Ilíada e Odisseia

Os personagens e locais de ambas as obras fazem parte das narrativas mais antigas que conhecemos do mundo ocidental

Por
Renan Braz
Data de Publicação

"Essa é outra beleza dos poemas de Homero, serem infinitos em sua finitude", afirma a pesquisadora Camila Zanon. (Montagem: Renan Braz)
"Essa é outra beleza dos poemas de Homero, serem infinitos em sua finitude", afirma a pesquisadora Camila Zanon. (Montagem: Renan Braz)

Aquiles, Heitor, Troia, Ítaca, Odisseu, Penélope, Circe, as sereias são apenas alguns dos personagens e locais que fazem parte da cultura ocidental há mais de dois mil anos. Os nomes povoam o imaginário popular e influenciam as mais diversas manifestações artísticas como literatura, cinema e música.

Mas o que une todos eles? Os nomes citados acima têm um ponto em comum como parte das narrativas mais antigas que conhecemos do mundo ocidental: a Ilíada e a Odisseia, de Homero, “cujo valor literário e cultural tem sido reconhecido por mais de dois milênios e meio”, explica Camila Zanon, doutora em Letras Clássicas pela faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Conversamos com a pesquisadora, que nos explicou sobre a relevância das obras, as influências que ambas geraram e os motivos que as mantêm relevantes ainda hoje.

Serviço de Comunicação Social: Qual a importância dessas obras para a literatura ocidental? Como elas se conectam entre si?

Camila Zanon: A Ilíada e a Odisseia são as obras mais antigas de que se tem notícia no mundo ocidental e cujos textos chegaram até nós de forma completa (ou muito próxima de ser completa). Sua importância, contudo, não reside apenas no fato de serem as obras fundantes da literatura ocidental – o que por si só as coloca numa posição de grande destaque –, mas por serem dois poemas monumentais cujo valor literário e cultural tem sido reconhecido por mais de dois milênios e meio. A Ilíada conta com cerca de 15.693 versos e a Odisseia com 12.109, com pequenas variações no número de versos entre edições, e cada verso obedece à métrica do hexâmetro dactílico, ou seja, são fruto de uma elaborada artesania de composição oral. Antes de se constituírem como longos poemas escritos, eles faziam parte de uma tradição de composição e transmissão oral. Seu valor já era reconhecido na antiguidade grega, e depois na romana, como os maiores expoentes da tradição do gênero épico, do qual eles próprios também são considerados fundadores. Portanto, são obras que, ao longo de séculos, e mesmo de milênios, têm desempenhado grande relevância no desenvolvimento da tradição literária e cultural.
Os dois poemas se conectam de várias maneiras. Eles fazem parte da mesma tradição de poesia oral, utilizando o mesmo pé métrico e, portanto, as mesmas técnicas de composição e transmissão. Ambos pertencem ao gênero épico, narrando os feitos dos guerreiros que combateram em Troia. A Ilíada narra um período de cerca de cinquenta dias no último ano da guerra de Troia e a Odisseia narra a longa viagem de retorno de Odisseu, um dos importantes combatentes em Troia, após o fim da guerra. Os dois épicos, portanto, conectam-se também por meio de seus personagens e dos eventos narrados.

Serviço de Comunicação Social: Quais suas influências em obras posteriores? Como Ilíada e Odisseia podem ser aproveitadas hoje em dia?

Camila Zanon: A Ilíada e a Odisseia exerceram sua influência desde um período muito próximo daquele que se supõe para sua composição. Pode-se dizer que sempre estiveram no horizonte dos poetas da Grécia antiga e também dos poetas romanos, dentre os quais Virgílio, cujo poema épico Eneida tem como protagonista Eneias, um importante guerreiro troiano que teria sobrevivido à guerra de Troia e migrado para a península itálica, vindo a fundar Roma. Influências dos poemas de Homero podem ser encontradas em grandes obras da literatura ocidental como A Divina Comédia de Dante, O Paraíso Perdido de John Milton, Fausto de Goethe, Ulisses de James Joyce, para mencionar apenas algumas. Tal influência não se restringe apenas à literatura, mas se estende a outras áreas do conhecimento e da arte. O filósofo Nietzsche, por exemplo, foi um grande leitor de Homero. Freud e Jung, fundadores da psicologia, também leram Homero. As artes plásticas, por sua vez, sofreram grande influência de Homero, especialmente na pintura e na escultura do Renascimento, ao retratar temas presentes nos dois épicos. No Brasil, destacam-se Guimarães Rosa, com os chamados Cadernos Homero, cujas anotações revelam a leitura atenta dos poemas por parte de Rosa; e o artista plástico pernambucano Francisco Brennand, com suas esculturas que remetem a personagens dos poemas. Homero tem sido uma fonte rica de inspiração para artistas ao longo de muitos séculos. Recentemente, escritoras anglófonas têm realizado reelaborações literárias a partir de Homero colocando algumas de suas personagens femininas como protagonistas e elaborando narrativas que partem de uma perspectiva feminina, como Margaret Atwood com A Odisseia de Penélope, Natalie Haynes com Mil Navios para Troia, Pat Barker com O Silêncio das Mulheres e Mulheres de Troia, e Madeline Miller com Circe.
A Ilíada e a Odisseia são obras clássicas e, como disse Ítalo Calvino sobre os clássicos, eles servem para entender quem somos e aonde chegamos. Como todo clássico, elas exploram aspectos fundamentais da condição humana e nos fazem refletir sobre questões atemporais, como as que envolvem honra, glória, vingança, guerra, companheirismo e compaixão. A leitura dos poemas pode ser bastante desafiadora, mas é também muito compensadora. O horizonte de reflexões aberto pela leitura dos poemas é imenso, intenso e também muito atual. É muito significativo que a literatura ocidental em seu início tenha como tema, ou ao menos como pano de fundo, uma guerra. Uma guerra travada em função de um rapto de uma mulher, um rapto que leva um enorme contingente a cruzar o mar e sitiar uma cidade por quase dez anos. O que significa para um exército sitiar uma cidade por tanto tempo? O que significa para uma população viver como refém em seu próprio território? Quais são as consequências para ambos os lados dessa guerra? Qual é o custo humano? Não são perguntas diferentes das que fazemos diante do horror das guerras que testemunhamos ao longo do século 20 e ainda testemunhamos no século 21. Simone Weil, filósofa e ativista francesa de origem judaica, escrevendo na primeira metade do século 20 em seu ensaio intitulado A Ilíada ou o poema da força, comenta que “Toda a Ilíada está à sombra da maior desgraça que pode existir entre os homens: a destruição de uma cidade”. A Odisseia, por sua vez, com as viagens de Odisseu em sua tentativa de retornar à sua casa, para sua família, também ecoa na situação em que vivem muitos migrantes que, mesmo depois de se estabelecerem alhures, sonham com o retorno à sua terra, à sua pátria. Homero, mesmo depois de mais dois milênios, ainda dá muito o que pensar sobre nós, sobre o mundo em que vivemos e o mundo que queremos.

Serviço de Comunicação Social: Por serem obras que nasceram da tradição oral, quais elementos contribuíram para que elas não se perdessem e chegassem até nós? Nas obras, é possível saber quanto foi preservado, alterado ou perdido ao longo do tempo?

Camila Zanon: Certamente, a importância e o valor atribuídos a essas obras foram fatores fundamentais para sua preservação. Desde o momento em que foram passadas para a forma escrita, e não sabemos muito precisamente quando foi, mas certamente havia cópias no século 5 a.C., essas obras foram copiadas, recopiadas e mantidas nas principais bibliotecas do mundo antigo, como a de Alexandria e de Pérgamo. Havia também cópias de propriedade particular, adquiridas por aqueles que podiam pagar por elas. O texto dos poemas que temos hoje são provenientes de manuscritos medievais, o mais antigo datando do século 10. Antes da invenção da imprensa, os poemas eram copiados manualmente, o que provoca inevitavelmente alguns erros de cópia. Os manuscritos não são idênticos entre si. O trabalho do editor de textos antigos é justamente comparar os manuscritos e fazer escolhas que julgue serem as mais adequadas, estabelecendo o texto ao qual nós, leitores comuns ou mesmo especialistas, teremos acesso. Há também fragmentos antigos, de cerca do século 3 a.C., em sua maioria provenientes das areias do Egito, descobertos em escavações arqueológicas na região de Oxirrinco. É muito provável que o texto do qual dispomos não seja exatamente igual aos que circulavam na Antiguidade, mas, ao fim e ao cabo, temos dois textos monumentais cuja leitura nos apresenta um todo coeso e coerente. Ao fim da leitura de ambos os poemas, temos a sensação de ter lido uma obra completa, embora elas nos deixem com muitas indagações em mente. Essa é outra beleza dos poemas de Homero, serem infinitos em sua finitude.

Serviço de Comunicação Social: Existe um debate sobre a existência ou não de Homero, é possível identificar elementos, tanto na Ilíada quanto na Odisseia, que indiquem que elas sejam de um mesmo autor?

Camila Zanon: Sim e não. É possível que Homero nunca tenha existido como um indivíduo e seja um nome que foi atribuído à figura de um poeta que simboliza toda uma tradição de poesia oral. Mas é um nome que a tradição sempre associou à Ilíada e à Odisseia. Nunca foi atribuído um nome ao autor de uma e um nome diferente ao autor de outra no mundo antigo. Elas sempre foram atribuídas a Homero. A questão de dupla autoria foi suscitada na modernidade. Como parte de uma mesma tradição oral de poesia em verso, com uso de fórmulas que se repetem entre os dois poemas, o uso da mesma técnica de composição, compartilhando o mesmo universo temático da guerra de Troia, pressupondo que essa tradição com suas características era compartilhada entre os poetas, é muito difícil saber se um poeta teria composto uma e outro, outra. O fato é que a tradição nos legou apenas um poeta para ambos os poemas. Se foram compostos por dois poetas distintos, os antigos não levaram isso em consideração e atribuíram os dois poemas a Homero.

Serviço de Comunicação Social: Quanto de história e ficção se confundem em ambas as obras?

Camila Zanon: Primeiro, não se pode perder de vista que são obras poéticas, portanto, não se deve cobrar delas uma fidedignidade histórica. Por outro lado, há a percepção na própria antiguidade grega de que os eventos narrados nos poemas que concernem à guerra de Troia são históricos. Vários personagens dessa tradição de poesia épica passaram a ser cultuados, com o chamado “culto heroico”, como os ancestrais de determinadas famílias ou de comunidades inteiras. Depois do início das escavações arqueológicas em vários sítios que passaram a fazer parte da chamada “Idade da Bronze”, no fim do século 19, quando descobertas revelaram objetos e construções que se assemelhavam àquelas descritas por Homero, a questão da realidade histórica do conteúdo dos poemas ganhou outra dimensão. No entanto, ao longo dos séculos 20 e 21, com o estudo cada vez mais aprofundado desses achados e dos sítios em que foram encontrados, e também dos poemas, percebeu-se que neles há elementos correspondentes a diferentes períodos históricos, como vestígios da Idade do Bronze, e também da era seguinte, a Idade do Ferro. É importante ter em vista que o poeta da Ilíada e da Odisseia tinha consciência de que sua narrativa tratava do passado, embora pudesse utilizar elementos de seu presente para compô-la. Outro aspecto importante diz respeito à distinção entre fato histórico e ficção, que pode ser muito clara para nós, mas cujas delimitações numa sociedade oral não funcionam da mesma maneira. Quando não há documentos escritos que registrem os fatos, é a tradição que determina a confiabilidade do que se diz sobre o passado, e Homero, como expoente de uma tradição de narrativas poéticas sobre o passado, sempre foi tido em alta conta no mundo antigo.


Camila Aline Zanon possui pós-doutorado pelo Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV) da FFLCH. Pesquisadora visitante na Faculdade de Clássicos, da Universidade de Oxford (Inglaterra). Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da FFLCH. Bolsista Capes de doutorado sanduíche na Universidade de Oxford. Pesquisadora associada no centro de pós-graduação do Balliol College e pesquisadora visitante na Faculdade de Clássicos. Mestre em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e Bacharel em Letras-Grego pela FFLCH. Atuante na área editorial de material didático para ensino fundamental e médio, livros paradidáticos e literatura infantojuvenil. Também é tradutora de obras em língua inglesa.