Promulgado o primeiro Código Eleitoral do Brasil

Criado na Era Vargas, o primeiro Código Eleitoral introduziu o voto secreto, o direito das mulheres ao voto, a Justiça Eleitoral e o sistema proporcional para cargos legislativos

Por
Pedro Fuini
Data de Publicação

Primeiro Código Eleitoral do Brasil
O direito das mulheres ao voto foi uma das inovações introduzidas pelo primeiro Código Eleitoral, em 1932 (Imagem: TSE/Arte: Pedro Fuini)

A Justiça Eleitoral no Brasil, alvo de ataques e polêmicas nos últimos anos, chega ao 91º ano desde sua criação, em 24 de fevereiro de 1932. Criada para organizar e fiscalizar as eleições de forma independente, a instituição foi uma das inovações trazidas pelo primeiro Código Eleitoral do Brasil, promulgado naquela data. Junto dela vieram: o voto secreto, o voto feminino, o alistamento eleitoral obrigatório, a representação classista e o sistema proporcional para cargos legislativos. Os analfabetos, entretanto, ainda estavam excluídos do direito de votar.

O Código Eleitoral surgiu após a Revolução de 1930, durante a Era Vargas (1930-1945), que inaugurou uma nova fase política do Brasil, substituindo a Primeira República ou República Velha (1889-1930). As eleições daquele período eram lembradas pelas fraudes e pela baixa competitividade e participação política, visão muito difundida, mas que é contestada pelo professor Paolo Ricci, do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. 

De acordo com Ricci, estudos recentes apontam que a ausência de competitividade era anterior às eleições, quando ocorriam negociações em torno das candidaturas que seriam lançadas e os partidos disputavam o controle das mesas eleitorais, responsáveis pelo alistamento, recepção e contagem dos votos. O mecanismo eleitoral, no geral, era respeitado e as eleições transcorreram normalmente. “Para estudar aquele período é importante deixar de lado noções pré-constituídas ou definições de como ‘deveriam ser’ as eleições e considerar a realidade dos fatos”, explica.

As críticas ao sistema eleitoral se intensificaram na década de 1920, porém focadas na falta de espaço das oposições e não na baixa participação política dos cidadãos - menos de 8% da população estava apta a votar, segundo Ricci. “Mais do que uma necessidade de intervir na relação entre política e cidadania, sentia-se a necessidade de repensar a lógica da disputa política entre as elites”. É com essa óptica que o Código surge em 1932, com um mecanismo que permitiu às oposições competir com chances reais de ingressar no Congresso, o sistema proporcional. A intervenção dos políticos sobre o processo diminuiria com a justiça eleitoral, já que o custo para os políticos cometerem atos fraudulentos seria maior.

Código Eleitoral de 1932
(Imagem: TRE-SP)

O Primeiro Código Eleitoral, no entanto, só seria aplicado em 1933 e 1934, já demonstrando seus efeitos nas eleições daqueles anos. Em 1937, Getúlio Vargas daria o Golpe do Estado Novo, iniciando um período autoritário sem eleições que duraria até 1945. Na transição para a democracia, as regras introduzidas pelo Código Eleitoral de 1932 serviram de modelo para as legislações posteriores, sendo expandidas com o tempo. “Não há dúvida de que ele deva ser considerado como elemento-chave para entendermos a transição para modelos competitivos modernos, típicos da democracia”.

Confira a entrevista completa com o professor Paolo Ricci:

 

Serviço de Comunicação Social: O que levou à criação do Código Eleitoral de 1932? Como ocorriam as eleições anteriores?

Paolo Ricci: Em primeiro lugar, é importante considerar que o mecanismo eleitoral sempre foi respeitado. Antes do Código, durante a Primeira República (1889-1930), as eleições ocorreriam conforme o calendário eleitoral, a cada 3 anos para a eleição dos deputados federais e a cada 4 para a escolha do Presidente da República. Ainda hoje, há uma visão bastante pessimista daquele período e das dinâmicas eleitorais, desqualificando-as por serem pouco participativas (menos de 8% da população era alistada e ainda menos votava), fraudulentas, sem competição política efetiva, com fortes restrições às liberdades individuais, pois o eleitor era condicionado pelos coronéis locais. Estudos recentes têm revertido esse quadro. Partindo de dados e informações oficiais da época, observou-se que a ausência de eleições presidenciais competitivas se explica pela disputa anterior ao pleito. Líderes nacionais e estaduais se reuniam para negociar os candidatos à presidência meses antes da data fixada para o pleito. Era nessa fase que as disputas entre os estados ocorriam, nem sempre a favor de São Paulo ou Minas Gerais. Acordando-se, previamente, em torno da chapa presidencial, as eleições ocorriam sem perturbações, salvo os casos em que as elites não chegavam a um acordo, como em 1930. Outros estudiosos, olhando para as eleições para a Câmara dos Deputados, têm observado níveis significativos de competição política nos estados, assim como tem sugerido que a própria fraude maciça praticada pelos políticos da época deva ser interpretada como disputa política pelo controle da burocracia eleitoral, isto é, das fases eleitorais que envolviam o alistamento até a contagem dos votos e a distribuição dos diplomas. Na prática, partidos e candidatos buscam controlar o alistamento, fazendo as comissões de alistamento; controlar a votação e os votos, fazendo as mesas eleitorais cuja função era a de organizar a eleição e contabilizar os votos no âmbito local. Estes estudos são importantes pois nos ajudam a entender que para estudar aquele período é importante deixar de lado noções pré-constituídas ou definições de como "deveriam ser" as eleições e considerar a realidade dos fatos.

Nos anos 1920, várias críticas foram feitas a esse sistema. A maioria delas não olhava para o eleitor, mas para as práticas eleitorais que não deixavam espaço para as oposições. Mais do que uma necessidade de intervir na relação entre política e cidadania, sentia-se a necessidade de repensar a lógica da disputa política entre as elites. Se, como os cientistas políticos afirmam, as eleições são mecanismos que legitimam o conflito entre grupos e interesses divergentes, anulando-a ou reduzindo ao mínimo o risco do colapso do regime, o Código surge nessa óptica. O ponto inovador é a previsão de mecanismos eleitorais que permitam às oposições competirem com chances reais de ingressar no Congresso. Em particular, justiça eleitoral e sistema proporcional. 
 

Serviço de Comunicação Social: Quais foram as inovações trazidas pelo Código e o que foi preservado por essa legislação?

Paolo Ricci: No livro que coordenei recentemente (O Autoritarismo eleitoral dos anos 1930 e o Código Eleitoral, Curitiba, Appris, 2019), um grupo de pesquisadores analisou as inovações introduzidas no Código: a proporcional, o voto secreto, a representação classista, o voto feminino e o alistamento obrigatório. Destas reformas eu destacaria duas: a proporcional e a justiça eleitoral. A primeira por facilitar a entrada das oposições no Congresso; a segunda por diminuir a intervenção dos políticos sobre o processo eleitoral, agora administrado por um órgão independente. Ainda que faltem evidências sobre sua suposta autonomia, é certo que a Justiça Eleitoral tem como efeito principal o aumento do custo para os políticos cometerem atos fraudulentos. A exemplo disso, basta citar os casos em Espírito Santo, Santa Catarina e Mato Grosso cujas eleições foram anuladas em 1933 por violações maciças das normas por parte do governo.

Não que as outras reformas não fossem importantes. Simbolicamente o alistamento feminino é uma medida que confere legitimidade à entrada da mulher na política. Mas não podemos ficar no marco da norma. Fato é que poucas mulheres se alistaram (menos de 20% do eleitorado) como também devemos lembrar que, na época, muitas mulheres exerciam funções domésticas no lar e sem remuneração, sendo sua atuação política condicionada pelo marido. O voto secreto, não foi tão secreto assim. Ele permitiu que o eleitor pudesse votar sem ser visto (entrando numa cabine isolada chamada de gabinete indevassável), mas cédulas eleitorais ainda eram preparadas e distribuídas pelos próprios candidatos e políticos.

 

Serviço de Comunicação Social: Quais os efeitos das novas regras eleitorais nos pleitos seguintes?

Paolo Ricci: O código foi aplicado apenas em 1933 e 1934. Naquelas eleições, o efeito mais importante foi que os governistas (em cada estado representados pelos partidos organizados pelos interventores), não apenas não conseguiram fazer 100% das cadeiras no estado (algo comum na Primeira República), mas perderam em alguns estados. Parte disso se deve ao mecanismo proporcional, mas também à forte mobilização de partidos novos que se organizaram no final de 1932 após o conflito paulista.

Entretanto, apesar do golpe de 1937, não podemos deixar de notar que as regras do Código serviram de modelo na transição para a democracia em 1945. Os fundamentos do Código foram mantidos e expandidos com o tempo. Não há dúvida de que ele deva ser considerado como elemento-chave para entendermos a transição para modelos competitivos modernos, típicos da democracia.

Paolo Ricci é professor Doutor do Departamento de Ciência Política da FFLCH. É graduado em Ciência Política pela Università degli Studi di Bologna (1997), mestre em Ciência Política (2001), doutor em Ciência Política (2006) pela FFLCH e com pós-doutorado pela Universidade de Oxford (2015). Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Ciência Política Comparada, dedicando-se principalmente aos seguintes temas: processo legislativo, partidos políticos, história das instituições políticas, democracia e autoritarismo, com particular atenção para o fenômeno do populismo no Brasil e em perspectiva comparada.