Crise dos Mísseis de Cuba

Presença de mísseis nucleares em Cuba gerou tensão entre Estados Unidos e União Soviética

Por
Pedro Seno
Data de Publicação

Crise dos Mísseis
"Diante da possibilidade de um conflito nuclear, boa parte da população estadunidense mergulhou num paranoico sentimento de pânico", afirma José Rodrigues Mao Júnior. [Montagem: Renan Braz]

No ano de 1962, durante o período da Guerra Fria, o mundo entrou em tensão com a chamada Crise dos Mísseis de Cuba. Em linhas gerais, trata-se do alinhamento político da ilha com a União Soviética, inimiga dos Estados Unidos, que apoiou a deposição de Fulgencio Batista e transportou mísseis nucleares para Cuba, gerando uma das maiores ameaças de conflito atômico já vistas.

José Rodrigues Mao Júnior, pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, concedeu entrevista à Redação sobre o importante evento da geopolítica mundial. Segundo Mao, o evento significou mais do que apenas a tensão bélica entre as duas grandes potências, mas também uma demonstração da força da resistência popular cubana, que foi capaz de conter o poderio dos EUA.

O texto de Mao está bem completo, contendo um resumo do panorama histórico e contexto do período que levou ao incidente. Confira na íntegra:

Serviço de Comunicação Social: O que foi a Crise dos Mísseis de Cuba, qual contexto geopolítico do acontecimento?

José Rodrigues Mao Júnior: A Crise dos mísseis de Outubro 1962 foi, indubitavelmente, um dos mais impactantes acontecimentos do século 20. Este foi o incidente de mais grave tensão entre as duas superpotências que se enfrentavam durante a Guerra Fria, e quase ocasionou uma guerra nuclear de imprevisíveis consequências.

Dentro de um contexto mais amplo, esta Crise remonta a um corolário de tensões entre os EUA e Cuba, e tem como origem histórica as lutas do povo cubano para libertar-se da dominação colonial espanhola - ainda no século 19 – seguida pelos intentos dos EUA em se apoderar da ilha.

Apesar de Cuba ter conquistado a sua independência em 1º de janeiro de 1899, essa independência foi frustrada pela presença de tropas dos EUA em território cubano. O primeiro Governo de Cuba foi o Gobierno Militar dos EUA, que se estendeu até 1902, e que criou as bases institucionais para o domínio neocolonial sobre a ilha. Entre estes mecanismos institucionais estão a promulgação da Primeira Constituição de Cuba, que levava como adendo a Enmienda Platt, dispositivo constitucional que dava o “direito” aos EUA intervir militarmente no país. Para levar a cabo estas intervenções, os EUA contavam – inclusive - com uma presença militar permanente em território cubano, estacionada na Base Naval de Guantánamo.

Desta forma, a história da República Cubana nas cinco primeiras décadas do século 20 pode ser resumida por constantes intervenções militares estadunidenses, que determinavam a sucessão de Governos Oligárquicos e Ditaduras. O último regime ditatorial do qual o povo cubano foi vítima foi engendrado por um Golpe Militar chancelado pelo Departamento de Estado dos EUA e inaugurou a Ditadura do General Fulgencio Batista (1952-59).

A Revolução Cubana de 1959 não apenas pôs abaixo a Ditadura de Fulgêncio Batista, como também rompeu com os principais mecanismos de dominação neocolonial com os quais os EUA submetiam Cuba. A máfia estadunidense perdeu os seus investimentos em hotéis, cassinos e bordéis, e as primeiras medidas revolucionárias – como a Ley de Reforma Agraria – eliminou o latifúndio em Cuba, o que afetou diretamente os interesses de empresas estadunidenses que haviam se apoderado de vastas áreas rurais da Ilha.

A liderança revolucionária cubana, ao implementar políticas que garantiam a soberania nacional do Povo Cubano, inevitavelmente teve que enfrentar a agressiva sanha do imperialismo estadunidense. Ainda em 1959, CIA em conluio com a Máfia estadunidense iniciam os primeiros planos de assassinato do principal líder da revolução, Fidel Castro.

Entre os anos 1959 e 1960, as hostilidades entre Cuba e EUA se acentuaram. As crescentes ações do governo estadunidense contra o povo cubano têm – invariavelmente - respostas desafiadoras por parte do governo revolucionário. Como resposta às agressões dos EUA, a revolução se radicaliza continuamente.

Em abril de 1961, a tensão entre EUA chegou ao seu ápice, com a tentativa de invasão de Cuba a partir do desembarque de tropas mercenárias nas Playas Larga e na Playa Girón, ambas situadas na Bahía de Cochinos. O plano consistia em estabelecer um Gobierno em Armas nessas praias, que seria imediatamente reconhecido pelo governo dos EUA. Este, por sua vez, solicitaria a intervenção dos EUA, dando legitimidade à invasão estadunidense.

Entretanto, este plano de invasão de Cuba fracassou. Ao contrário do que a CIA planejava, esta nova agressão estadunidense coesionou ainda mais o povo cubano junto à sua liderança revolucionária. O Ejército Rebelde e as Milicias Nacionales Revolucionarias, combatendo ininterruptamente por 68 horas, conseguiram derrotar os mercenários, impedindo-os de consolidar uma cabeça de praia e, assim, frustrando o plano dos imperialistas.

A derrota dos estadunidenses na tentativa de desembarque em Playa Girón e Playa Larga demonstrou a grande capacidade de defesa de Cuba. E, principalmente, evidenciou o massivo apoio popular à revolução. Em solidariedade ao povo cubano, a URSS se dispôs a fornecer os meios necessários para que pudessem enfrentar uma nova tentativa de invasão. Este gesto de solidariedade foi oficializado através de uma nota enviada à John Kennedy pelo dirigente soviético, Nikita Kruchóv, ainda em 18 de abril de 1961. Nesta mensagem Kruchóv afirmou: “Daremos ao povo cubano e a seu governo toda a assistência necessária para repelir um ataque armado contra Cuba”

A partir de maio de 1962, iniciaram-se as negociações para instalar, em Cuba, 42 mísseis nucleares de médio alcance, SS-4 e SS-5, acompanhados de suas respectivas guarnições, além de inúmeros assessores e técnicos, totalizando um efetivo de 43.000 militares soviéticos. A estratégia consistia em demonstrar que um novo ataque contra Cuba inevitavelmente resultaria num conflito nuclear direto com a URSS. Era a forma de dissuadir os EUA de uma nova tentativa de invasão.

Em agosto de 1962, iniciaram-se as construções dos primeiros silos dos mísseis destacados para proteger Cuba. Já em 16 de agosto, Kennedy recebe as primeiras fotografias aéreas obtidas pelos aviões-espiões U-2, operados pela CIA, em que aparecem estes silos de mísseis instalados em território cubano.

No dia 22 de outubro, os EUA decretaram o bloqueio naval contra Cuba e a sua força de bombardeiros estratégicos foi colocada em alerta máximo. As aeronaves B-47 e B-51 eram mantidas permanentemente no ar, prontas para atacar – com artefatos nucleares – os alvos pré-determinados. Às 17:40h daquele mesmo dia, soou em Cuba o alarme convocando o povo cubano para defender a nação de um iminente ataque.

No dia seguinte, a tensão se agrava ainda mais. O governo soviético reafirma o seu apoio incondicional à Cuba e Fidel Castro, num pronunciamento à TV cubana, reafirmou a decisão de o povo de defender a sua independência a qualquer custo. Neste mesmo dia, foi convocada uma reunião de emergência no Conselho de Segurança da ONU, a pedido de Cuba.

A liderança revolucionária cubana não se curvou, nem mesmo diante da ameaça de extermínio nuclear, como demonstra estas linhas escritas por Ernesto Che Guevara, enquanto Cuba estava na beira do extermínio nuclear:

“O Imperialismo continuará perdendo uma a uma suas posições ou lançará, bestial, como acaba de ameaçar, um ataque nuclear que incendeie o mundo em uma fogueira atômica? Não podemos responder. O que afirmamos é que temos que caminhar pela vereda da libertação, mesmo que isto custe milhões de vítimas atômicas, porque na luta de morte entre dois sistemas não se pode pensar em nada que não seja a vitória definitiva do socialismo ou seu retrocesso com a vitória nuclear da agressão imperialista.
Cuba está à beira da invasão; está ameaçada pelas forças mais potentes do imperialismo mundial e, portanto, da morte atômica. De sua trincheira, que não admite retirada, lança à América seu definitivo chamado ao combate.”
²

Ainda sobre estes acontecimentos, Fidel Castro declararia, mais tarde, em uma entrevista ao  jornalista brasileiro Roberto D’Ávila:

 “… se eles usarem a arma atômica, o que pode acontecer é que nos eliminam, só que isso significaria um povo eliminado, um povo exterminado, não um povo dominado, um povo escravizado. De qualquer maneira, pergunte a qualquer criança, a qualquer jovem, a qualquer homem ou mulher deste país e ouvirá deles que preferem a morte a estar sob a bota dos Estados Unidos. Muito bem, para nós, o extermínio não seria uma derrota; seria, pelo contrário, uma grande vitória moral.” ³

Diante da possibilidade de um conflito nuclear, boa parte da população estadunidense mergulhou num paranoico sentimento de pânico, sendo que muitos procuraram improvisar abrigos “antibombas” nos quintais de suas casas. A reação da população cubana foi diametralmente oposta à reação dos estadunidenses. Enquanto os estadunidenses procuravam pateticamente se esconder em buracos cavados às pressas em seus quintais, o povo cubano – organizado pelo Ejército Rebelde e pelas diversas unidades das Milicias Nacionales Revolucionarias – marchava junto aos seus postos de combate, decididos a defender a sua pátria da agressão imperialista. Como afirmaria Fidel Castro em entrevista: “se você tivesse visitado Cuba naqueles dias, ficaria impressionado com a reação do povo. Não notaria a menor disposição em ceder e o perigo de uma guerra nuclear não atemorizou a população. Não via nada mais impressionante em minha vida.”

A determinação do governo soviético em negociar evitou que a humanidade mergulhasse numa imprevisível catástrofe. No dia 28 de outubro, Nikita Kruchóv anunciou a sua intenção em repatriar os mísseis instalados, sob a condição de que Cuba não fosse objeto de invasão por parte dos EUA. As negociações se estenderam até 31 de outubro, e os EUA também se comprometeram a retirar os mísseis Júpiter instalados na Turquia. Como forma de garantia desse acordo, foi mantida uma Brigada de Combate Soviética em Cuba (com cerca de 5.000 soldados). Assim, qualquer ataque direto dos EUA contra Cuba poderia significar uma agressão à URSS.

Serviço de Comunicação Social: Qual foi o impacto e importância deste evento, tanto para a época, quanto a sua repercussão para a história?

José Rodrigues Mao Júnior: A derrota dos Estados Unidos nos episódios da Bahía de Cochinos e na Crise dos Mísseis, em 1962, representaram a primeira derrota do imperialismo estadunidense na História. Demonstrou, também, a capacidade da Revolução Cubana em defender-se diante das bestiais ameaças de agressão por parte dos EUA. Significou a consolidação de uma aliança básica – tanto no campo militar quanto no econômico – entre Cuba e URSS.

O perigo do extermínio nuclear demonstrou que, depois da 2ª Guerra Mundial, Washington havia substituído Berlim não apenas como centro da contrarrevolução mundial, tornando-se a principal ameaça à humanidade.

A Crise dos Mísseis, de 1962, desmascarou a face mais horrenda do imperialismo, e demonstrou que enfrentar esta ameaça é algo inevitável para os os povos oprimidos da América Latina, África e Ásia.

Serviço de Comunicação Social: Pensando na pesquisa acadêmica da Faculdade, esse assunto é estudado? Como ele aparece no meio científico?

José Rodrigues Mao Júnior: Infelizmente, a Crise dos Mísseis de 1962 é pouco estudada atualmente. A academia tem voltado o seu olhar para outros objetos de investigação, muitas vezes devido à influência de certos “modismos teóricos”.

Entretanto, a análise dessa temática (e de outras tão importantes quanto essa), deve ser uma necessidade urgente. A pesquisa acadêmica deve retornar à análise, não só da “realidade concreta”, como também dos “grandes temas” (ambos aspectos profundamente desprezados pelos recentes modismos teóricos).

Compreender a Crise dos Mísseis de 1962, em toda a sua profundidade, é compreender o caráter do imperialismo estadunidense e das agressivas estruturas neocoloniais que mantêm – a título de exemplo – a dominação dos EUA sobre a América Latina.

Sem resgatar os conceitos teóricos fundamentais – como por exemplo o conceito de Imperialismo – teremos muita dificuldade de interpretar a realidade, inclusive, de nossa história recente. Como interpretar – a título de exemplo - os Golpes de Estado de 2016/18 e a “Lava Jato” (entre outros acontecimentos), sem recorrer ao conceito de Imperialismo como categoria de análise?

Cada vez mais, a obra de Lenin – O Imperialismo: fase superior do capitalismo – assim como os demais clássicos do marxismo, tornaram-se fundamentais para compreender a realidade contemporânea.

Referências bibliográficas
¹ SZULC, Tad. Fidel: um retrato crítico. São Paulo: Best Seller, 1987. p. 655.
² GUEVARA, Ernesto Che. Tática e estratégia da revolução latino-americana. In: GUEVARA, Ernesto Che. Obras de Che Guevara 3: textos revolucionários. 2 ed. São Paulo, Centro Editorial Latino-Americano, 1980. p. 94.
³ ⁴ D’ÁVILA. Roberto. Fidel em pessoa: a íntegra da primeira entrevista de Fidel à televisão brasileira. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 1986. p. 144.

José Rodrigues Mao Júnior é mestre e doutor em História Econômica pela FFLCH-USP. Atualmente é Efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Atua principalmente nos seguintes temas: Revolução Cubana, Questão Nacional, Cuba, Nacionalismo, Anti-Imperialismo.