Nascimento de Émile Durkheim

Autor de obras como "As Regras do Método Sociológico", Durkheim é considerado o pai da Sociologia

Por
Alice Elias
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Nascimento de Émile Durkheim
Segundo Romulo Lelis, "a matriz de pensamento criada por Durkheim constitui, hoje, uma das grandes tradições de pesquisa em ciências sociais". (Arte: Renan Braz)

Em 15 de abril de 1858, nasceu Émile Durkheim, considerado o pai fundador da Sociologia. Autor de obras multifacetadas como As Regras do Método Sociológico, Da Divisão do Trabalho Social e O Suicídio, até hoje a proposta de Durkheim é revisitada e reinterpretada por especialistas.

O método sociológico de Durkheim é caracterizado pelo uso do método comparativo: uma vez que experimentos isolados em laboratório não são possíveis nas ciências sociais, a comparação dos fenômenos sociais, metodicamente conduzida, seria a forma de atingir resultados equivalentes aos de um experimento clássico. A partir desse princípio comparativo, Durkheim investigou as relações entre o direito penal e a divisão do trabalho; entre o suicídio e a adesão a grupos sociais; ou, ainda, entre as formas rituais indígenas e modernas.

“Talvez a maior contribuição de Durkheim para as ciências sociais não tenha sido elaborar uma teoria específica, mas sim uma matriz de pensamento que resiste à nossa completa compreensão e, por essa razão, permanece sempre aberta a novas leituras, críticas e interpretações”, afirma Romulo Lelis, doutor em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Émile Durkheim?

Romulo Lelis: Eu diria que para essa pergunta há, pelo menos, duas versões sobre quem foi Durkheim. Na primeira, Durkheim é considerado o pai fundador da Sociologia. Teórico da ordem, do holismo metodológico, positivista, evolucionista, funcionalista, conservador, ideólogo da Terceira República Francesa: são alguns dos termos mais comuns usados para caracterizar o autor. Essa versão é tão disseminada que é quase impossível não se deparar com alguma ou a maioria dessas caracterizações para se referir a Durkheim, seja nos comentadores de sua obra, nos livros didáticos, nas aulas, ou mesmo na internet.

Na segunda versão, Durkheim é apenas um dentre os inúmeros autores do final do século 19 que elaboraram uma proposta de Sociologia. E, para um judeu do interior da França, nada que tenha ocorrido durante sua vida levaria Durkheim a suspeitar que seria a sua proposta que se tornaria o ponto de referência sobre o que veio a ser a Sociologia para as futuras gerações. Apesar da formação em Filosofia, Durkheim acabou se tornando professor de Educação, atuando em cadeiras destinadas à formação de professores. Suas duas candidaturas ao Collège de France, posição que lhe permitiria se dedicar exclusivamente a seu próprio projeto, falharam. Soterrado de trabalho e sofrendo periódicas crises de esgotamento – semelhantes ao burnout –, trabalhou até seu falecimento pouco tempo antes do fim da Primeira Guerra. Apesar desses reveses, Durkheim foi capaz de produzir uma obra extensa e multifacetada; de organizar um grupo de especialistas que reinterpretaram e estenderam sua proposta de Sociologia para ramos específicos; de se engajar e tomar partido nos debates políticos de sua época – contra o antissemitismo e contra a guerra. Foi um ferrenho crítico do utilitarismo e da bruta dominação das pessoas, seja pelo Estado, seja pelas elites que se comportam como castas; era, ao contrário, simpático ao socialismo de Saint-Simon e ao individualismo moral de Kant.

Assim, não deixa de ser curioso como Durkheim foi uma figura outsider de sua época que, no entanto, foi posteriormente consagrada e passou a figurar no panteão da ordem para as gerações subsequentes.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam o método sociológico de Durkheim?
Romulo Lelis: Durkheim é conhecido por ter publicado um livro inteiramente dedicado ao tema, intitulado As Regras do Método Sociológico (1895). No entanto, boa parte do livro trata de uma reflexão epistemológica sobre como reconhecer e identificar os fenômenos sociais como um domínio sui generis, independente dos fenômenos da consciência e do comportamento individual – investigados pela Psicologia –, e que mereceria, por essa razão, uma ciência específica para investigá-lo – a Sociologia. Nesse sentido, o uso retórico que Durkheim faz de noções como as de “fato social” e “coisa exterior” visa tornar inteligível sua posição para uma audiência que tende a pensar o contrário dele, isto é, que os fenômenos sociais são produto da interação entre indivíduos. Fazendo uma analogia com a distinção entre Química e Biologia, seria como estabelecer a investigação dos organismos complexos – a evolução das espécies, por exemplo – como um domínio sui generis, que seria irredutível à investigação da composição química desses organismos, por exemplo.

O que caracteriza seu método de trabalho é, sem dúvida, o uso do método comparativo. Nas ciências sociais, não é possível realizar experimentos controlados como aqueles realizados em laboratório, nos quais o cientista pode isolar artificialmente as variáveis que quer investigar para, assim, poder testá-las. Diante dessa impossibilidade, Durkheim advoga que a comparação dos fenômenos sociais, se metodicamente conduzida, seria o meio da Sociologia fazer o uso do raciocínio experimental e, assim, chegar a resultados equivalentes aos de um experimento clássico. Com efeito, ele desdobrou esse princípio comparativo para investigar as relações entre o direito penal e a divisão do trabalho a partir da comparação entre códigos jurídicos; entre o suicídio e a adesão a grupos sociais comparando as taxas de suicídio dos anuários estatísticos de diferentes localidades; ou, ainda, entre as formas rituais indígenas e modernas comparando documentos etnográficos. Ainda que as formas de estabelecer comparações e controlá-las sejam objeto constante de discussão, o método comparativo continua sendo uma das principais ferramentas explicativas em ciências sociais até hoje: as técnicas de modelagem dos dados certamente avançaram muito desde a época de Durkheim, mas o princípio da abordagem comparativa continua, em grande medida, o mesmo.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Sociologia? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Romulo Lelis: Talvez a maior contribuição de Durkheim para as ciências sociais não tenha sido elaborar uma teoria específica, mas sim uma matriz de pensamento que resiste à nossa completa compreensão e, por essa razão, permanece sempre aberta a novas leituras, críticas e interpretações. Há mais de um século, cada geração produz uma maneira de entender Durkheim e, junto com ela, seus defensores e críticos; mas produz também, em menor medida, inovadores: aqueles que vão reinterpretar o seu legado, explorar partes ainda obscuras ou negligenciadas de seu pensamento e, a partir daí, produzir uma nova maneira de compreender Durkheim que era, até então, inacessível para sua própria geração. Essa nova maneira pode se tornar consenso para a geração seguinte, receber novas críticas, novos defensores, novos inovadores… e assim por diante. Tal matriz de pensamento criada por Durkheim constitui, hoje, uma das grandes tradições de pesquisa em ciências sociais. No fim das contas, pensar com ou contra Durkheim seriam ambas maneiras de fomentar o desenvolvimento da tradição durkheimiana.

No que diz respeito às questões prementes da nossa geração, tomemos como exemplo os debates acerca do eurocentrismo da teoria social clássica. Esses autores, quase todos homens europeus, têm sido acusados de criarem concepções de modernidade e de razão cujas pretensões de universalidade serviram, na verdade, para legitimar a dominação europeia em escala global, tendo por consequência o colonialismo, a destruição do meio ambiente e dos modos de vida dos povos do mundo. Ainda que pareça irresistível apontar, mais uma vez, Durkheim como um dos responsáveis pela perpetuação dessa visão, sua obra apresenta, já naquela época, uma alternativa crítica para lidar com essas questões. O livro chave aqui não é senão As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912), no qual Durkheim sustenta, de maneira um tanto inusitada, que a vida moderna europeia se baseia em um conjunto de elementos semelhantes àqueles que podiam ser observados, na mesma época, entre povos indígenas australianos. Segundo Durkheim, ideias como as de liberdade, igualdade e fraternidade foram coletivamente produzidas e assimiladas na Europa em rituais de larga escala semelhantes às grandes festas celebradas pelos indígenas no deserto australiano. Ainda que essa afirmação possa soar estranha, foi preciso um evento da magnitude da Revolução Francesa, considerado por Durkheim o grande ritual de fundação da sociedade moderna, para que esse conjunto de ideais modernos pudesse florescer. Assim como os indígenas australianos, a “tribo moderna” também possui seus rituais, mitos e símbolos que organizam sua forma de pensar e agir no mundo. Para Durkheim, portanto, uma visão cientificamente informada sobre a sociedade moderna deve considerar sua congruência e continuidade em relação às sociedades indígenas – não sua suposta excepcionalidade.

Enfim, demorou quase um século para que nós pudéssemos compreender essa face do trabalho de Durkheim. Extrair todas as implicações dessa descoberta para a teoria social é trabalho para os próximos 100 anos.

Romulo Lelis é doutor em Sociologia, bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela FFLCH. Atualmente, é pesquisador de pós-doutorado vinculado ao International Postdoctoral Program e ao Núcleo de Religiões no Mundo Contemporâneo, ambos sediados no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Social, História da Sociologia e Sociologia da Religião.