Sequestrados na ditadura argentina podem contribuir com políticas públicas

Pesquisadora da FFLCH conversou com nietos restituidos, que foram tirados de suas famílias biológicas por motivos políticos durante a ditadura argentina

Por
Gabriela Ferrari Toquetti
Data de Publicação

Imagem: Abuelas de Plaza de Mayo

A prática de sequestrar crianças de seus pais durante a ditadura argentina (1976-1983) ficou conhecida como plan sistemático de apropiación de menores. Cortar os vínculos familiares, separando os militantes de seus filhos, foi uma forma de destruir a oposição política na ditadura.

Uma pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP analisou as histórias de pessoas que, já adultas, descobriram que foram tiradas de suas famílias biológicas, mostrando como a perspectiva dessas pessoas pode trazer contribuições para políticas públicas relacionadas à memória e à justiça.

Em sua tese de doutorado, a pesquisadora Aline Lopes Murillo percebeu que podemos pensar essas crianças como “pessoas memoriais”: seu sangue e seu nome carregam memórias da ditadura militar argentina.

As Abuelas de Plaza de Mayo e os nietos restituidos

A organização não governamental argentina Abuelas de Plaza de Mayo, criada em 1977, tem como objetivo encontrar as crianças sequestradas, hoje adultas, e devolvê-las às suas famílias legítimas. As Abuelas criaram um Banco Nacional de Datos Genéticos, em que guardam material genético das famílias que buscam seus filhos. Hoje, a organização já foi responsável por localizar mais de 130 nietos restituidos.

Imagem: Abuelas de Plaza de Mayo

Aline, que viajou à Argentina e conversou com alguns desses nietos, explica como eles fizeram a descoberta: alguns, nascidos entre 1975 e 1980, não se identificavam com suas famílias de criação e começaram a desconfiar que haviam sido vítimas de apropiación. Com ajuda das Abuelas, confirmaram suas suspeitas.

Já outros nietos passaram pelo processo chamado de allanamiento, que é um mandado de busca e apreensão de material genético. Essas famílias foram investigadas e forçadas a fazer exames de DNA, que passaram a ser obrigatórios em 2009. A mudança na lei ocorreu porque alguns nietos, coagidos por seus apropiadores, se recusavam a fazer os exames.

Victoria e Juan

Aline conta que as reações dos nietos ao descobrirem que foram vítimas de apropiación são variadas. Victoria Montenegro e Juan Cabandié, por exemplo, possuem histórias emblemáticas e, atualmente, ambos são políticos conhecidos na Argentina.

Victoria Montenegro. Imagem: Abuelas de Plaza de Mayo

Victoria passou a vida amando e admirando seu suposto pai, sem saber que ele era investigado pelas Abuelas por apropiación. Não foi fácil para ela, portanto, descobrir a verdade com o exame de DNA e ver o homem que a criou sendo preso. Com o passar dos anos, Victoria compreendeu sua história: durante a ditadura, seu “pai” assassinou sua mãe biológica e a sequestrou. Quando começou a ter contato com sua família legítima, ela passou a se aproximar deles e a militar ao lado das Abuelas

Juan Cabandié. Imagem: Abuelas de Plaza de Mayo

Juan, por outro lado, era maltratado pelo policial por quem foi criado. Ele suspeitava ter sido vítima de apropiación e procurou a organização das Abuelas. Com a confirmação pelo teste de DNA, voltou-se contra os apropiadores. “Lamentavelmente, mãos impunes me agarraram e me tiraram dos braços de minha mãe. Hoje estou aqui, vinte e seis anos depois, para perguntar aos responsáveis por essa barbárie se eles têm coragem de me enfrentar, cara a cara e nos olhos, e me dizer onde estão meus pais”, afirmou Juan em declaração pública em 2004.*

Memória e justiça

“Algo que me chamou a atenção na Argentina foi a eficácia de narrar a vida. A partir dessa difusão da história de vida, as políticas públicas em relação à ditadura militar acontecem. Quando os nietos reaparecem, cria-se uma comoção na sociedade, que volta a falar sobre a ditadura”, explica Aline. Ela relata que os nietos publicaram pequenos vídeos contando suas histórias em diversas mídias e redes sociais. Isso incentiva outras pessoas que desconfiam de sua origem a procurar as Abuelas para fazer o teste de DNA: “A história de vida é potente”.

A pesquisadora afirma que um dos produtos importantes do seu trabalho foi a perspectiva dos nietos, pois apenas o ponto de vista das Abuelas costuma ser estudado. Ouvir o que os nietos têm a dizer é uma forma potente de contribuir com políticas públicas relacionadas à ditadura.

Aline opina que “existem pessoas que, por si só, já portam memórias e constituem a história de um país. Aqui no Brasil, podemos pensar na Dilma, por exemplo”. A ex-presidenta foi presa e torturada durante a ditadura militar brasileira. No Brasil, com a Lei da Anistia, as histórias da ditadura não foram divulgadas como na Argentina, de acordo com a pesquisadora. Mas, no contexto político atual, Aline tem esperança de que o Brasil possa seguir o exemplo dos argentinos e levantar discussões sobre memória e justiça.

 

*Trecho presente na tese de doutorado de Aline.