Nascimento de Rubem Braga

Autor de obras como "Ai de ti, Copacabana" e "Recado de Primavera", Rubem Braga é considerado o maior cronista do século 20

Por
Alice Elias
Data de Publicação

Nascimento de Rubem Braga
Segundo Rafael Ireno, "por tratar das coisas pequenas da vida, do cotidiano, a crônica está mais perto de nós e por isso contém em si um enorme potencial de humanização". (Arte: Alice Elias)

 

Em 12 de janeiro de 1913, nasceu Rubem Braga, considerado o maior cronista do século 20. Autor de obras como Ai de ti, Copacabana, As Boas Coisas da Vida e Recado de Primavera, seu arquivo é composto por mais de quinze mil escritos. Rubem Braga começou sua carreira jornalística ainda adolescente e, por conta disso, retratou os principais acontecimentos históricos nacionais e internacionais do século passado.

Ainda que caracterizada por uma linguagem simples e direta, sua escrita buscava captar a beleza presente no cotidiano e compartilhá-la com o leitor. As crônicas de Rubem Braga frequentemente se assemelham a um diálogo, uma conversa íntima entre autor e leitor: “é muito comum que o cronista se dirija ao público, aos senhores e às senhoras que o leem diariamente. Daí, a sensação de intimidade, de conversa, de ouvir uma confissão, um segredo do Velho Braga – na realidade, as crônicas são um grande esforço de comunicação e diálogo”, afirma Rafael Ireno, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira abaixo a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Rubem Braga?

Rafael Ireno: Ele foi o maior cronista do século 20. Esta afirmação não é um exagero nem se pensarmos na qualidade estética de Rubem Braga, nem se considerarmos a quantidade de textos escritos ao longo de sua vida – mais de quinze mil compõem o arquivo do escritor (o segundo maior acervo da Casa Rui Barbosa, atrás somente da personalidade que dá nome a Fundação).

Foi ele quem melhor explorou e expandiu as possibilidades da crônica no Brasil. Nascido em Cachoeiro do Itapemirim, em 1913, começou a carreira jornalística com apenas quinze anos de idade no “Correio do Sul”, gazeta de sua cidade natal, e não parou mais, trabalhando nos principais periódicos do país e se tornando um nome incontornável dos cadernos culturais. Com efeito, poucas são as obras que possuem uma amplitude tão grande quanto a sua produção. Através dos olhos do cronista capixaba presenciamos os principais acontecimentos históricos, nacionais e internacionais do século 20, compartilhados, diversas vezes, no calor da hora: muito jovem, por exemplo, foi repórter durante a Revolução Constitucionalista nos anos 30. Mais tarde, também trabalhou como correspondente na Segunda Guerra Mundial. Ali, em 1945, acompanhou de perto a rotina dos soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB), na campanha da Itália, ao lado dos aliados. Depois, em 1950, voltou à Europa para capturar a complexa atmosfera do instante pós-guerra. Na efervescência de Paris, entrevistou os principais intelectuais e artistas daquela época, como Jean-Paul Sartre, Pablo Picasso, Marc Chagal, Jacques Prévert, Jean Cocteau, Juliette Gréco entre outros. Fez tudo isso sem perder, no entanto, sua voz. O cronista conseguiu imprimir um ritmo próprio nas coisas que escrevia, cheias de lirismo e de respeito pela experiência humana, onde quer que a encontrasse.

Rubem Braga não parava muito num só lugar. Além da Europa, outras viagens vieram: Argentina, Estados Unidos, Angola, Lisboa etc. Durante essas andanças nunca parou de escrever para o jornal. Pelo contrário, sua produção aumentava com o passar do tempo. Nos anos 50 e 60, ele ajudou substancialmente a consolidar o gênero – inclusive como fundador da “Editora do Autor", a casa editorial de muitos cronistas. E ainda, quando assumiu funções diplomáticas no Chile e no Marrocos em 1955 e 1961 respectivamente, continuou a bater a máquina de escrever diariamente. Suas contribuições sobreviveram até mesmo a um certo declínio do gênero nos anos 70. Ele, o sabiá da crônica, continuou a escrever até as vésperas de sua morte, em 1990.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Rubem Braga?

Rafael Ireno: Acho que uma das definições mais bonitas sobre a escrita do cronista pertence a Lúcia Miguel Pereira, num ensaio sobre os primeiros 50 anos da literatura brasileira no século 20, publicado no “Correio da Manhã”, ao observar uma tendência nas linhas de Rubem Braga de privilegiar a palavra ao invés da frase, a nota sobre a melodia, a cor antes da pintura. Com razão, há esta economia poética em sua obra; há um desafio de se expressar da melhor maneira possível, com a menor quantidade de recursos disponíveis ou, como ele próprio formula em O Pavão, “[...] atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos”, elegendo a simplicidade como horizonte estético. O que tem a ver, evidentemente, com sua atividade profissional, pois escrever para o jornal impõe sérias contingências temporais e espaciais para a escrita: a frequência de publicações, o número pré-definido de sinais, os prazos etc. Essa condição, de certo modo, endossou a dinâmica tão bem percebida pela ensaísta, de concentrar sua escrita no menor elemento capaz de dar sentido às coisas – a palavra. Isso deságua num certo ideal literário, herdado conscientemente da poesia de Manuel Bandeira, de se valer de um vocabulário cotidiano, de preferência numa ordem direta, sem rodeios, nem firulas, mas que ainda guardava certa ambição de capturar o sublime do dia a dia, que vai acontecendo nas ruas, na frente de todos, todos os dias, e que, eventualmente, se perde na velocidade da modernidade.

Assim, a escrita de Rubem Braga se caracteriza por esse cuidado em escolher a palavra certa, de ser direto, simples e, ao mesmo tempo, não deixar escapar as belezas do cotidiano, uma mulher que passa, um passarinho, uma borboleta, o pé de milho que nasce inesperadamente em sua varanda. E, o mais importante, tudo isso é feito buscando compartilhar a experiência com o leitor – neste sentido, é muito comum que o cronista se dirija ao público, aos senhores e às senhoras que o leem diariamente. Daí, a sensação de intimidade, de conversa, de ouvir uma confissão, um segredo do Velho Braga – na realidade, as crônicas são um grande esforço de comunicação e diálogo.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Literatura? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Rafael Ireno: Uma vez, num colóquio, um professor questionou se ainda valia a pena ler Rubem Braga na atualidade. Tal tipo de indagação é motivada por uma compreensão limitadora do que é lirismo, às vezes, do que é literatura. Por detrás desta forma de pensar, existe a ideia de que os textos de Braga, por serem líricos – tanto no que se refere à expressão de sentimentos individuais, quanto pela perseguição das belezas do mundo, naturais ou não –, seriam ingênuos ou, nalguns casos extremos, alienados. Em outras palavras, infere-se que as crônicas desviam das questões importantes do ser humano. Evidentemente, não compartilho dessa visão. Prefiro concordar com Antonio Candido, no ensaio A Vida ao Rés do Chão, quando defende que, por tratar das coisas pequenas da vida, do cotidiano, a crônica está mais perto de nós e por isso contém em si um enorme potencial de humanização.

Aliás, acho contraproducente discutir a razão de se ler ou não esse autor, pelo simples fato de que Rubem Braga foi muito lido no passado e ainda o é no presente (inclusive, os cronistas atuais também são ávidos leitores do autor capixaba). Basta ir em qualquer livraria, abrir qualquer uma de suas antologias para ver que o número da edição é alto, superior a muitos romances, pois, até hoje, a crônica faz sucesso entre os leitores. O questionamento, então, deveria ser invertido: por que este gênero apreciado pelo público antigo e contemporâneo recebeu pouquíssima atenção da crítica até hoje? Ou ainda: o que o olhar da crítica universitária busca na literatura? À vista disso, parece-me obrigatório, nas reflexões sobre a crônica, pensar também os alicerces da teoria literária brasileira e, igualmente, os limites do entendimento que temos do que é ou deixa de ser a própria Literatura.  
Infelizmente, como existem poucos estudos sobre Rubem Braga, é difícil dimensionar a sua contribuição para a literatura. Sabe-se, por exemplo, que, além de talentoso com a palavra, o cronista foi um homem muito bem inserido socialmente, sobretudo, nos meios literários, mantendo diálogos, correspondências e parcerias com poetas, críticos, editores etc. Isso ao ocupar posições diferentes a cada vez: ora como jornalista, entrevistando alguém; ora como editor, discutindo os bastidores das publicações em sua casa editorial; e, até mesmo, como júri de um concurso de poesia, organizado em uma das revistas em que trabalhava (não se pode deixar de frisar também os laços afetivos com Vinícius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, entre outros). Quer dizer, Rubem Braga se relacionou com as principais pessoas da literatura brasileira (e internacional) do seu tempo; sua contribuição sabidamente foi grande. Acontece que é possível cogitar que ela tenha sido, provavelmente, maior do que podemos afirmar neste instante.
Em parte de minha tese, pretendo pensar a obra de Rubem Braga nos anos 50, demonstrando como sua produção dialoga com as principais questões artísticas da época e como suas crônicas podem ser lidas como uma resposta aos impasses estéticos daquele momento. Na passagem da primeira para a segunda metade do século 20, vive-se uma espécie de crise estética no Brasil: grosso modo, com o desaparecimento de Mário de Andrade em 1945, com a industrialização, com a chegada da televisão e do cinema e com a urbanização do país, começa-se a discutir intensamente o legado modernista, isto é, como as conquistas formais das décadas anteriores deveriam se adaptar ou não às mudanças do mundo pós-guerra. Rubem Braga, sendo de uma geração intermediária, jovem nos anos 30 e maduro nos 50, experimentou essas modificações e soube se movimentar através delas, criando uma espécie de terceiro caminho entre a especialização da forma (concretismo/abstracionismo) e o engajamento (Centro Popular de Cultura/ PCB). O cronista soube cultivar, em sua obra, um espaço a mais para a poesia na sociedade brasileira, uma estância a mais para o lirismo da literatura brasileira – herança direta de Manuel Bandeira, portanto, modernista. Mais do que isso, em minha pesquisa, gostaria de lançar as bases de uma discussão relacionando a época de ouro da Crônica, a saber, os anos 50 e 60, a uma certa ideia de país; certa concepção de como deveria ser o Brasil; ideia de formação mesmo. Aqui, acredito, encontra-se a principal contribuição de Rubem Braga na literatura – onde reside o seu lirismo mais intenso: sua escrita é uma tentativa de oferecer um espaço menos desigual para a poesia, observando as coisas, as pessoas e as palavras do dia a dia, reagindo a elas, num regime sempre de diálogo, com o qual visava atingir um leitor médio, sendo que a recepção – o público – é um elemento indispensável à constituição da crônica.
Não por acaso, hoje, continuo a acreditar que vale a pena ler Rubem Braga – e os cronistas de maneira geral –, pois, nestas produções, existe uma ideia de Brasil democrático. Ideia, é verdade, marcada pelo seu tempo e cheia de contradições, no entanto ainda importante, principalmente nos tempos atuais. 

Rafael da Cruz Ireno é mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH, e atualmente faz um doutorado em cotutela sobre poesia e política nas obras de Rubem Braga e Jacques Prévert entre a Universidade de São Paulo e Université Sorbonne Nouvelle, Paris 3. Tem experiência na área Literatura Brasileira e Francesa, atuando principalmente nos seguintes temas: Crônica, Rubem Braga, Poesia, Jacques Prévert, Literatura e Sociedade.

Para quem se interessar sobre o tema, sua dissertação de mestrado está disponível em Crônicas da guerra na Itália: estudo sobre o estilo de Rubem Braga e a história dos pracinhas.