Publicação de "O Diário de Anne Frank"

No topo da lista dos livros independentes mais vendidos, “O Diário de Anne Frank" vendeu mais de trinta milhões de cópias e foi traduzido em setenta línguas diferentes

Por
Alice Elias
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O diário de Anne Frank
"Anne Frank não tinha ideia do caminho que seu diário percorreria, no grande tempo da cultura, como uma poderosa memória da crueldade que se alastrou pela Europa durante a Segunda Guerra Mundial", explica Denísia Moraes dos Santos. (Arte: Alice Elias)

 

O que começou como o despretensioso diário de uma adolescente que relatava a sua realidade em meio à Segunda Guerra Mundial, se tornou não só um valioso documento histórico, mas também um símbolo de resistência em um mundo repleto de intolerância, racismo e injustiça social. Encontrado no sótão em que Anne Frank e sua família se escondiam da perseguição nazista, O Diário de Anne Frank foi lançado em 1947, dois anos após a morte da menina.

Tal qual muitas das famílias que foram obrigadas a abandonar seus lares para se refugiarem do governo de Adolf Hitler, líder do nazismo na Alemanha, Anne Frank e sua família se estabeleceram em Amsterdã, capital da Holanda. Pouco depois, soldados alemães invadiram o país, levando a família a se esconder em um sótão. Neste período, que se estendeu de junho de 1942 a agosto de 1944, ela escreveu em seu diário as tensões de viver confinada, sensações do amadurecimento e as notícias que só recebia através da rádio. Em 4 de agosto de 1944, o esconderijo foi descoberto e entregue aos soldados nazistas. Anne e sua família foram separados e encaminhados para campos de concentração diferentes, e em fevereiro do ano seguinte a menina morreu de tifo.

“A menina Anne Frank não escreveu um mero discurso sobre si mesma, pronunciado do interior da vida. Ao escrever o diário, Anne Frank se posicionou axiologicamente frente à própria vida e precisou dar a ela um acabamento, o que só foi possível se distanciando dela. Nesse caso, a escrita do diário permitia à menina olhar-se de fora com certo excedente de visão”, afirma Denísia Moraes dos Santos, doutora em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Anne Frank?

Denísia Moraes dos Santos: Anne Frank representa para uma legião de leitores de O Diário de Anne Frank, espalhados por toda parte do mundo, a dimensão do significado da palavra “resistência” em um mundo marcado por intolerância, racismo e injustiça social. Nasceu em 12 de junho de 1929, em Frankfurt, na Alemanha.

Durante o período que esteve escondida em um sótão em Amsterdã com a família para fugir da perseguição nazista aos judeus, ela escreveu um diário. Sua escrita revela não apenas as sensações de uma adolescente amadurecendo e vivenciando conflitos comuns nesta fase da vida, mas sobretudo as tensões que sobrevinham a oito pessoas confinadas em um pequeno espaço. Era preciso saber como se manter dentro de um esconderijo sem chamar a atenção. Medo, tensão, angústia, ansiedade são alguns dos sentimentos vivenciados por Anne Frank.

Anne Frank não tinha ideia do caminho que seu diário percorreria, no grande tempo da cultura, como uma poderosa memória da crueldade que se alastrou pela Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Em uma página do seu diário, encontramos as seguintes palavras: “Quando escrevo, consigo afastar todas as preocupações. Minha tristeza desaparece, meu ânimo renasce! Mas – e esta é uma grande questão – será que conseguirei escrever alguma coisa importante, será que me tornarei jornalista ou escritora?”

Antes que pudesse terminar a escritura de seu diário, Anne Frank e todos que estavam no esconderijo são descobertos e entregues aos soldados nazistas em 4 de agosto de 1944. Anne e Margot foram deportadas para o campo de concentração de Bergen-Belsen; Edith e Otto Frank foram encaminhados para Auschwitz. Em fevereiro de 1945, Anne morre de tifo vítima das condições desumanas do campo de concentração de Bergen-Belsen, localizado a uma distância de 65 quilômetros da cidade de Hanover, três meses antes de completar 16 anos.

A obra O Diário de Anne Frank é para o mundo da segunda década do século 21 um valioso documento histórico. O diário já foi traduzido em 70 línguas e já vendeu mais de 30 milhões de cópias. O que aproxima leitores de diversas partes do mundo dos relatos da menina Anne Frank?

Já há mais de 80 anos a voz de Anne Frank ecoa como um doloroso testemunho da barbárie humana cometida por Adolf Hitler, líder do nazismo na Alemanha dos anos 1940. Embora talvez distantes do espaço geográfico e da marca temporal onde ocorrem os relatos intimistas da adolescente, os leitores do diário deparam-se ora com o sofrimento alteritário ora com as questões identitárias entre passado e presente. E, nessa grande trama espaço-temporal, constroem a relação de proximidade com a menina Anne.

Serviço de Comunicação Social: Qual o contexto histórico retratado em O Diário de Anne Frank?

Denísia Moraes dos Santos: Durante o período que abarca a Segunda Guerra Mundial, os judeus na Alemanha viam-se obrigados a deixar lares e empregos em busca de um lugar onde pudessem se sentir mais seguros. Anne, Margot, irmã três anos mais velha, o pai Otto Frank e a mãe Edith Frank deixaram a Alemanha e seguiram para Amsterdã. Na Holanda, o pai de Anne estabeleceu seu pequeno negócio que comercializava um produto para a preparação de geleias.

Em setembro de 1939, quando Anne tinha 10 anos, a Alemanha invadiu a Polônia. Foi o começo da Segunda Guerra Mundial. Pouco tempo depois, os soldados alemães invadiram a Holanda. Não demorou muito para que a família de Anne Frank fosse obrigada a mais uma vez fugir da perseguição aos judeus. Para proteger a família, Otto Frank decide esconder-se com Anne, Margot, a esposa e alguns amigos em um sótão nos fundos do prédio onde funcionava a pequena empresa. O lugar ficou conhecido como Anexo Secreto. Durante o tempo em que ficaram escondidos, período que se estende de junho de 1942 a agosto de 1944, ouviam as notícias do que estava acontecendo no mundo apenas por meio de um rádio.

Em 29 de março de 1944, enquanto ainda se mantinha escondida, ela ouviu pela rádio uma declaração do ministro da educação do governo holandês, Gerrit Bolkestein, exilado em Londres, afirmando que, depois da guerra, ele esperava recolher testemunhos oculares do sofrimento do povo holandês sob ocupação alemã, como cartas e diários. Anne Frank começou, após a escuta da rádio, a reescrever o diário. De maio de 1944 até ser descoberta no esconderijo, ela escreveu quatro páginas inteiras por dia. Desde então a escrita intimista da menina alemã passou a ser elaborada com o intuito de ser aberta ao público.

O diário corresponde a um gênero intimista, ou seja, é uma escrita não aberta ao público leitor, pretendia assim guardar seus sentimentos mais profundos para si mesma. Contudo, motivada pela declaração de Gerrit Bolkestein, decidiu que publicaria o diário quando a guerra terminasse. A Holanda ainda estava ocupada pelo exército alemão. É fato que o ser humano é capaz de suportar as piores atrocidades desde que haja ao menos um fio de esperança de que o sofrimento acabe em algum momento. O confinamento no esconderijo foi possível de ser suportado porque havia a esperança de que o exército russo avançasse e conseguisse libertá-los.

Serviço de Comunicação Social: Qual a importância de seu diário para a História e para a Literatura?

Denísia Moraes dos Santos: O que faz de O Diário de Anne Frank uma obra lida por inúmeros leitores de toda parte do mundo está no funcionamento da estrutura da obra intrinsecamente social. Trata-se de uma criação aberta por todos os lados às influências das injustiças sociais de outras esferas da vida.

A menina Anne Frank não escreveu um mero discurso sobre si mesma, pronunciado do interior da vida. Ao escrever o diário, Anne Frank se posicionou axiologicamente frente à própria vida e precisou dar a ela um acabamento, o que só foi possível se distanciando dela. Nesse caso, a escrita do diário permitia à menina olhar-se de fora com certo excedente de visão.

Qualquer que seja o lugar do mundo já do século 21, o leitor literário é conduzido a se posicionar para ficar frente a Anne Frank, e, desse lugar, ao ver o ativismo dela, ser capaz de criar o testemunho da barbárie do holocausto. A trama de Hitler para exterminar todo um povo aponta para o pior caso de injustiça racial e social da história da humanidade. Entretanto, não é o único.

Em 2021, de acordo com a Organização do Trabalho (OIT), cinquenta milhões de pessoas são identificadas vivendo em situação de escravidão moderna. Apesar de os escravizados no atual cenário não serem mais vendidos em leilões espalhados pelas ruas das cidades, eles sofrem a mesma barbárie humana e já representam um número maior comparado aos escravizados no passado. A injustiça social revela o retrato de uma grande parcela da humanidade vivendo em situações de fome e pobreza extremas. Talvez seja por isso que a voz resistente de Anne Frank ainda ressoa com esperança de que importa haver justiça.

Denísia Moraes dos Santos é doutora em Letras pela FFLCH. Atualmente é editora de materiais didáticos e professora de Língua Portuguesa no ensino médio da rede pública estadual paulista.