Nascimento de Clarice Lispector

Considerada uma das maiores escritoras do século 20, é autora de obras como "A Hora da Estrela" e "Laços de Família"

Por
Alice Elias
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Nascimento de Clarice Lispector
Segundo o professor André Luis Rodrigues, "Em tudo o que escreveu (...), o misterioso, o insondável e o inefável ganham uma forma que escapa aos nossos esforços mais ingentes, não de decifração, que nunca está ao nosso alcance quando se trata de literatura, mas de entendimento do processo criativo da escritora". (Arte: Renan Braz)

Em 10 de dezembro de 1920, nasceu a jornalista e escritora Clarice Lispector. Embora tenha nascido na Ucrânia, Clarice sempre se considerou brasileira: mudou-se com sua família para o Brasil com menos de 2 anos de idade e o português foi a primeira língua que aprendeu. Considerada uma das maiores escritoras do século 20, é autora de obras como A Hora da Estrela, Laços de Família e A Paixão Segundo G. H. – na literatura brasileira, sua obra está entre as mais traduzidas e estudadas no exterior.

A partir de enredos permeados por acontecimentos cotidianos, vividos por personagens comuns, Clarice desenvolve questões existenciais, filosóficas e psicológicas, características pelas quais é muito reconhecida e prestigiada. A autora aborda também, com sensibilidade, questões sociais incontornáveis do país. “Clarice entrelaça genialmente drama social e descoberta da sexualidade feminina, carência e erotismo, desejo e criação artística. O que há de comum nestas e em outras facetas de sua obra parece ser um estilo pessoalíssimo, inconfundível, em que imagens e símbolos não só emanam dos fatos mais corriqueiros, como são expressos numa linguagem aparentemente simples e cristalina”, explica André Luis Rodrigues, professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

A literatura de Clarice é, simultaneamente, simples e complexa, instigante e inquietante. O cotidiano e a vida de pessoas ordinárias são o palco de inesgotáveis reflexões sobre o sentido da existência, atreladas ao questionamento de problemas sociais como a desigualdade, a violência e a opressão. “Hoje, nossa literatura pode se orgulhar de que dela faz parte essa obra de ficção que é seguramente uma das mais extraordinárias e instigantes produzidas no século 20, no Brasil e no mundo”. Confira a entrevista completa com o professor André Luis:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Clarice Lispector?

André Luis Rodrigues: Nascida na pequena cidade de Tchetchelnik, na Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920, Clarice Lispector chegou ao Brasil com a família quando tinha pouco mais de um ano de idade. Diante da brutal perseguição aos judeus numa terra violentamente disputada por diversos grupos e governos, seu pai não teria vislumbrado outra alternativa para a sobrevivência da família senão imigrar com a mulher e as três filhas para o continente americano, estabelecendo-se inicialmente em Maceió e depois, quando Clarice estava com quase cinco anos de idade, no Recife, cidade que a escritora adulta viria a recordar como aquela de sua infância. A primeira língua de Clarice foi o português e ela sempre se consideraria brasileira. Numa crônica de 15 de junho de 1968, Pertencer, Clarice declarou que se sentia “feliz de pertencer à literatura brasileira”. E hoje nossa literatura pode se orgulhar de que dela faz parte essa obra de ficção que é seguramente uma das mais extraordinárias e instigantes produzidas no século 20, no Brasil e no mundo.

Já com a publicação de Perto do Coração Selvagem, em 1943, quando vivia no Rio de Janeiro, Clarice Lispector despertou grande interesse em alguns de nossos mais importantes críticos literários, como o jovem Antonio Candido, que viram no romance de estreia de uma mulher praticamente desconhecida admiráveis inventividade e singularidade, ainda que pudesse ser aproximada de escritores estrangeiros como James Joyce, Virginia Woolf ou Katherine Mansfield. Nos romances e contos que depois foram sendo lançados, esses traços só se tornaram mais evidentes. Com Laços de Família, de 1960, e A Paixão Segundo G. H., de 1964, Clarice não só confirmou a sua grandeza, como deixou obras que cada vez mais fascinam leitores e críticos dos recantos mais diversos. E ao publicar A Hora da Estrela, em 1977, no ano da sua morte, Clarice também se tornou em certa medida uma escritora popular no Brasil. Levada às telas do cinema em 1985 pela diretora Suzana Amaral, numa recriação admirável, a história de Macabéa, belamente interpretada por Marcélia Cartaxo, pôde ser conhecida e apreciada mesmo por pessoas que não costumam se dedicar à leitura. Hoje, na literatura brasileira, a obra de Clarice Lispector está entre as mais traduzidas e estudadas no exterior, mas também entre as mais estimadas e enaltecidas entre nós.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Clarice?

André Luis Rodrigues: Não é tarefa simples caracterizar a escrita de Clarice Lispector. Se boa parte de sua obra é atravessada por questões existenciais, filosóficas e mesmo místicas, mas a partir de enredos que envolvem acontecimentos prosaicos e banais, vividos por personagens também comuns; há outra parte, menos extensa, mas não menos importante, que aborda, com grande sensibilidade e sem abrir mão da experimentação formal peculiar à sua prosa, questões sociais prementes e incontornáveis do nosso país. Talvez se possa mesmo dizer que esses problemas, com que ainda hoje infelizmente temos de lidar, também se deixam entrever nas obras em que sobressaem os conflitos e os dramas íntimos do sujeito. Mas é em livros como A Hora da Estrela e em crônicas como Mineirinho, das mais notáveis e pungentes que escreveu, que as preocupações sociais da escritora são alçadas ao primeiro plano. Em contos autobiográficos como Felicidade Clandestina, Restos do Carnaval e Cem Anos de Perdão, vemos como Clarice entrelaça genialmente drama social e descoberta da sexualidade feminina, carência e erotismo, desejo e criação artística. O que há de comum nestas e em outras facetas de sua obra parece ser um estilo pessoalíssimo, inconfundível, em que imagens e símbolos não só emanam dos fatos mais corriqueiros, como são expressos numa linguagem aparentemente simples e cristalina. Uma história que poderia ocorrer com qualquer leitor, como a dona de casa do célebre conto Amor, adquire, quando menos se espera, uma densidade e profundidade que dificilmente encontram paralelo em outros escritores. Em tudo o que escreveu, ainda que isso seja mais evidente na obra-prima A Paixão Segundo G. H., o misterioso, o insondável e o inefável ganham uma forma que escapa aos nossos esforços mais ingentes, não de decifração, que nunca está ao nosso alcance quando se trata de literatura, mas de entendimento do processo criativo da escritora. Não por acaso, Clarice afirma categoricamente numa conhecida crônica sobre Brasília: “A criação não é uma compreensão, é um novo mistério.” E é por isso que a sua obra continua e continuará desafiando, inquietando e fascinando leitores e críticos de diferentes tempos e lugares.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Literatura? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

André Luis Rodrigues: Creio que uma das mais importantes contribuições de Clarice Lispector foi ter dado o melhor exemplo que se poderia imaginar de que a literatura pode ser ao mesmo tempo simples (ao menos na aparência, para dizer mais uma vez) e complexa, de que ela é capaz de desencadear reflexões inesgotáveis sobre o sentido da existência humana ao ser centrada no cotidiano e nas pessoas comuns e não em seres de exceção, de que os grandes temas do pensamento e da indagação sobre o ser humano não se separam do questionamento de problemas sociais como a desigualdade, a violência e a opressão. Outra contribuição inestimável está no fato de nunca ter feito concessões ao gosto da crítica ou do público, de em nenhum momento ter se deixado levar pela tentação de produzir uma literatura mais fácil e popular, e ao tornar-se tão lida e conhecida, ter demonstrado que também é possível para uma escritora considerada difícil ser razoavelmente bem-sucedida junto a um público mais amplo. E tudo isso repercute hoje no interesse crescente e constante em sua produção. No Brasil e no exterior, parecem multiplicar-se exponencialmente os estudos e traduções de sua obra, mostrando a sua atualidade e, confirmando o lugar-comum, mas nesse caso verdadeiro, de ter sido uma mulher e escritora muito à frente de seu tempo. Numa crônica de 14 de setembro de 1968, Clarice conta da felicidade de ter ouvido de Guimarães Rosa a declaração inesquecível de que a lia “não para a literatura, mas para a vida”. Se a vida em geral e a vida humana em particular figuradas em Clarice Lispector são, talvez mais do que na obra de qualquer outro escritor, de uma riqueza e complexidade extraordinárias, feita da mistura inextricável de vida e de morte, de bem e de mal, de amor e de ódio, de êxtase e de nojo, e se essa figuração alcança um nível estético só comparável àquele atingido por escritores como o próprio Rosa, podemos todos seguir lendo Clarice, e nos encantando com a obra, tanto para a literatura como para a vida.

André Luis Rodrigues é mestre e doutor em Literatura Brasileira pela FFLCH e desenvolveu projeto de pesquisa em Teoria e Crítica Literária (pós-doutorado) na mesma instituição. Foi Visiting Research Fellow no Institute of English Studies, School of Advanced Study, University of London. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira. É autor de Ritos da Paixão em Lavoura Arcaica. Atualmente, é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo.