado cuidadosamente, uma vez que vai de encontro ao senso comum a respeito do funcionamento da linguagem.

Em linhas gerais, não é difícil aceitar que há “coisas” no mundo, que pensamos nessas “coisas” e utilizamos palavras e outros signos para dar sentido a tais pensamentos e “coisas”. Esse raciocínio está nos princípios da teoria de Peirce, ele também articula, semelhantemente, “coisas”, pensamentos e expressão sensível nas funções, respectivamente, de referente, interpretante e fundamento do signo. Em sua proposta, entretanto, as relações entre os três conceitos não são mecânicas nem unidirecionais, pois Peirce não descreve a significação partindo primeiramente das coisas para depois, por meio do pensamento, converterem-se em signos; em sua teoria, contrariamente, signo, interpretante e referente determinam-se de modo complexo, um termo determina e é determinado pelos demais.

Diferentemente de Peirce, Saussure não se vale de reflexões filosóficas, sequer fazia parte de seus objetivos a construção de uma lógica das relações entre o homem, suas linguagens e o mundo; para Saussure, os estudos concentravam-se nas línguas, em suas estruturas fonológicas e morfossintáticas, com vistas a pensar a história interna das línguas, quer dizer, as transformações nessas estruturas fonológicas e morfossintáticas, capazes de possibilitar a reconstrução do indo-europeu e das línguas dele derivados. Pode parecer, para quem desconhece a linguística, haver relações diretas entre palavras e coisas, mas além das dimensões fonológicas e morfossintáticas, há nas línguas a dimensão semântica, a qual também varia de língua para língua.

Nas línguas românicas português, espanhol, italiano e francês, os respectivos pares de palavras irmão e irmã, hermano e hermana, fratello e sorella, frère e soeur estão sistematizados por meio da categoria semântica masculino vs. feminino, não sendo pertinente para a formação desse vocabulário, nessas quatro línguas, a categoria da idade velho vs. novo. No húngaro, contrariamente, além da categoria da sexualidade, passa a ser pertinente a categoria da idade, gerando-se, na sistematização do mesmo campo semântico, as quatro palavras bátya / irmão mais velho, öccs / irmão mais novo, néne / irmã mais velha e húg / irmã mais nova; diferentemente daquelas línguas românicas e do húngaro, no malaio há apenas a palavra sudarà, não sendo pertinente para essa semântica o sexo e nem a idade. A partir desses poucos dados, verifica-se que o sentido das palavras depende das relações entre o significante fonológico e o significado semântico, mas também depende das relações entre uma palavra e as demais palavras da mesma língua; dito de outro modo, a significação depende antes do valor linguístico, isto é, da sistematização das palavras por meio de categorias semânticas específicas em determinada língua do que das relações entre palavras e coisas.

Conhecedor em profundidade de numerosas línguas e de suas transformações históricas, Saussure percebeu essa propriedade da significação linguística, determinada tanto pela relação entre significantes e significados na formação de signos específicos, quanto pela relação entre estes signos e os demais signos do mesmo sistema deles. Para o mesmo autor, vale lembrar, a língua é um sistema de signos verbais, dividindo sua existência social com sistemas de signos de outras ordens, isto é, sistemas formados por signos não-verbais, de modo a haver uma ciência geral do signo, a semiologia, cujo ramo responsável pela análise dos signos verbais seria a linguística.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Antonio Vicente Seraphim Pietroforte: Em sua vida, Saussure não desenvolveu a semiologia, quem levou isso a cabo foi principalmente Roland Barthes, cujo livro Elementos de Semiologia tornou-se praticamente a primeira introdução sistematizada dos procedimentos analíticos da nova ciência. Em linhas gerais, trata-se da aplicação das dicotomias de Saussure, deduzidas a partir da linguística, aos demais sistemas de signos, tornando-se necessário conhecê-las para compreender minimamente os princípios da semiologia.

A época de Saussure coincide com a consolidação dos estados nacionais europeus, se os poetas e romancistas românticos tematizavam o nacionalismo e o nascimento, muitas vezes miticamente, de suas pátrias; os linguistas, imersos na mesma época, estudavam os troncos linguísticos, buscando pelas origens das línguas, das culturas e das sociedades modernas. Dessa maneira, quando há ênfase dos estudos nas transformações dos sistemas do linguísticos, define-se, segundo Saussure, a linguística diacrônica, quer dizer, a análise das línguas ao longo dos tempos; contrariamente, quando o estudo se concentra nas relações internas de determinado sistema de signos, isoladamente do tempo, define-se linguística sincrônica. Essa primeira dicotomia, diacronia vs. sincronia, remete à próxima dicotomia língua vs. fala.

Todo ouvinte atento percebe o quanto as falas das pessoas diferem umas das outras, pois cada um possui seu timbre de voz, os sotaques próprios dos lugares em que vive, o vocabulário de sua terra natal, de sua classe social, de sua profissão; além das características individuais, cujas motivações são majoritariamente psicológicas, cada falante herda as variantes de região, estrato social, faixa etária e situação discursiva de seu idioma, sociolinguisticamente determinadas. Todavia, apesar das diferenças dos falares, todos os falantes da mesma língua se entendem, pois a língua pode ser concebida enquanto forma abstrata e geral, da qual emanam todas as falas concretas e específicas. Consequentemente, o estudo de qualquer língua, sejam suas mudanças e suas variações, seja sua estrutura, começa por se concentrar nessa forma geral e abstrata, a partir da qual podem ser sistematizadas variações, estimadas mudanças e descrita a estrutura.

Uma vez aduzida, a dicotomia língua vs. fala encaminha a dicotomia significante vs. significado, utilizada para a definição de signo segundo Saussure, é essencial para sua definição de língua. Para Saussure, vale lembrar, a língua é um sistema de signos, formados pela relação entre imagens acústicas, isto é, formas fonológicas, e conceitos, respectivamente significantes e o significados, cujos sentidos se fazem mediante relações entre os signos do mesmo sistema verbal, conforme está exposto na questão anterior.

Por fim, a dicotomia paradigma vs. sintagma. Se as línguas podem ser descritas por meio de sistemas de signos, devem ser determinadas as relações regentes desses sistemas; para tanto, Saussure propõe relações associativas, aquelas estabelecidas entre todo signo e os demais signos na formação do sistema, e regras de combinação entre tais elementos na realização da língua. As primeiras são as relações paradigmáticas, nas quais um signo se define em relação aos demais por meio do significante, do significado ou de ambos. No Curso de linguística geral, Saussure utiliza a palavra “ensinamento” para exemplificar sua proposta: (1) por meio do significado, esse signo relaciona-se com “aprendizagem”, “escola” ou “estudo” e, inclusive, com os termos contrários “ignorância” ou “embrutecimento”; (2) por meio do significante, com “lento”, “vento” ou “talento”; (3) por meio do signo morfológico do radical, com “ensinar”, “ensino” ou “ensinando”; (4) por meio do signo morfológico do sufixo, com “detrimento”, “enaltecimento”, “armamento”. Figuras de linguagem tais quais rimas, aliterações e assonâncias são estabelecidas por meio de relações paradigmáticas entre significantes, enquanto metáforas e metonímias, por meio do significado.

Todavia, há a necessidade também de regras sintagmáticas, por meio das quais os elementos do sistema são combinados entre eles. Em linhas gerais, se os signos são morfológicos, há regras lexicais para combiná-los na formação de palavras; se os signos são lexicais, há regras sintáticas para combinar as palavras na formação das frases. Em português, segundo Mattoso Câmara, os verbos alinham-se no sintagma (radical) + (vogal temática) + (modo e tempo) + (número e pessoa), por exemplo (am)+(á)+(va)+(mos), (am)+(á)+(sse)+(mos) ou (am)+(a)+(rá)+(s); ainda em português, as palavras alinham-se no sintagma frasal (sujeito) + (verbo) + (complementos verbais).

Pois bem, se tais dicotomias permitem descrever os sistemas verbais, uma ciência geral do signo construída nos mesmos princípios partiria não apenas da extensão da dicotomia significante vs. significado para as demais linguagens, mas também da aplicação das outras três dicotomias na descrição dos sistemas. Basicamente, é essa a metodologia de análise da semiologia; em seu manual Elementos de Semiologia, Barthes desenvolve justamente essa proposta, cada capítulo do livro corresponde a uma das dicotomias de Saussure.

Para exemplificar brevemente a análise semiológica, podemos recorrer à culinária e à semiologia da alimentação. Atualmente, tanto a feijoada quanto o sarapatel, podendo-se dizer o mesmo da cozinha à base de cogumelos, são pratos da alta culinária, os primeiros são, inclusive, pratos típicos e celebrados da cozinha brasileira; todos eles, porém, por serem feitos de à base das sobras preteridas em meio a partes macias e saborosas dos animais de corte ou da natureza dos fungos e vegetais, foram no passado considerados alimentação de menor qualidade, permitindo traçar valorizações sincrônicas e diacrônicas desses pratos.

Quanto à dicotomia língua vs. fala, própria para analisar as relações entre as abstrações do sistema e suas ocorrências concretas, podendo ser estendida para quaisquer abstrações, ela possibilita descrever todas as variações da culinária dos sanduíches, afinal, tanto o cachorro-quente estadunidense, feito com salsicha, mostarda e pão, e o brasileiro, feito com os ingredientes anteriores acrescidos de ketchup, maionese, batata-palha, purê de batata e molho vinagrete, são variações de uma mesma forma geral e abstrata.

No domínio do signo, nenhuma comida significa apenas alimento, sobre todas elas projetam-se conotações culturais, isto é, toda comida significa a si mesma e mais alguma coisa. O exemplo da feijoada ilustra isso, sua análise diacrônica é também a análise de suas valorizações culturais por meio da significação; embora considerada comida vulgar, atualmente há chefes especializados em sanduíches artesanais; os animais de corte são articulados, na linguagem dos açougueiros, em função das qualidades culinárias da carne, correlacionadas a pratos específicos, aos quais correspondem consumidores separados em classes sociais, por exemplo carne de pescoço para o proletariado e filé mignon para a burguesia.

Por fim, qualquer cardápio apresenta a sequência sintagmática ritualizada das práticas alimentares, quer dizer, a ordem na qual os alimentos devem ser consumidos, e as possibilidades de escolha, quando elas existem, de cada etapa. No ocidente, o sintagma dos restaurantes costuma ser entrada, prato frio, prato quente, sobremesa e café, e o paradigma, formado pelos pratos disponíveis em cada fase, depende das especialidades da casa, se for cantina, os pratos quentes são massas, se for churrascaria, são carnes.

E assim segue a semiologia, projetando nas coisas do mundo e dos homens os pontos de vista das dicotomias de Saussure.

Antonio Pietroforte é mestre e doutor em Linguística pela FFLCH e professor da mesma instituição nas áreas de Linguística, Teoria e Análise Semiótica do Texto, e de Escrita Criativa. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Teoria e Análise Linguística, atuando principalmente nos seguintes temas: semiótica, análise do discurso, literatura e literatura brasileira.