Nasce Ovídio

O poeta romano “que canta a história do mundo” destacou-se por seu tom inovador e descompassado com as normas sociais da época, inspirando grandes autores, como Shakespeare e Dante Alighieri

Por
Lara Tannus
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Ovídio
“Se Virgílio, com a sua Eneida, se impõe como grande modelo da épica, ao cantar a origem de Roma, Ovídio, por sua vez, rivaliza, ao cantar a história do mundo, 'desde a primeira origem do mundo' até o seu tempo”, analisa o professor Alexandre Hasegawa. (Arte: Renan Braz)

Quando pensamos em literatura latina, logo aparecem obras que enaltecem o Império Romano, como Eneida, de Virgílio. Mas Ovídio, autor de Metamorfoses, foi um dos poetas da corte romana que exploraram questões da humanidade abrangendo temas como as relações amorosas em A Arte de Amar.

Nascido em 43 a.C., tornou-se tão renomado quanto seus colegas Virgílio e Horácio. Destacou-se por seu tom inovador - e muitas vezes descompassado - com as normas sociais da época. Desse modo, passou a desagradar o rei Augusto, que o condenou ao exílio. Mas suas obras se perpetuaram na história a ponto de inspirar outros grandes escritores como Shakespeare, Dante Alighieri e artistas renascentistas. 

O professor Alexandre Hasegawa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP, comenta as obras do grande poeta romano e contextualiza sua importância no universo literário. Veja a entrevista abaixo:

Serviço de Comunicação Social: Quais as obras do autor que você considera mais importantes?  

Alexandre Hasegawa: Ovídio é mais conhecido pelas Metamorfoses, obra, sem dúvida alguma, que tem destaque em sua produção poética, não só pela extensão, mas também por ser a única em hexâmetro datílico que escreveu, considerada uma inovação no gênero épico. 

Das obras em dístico elegíaco, é difícil dizer qual ou quais são mais importantes, mas as Heroides, por exemplo, são muito particulares, em que as heroínas são personagens mitológicas, que escrevem epístolas a seus amantes, como a primeira de Penélope a Odisseu ou a sétima de Dido a Enéias. 

São relativamente bem conhecidos Os Amores e A Arte de Amar, obras que foram muito traduzidas em português. 

Os Remédios do Amor, embora menos conhecidos, são também muito particulares, pois o magister amoris (o mestre do amor), depois de ensinar a amar, procura curar os apaixonados, dizendo jocosamente (v. 43): discite sanari, per quem didicistis amare (aprendei a ser curados com quem aprendestes a amar). 

Por fim, há a chamada obra do exílio com as Epístolas do Ponto e Tristezas, obras que compõem depois de ter sido condenado ao desterro por Augusto, em que lamenta a relegatio (proscrição sem confiscação de bens).

Serviço de Comunicação Social: Qual a importância do autor e das suas obras na história da literatura? Teve alguma grande contribuição teórica ou obra que mudou a forma de se fazer e pensar literatura?

Alexandre Hasegawa: Ovídio é um grande inovador. Já se destacaram muito pelos estudiosos as primeiras palavras das Metamorfoses: In nova (em novos). O poeta diz (vv.1-2): "O ânimo me leva a cantar as formas mudadas em novos corpos". O adjetivo, porém, que abre a obra só é esclarecido quando se chega ao segundo verso: corpora (corpos). 

Assim, no início, só com o primeiro verso, o leitor não sabe qual é a novidade. Mais do que isso: como as palavras eram escritas umas ao lado das outras, poderíamos ler o verbo inovar no imperativo: Innova (inova ou renova), que é a proposta de Ovídio com as Metamorfoses: uma inovação no gênero épico. 

Se Virgílio, com a sua Eneida, se impõe como grande modelo da épica, ao cantar a origem de Roma, Ovídio, por sua vez, rivaliza, ao cantar a história do mundo, "desde a primeira origem do mundo" até o seu tempo.

Essa proposta de inovação também está presente em sua obra elegíaca, quando explora os limites desse gênero em diálogo com outros, como na A Arte de Amar, em que a elegia é renovada pela mescla com o didático. Não à toa um poeta da estatura de Dante Alighieri, em sua Divina Comédia (Inf. IV. 90), ao destacar os melhores poetas até o seu tempo, elenca os seguintes: Virgílio, seu mestre e guia, Homero, Horácio, Ovídio e Lucano. 

Ovídio é modelo para os poetas medievais, Shakespeare e nossos Árcades. Para além das Letras, há vários estudos que mostram como Ovídio também serviu de modelo para os pintores do Renascimento: ut pictura poesis (a poesia é como a pintura).