O professor e vice-diretor Paulo Martins e o professor Jean Pierre Chauvin (ECA) assinam artigo para rebater acusações às universidades, fornecendo dados sobre o financiamento e o perfil dos alunos ingressantes
Vira e mexe, o senso comum afia as garras e envia a campo um articulista raivoso, com vistas a inocular o fármaco do pragmatismo rasteiro, lançando mão do mercadologiquês, o idioma sacrossanto do mercado. De modo geral, trata-se de pseudoargumentos com que o distinto representante de interesses privados pretende inverter, em favor próprio ou alheio, o sabido diagnóstico de que alunos e profissionais do Ensino Superior fazem bem mais pela sociedade, intra e extramuros, do que efetivamente recebem, seja em espécie, seja na forma do reconhecimento.
Em artigo publicado na revista Veja no domingo, 26 de maio de 2019, J. R. Guzzo pretendia alertar os consumidores em geral que, da alíquota de 25% que compõe o imposto embutido nas contas de luz, quarenta por cento desse percentual seriam diretamente remetidos para as Universidades Estaduais Paulistas. O segundo dado apresentado pelo jornalista: desse montante, que cairia imediatamente no ralo imaginário representado pelas instituições estaduais, os recursos seriam injustamente divididos entre cursos “úteis” e “inúteis”.
Nesta segunda categoria, ele inclui áreas de conhecimento supostamente irrelevantes ou de nulo interesse social (leia-se: cursos com retorno financeiro lento e/ou acanhado), de que seriam exemplo: a licenciatura em Afro-Matemática (oferecida na UFABC, que é uma universidade federal); matérias relacionadas à “arte lírica” (não foi possível detectar se tal conteúdo é ministrado apenas na FFLCH/USP, ou no IEL/Unicamp, ou em departamentos da área de Letras, num dos campi da Unesp); e o curso Educomunicação (na ECA/USP, há uma licenciatura homônima que trabalha na interface entre o ensino e a comunicação, que forma educadores e pesquisadores da pós-graduação). Nesse ponto o ex-membro do conselho editorial da Editora Abril apenas delimitou o que, em entrevista à Jovem Pan em 7 de maio, já havia dito, dando vez à sua êmese: “tudo o que você paga para educação superior pública é dinheiro jogado no lixo”[1], de sorte que assim ele parece andar de mãos dadas com o pseudoprofessor Weintraub e o astrólogo Olavo de Carvalho.
A exemplo de outros entendidos que mais vociferam sobre o que tanto ignoram do que ocorre no universo acadêmico, Guzzo também recorre ao bordão monocórdico de que os vultosos impostos “pagos por todos os brasileiros” seriam “doados aos filhos das classes média e alta para que estudem na universidade pública sem pagar um centavo”. Uma das vantagens de ter cursado Letras e lecionar nessa área “inútil” é que, dentre um punhado de coisas, aprendemos a analisar e interpretar textos com precisão – gesto inacessível a grande parte dos profissionais empenhados em disseminar o ódio aos cursos de Ciências Humanas, Licenciaturas e, claro esteja, aos alunos e professores.
Para começar, não se trata de “doações” dos mais pobres para os remediados e os mais ricos. As estatísticas divulgadas anualmente pelas Universidades Estaduais Paulistas indicam que a porcentagem de alunos oriundos das classes mais humildes, felizmente, só aumenta (será esse o motivo para a bronca do jornalista?), conforme os dados obtidos mediante pesquisas de perfil sociocultural e econômico realizadas à época dos vestibulares. Para se ter uma ideia, a partir de 2019, a FFLCH da USP, unidade que oferece mais vagas todos os anos, chegou a 40% de ingressantes por cotas e, nesse sentido, os PPI (pretos, pardos e indígenas), oriundos de escolas públicas, passaram a ter acesso à universidade pública. Na FFLCH oferecemos 1.669 vagas, das quais 664 foram preenchidas pelos cotistas.
Em segundo lugar, há outras imprecisões a corrigir. O repasse do ICMS às instituições paulistas não é de 10%; mas de 9,57%. Isso, oficialmente. “Oficialmente”, dizemos nós, porque o Estado de São Paulo desconta desse montante uma série de alíneas: habitação, multas e juros, as receitas da dívida ativa do ICMS e os descontos da nota fiscal paulista; tudo isso resulta em valor de repasse ainda menor para instituições que acolhem centenas de milhares de alunos, em diversas cidades do Estado (ou seria melhor definir São Paulo como província reinol, território em que o privilégio reproduz letrados que mal leem, mas são hábeis em fantasiar dados e depor contra aqueles cujo trabalho desconhecem?).
Outro detalhe, na contramão dos seus argumentos, entretanto em cima de números concretos e não obscuros: em países centrais a pesquisa nas universidades tem forte participação do dinheiro público. Curiosamente, segundo as ideias de Guzzo, os Estados Unidos jogariam no lixo bilhões por ano, afinal 66% de sua pesquisa em universidades é garantida pelo governo segundo a Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS). E isso não é diferente da União Europeia, onde 77% da pesquisa em universidade é respondida pelos governos, de acordo com dados do Gabinete de Estatísticas da União Europeia (Eurostat). [2]
Um dos sinais do lugarejo que o jornalista supõe ocupar, e da perspectiva binária que adota, reside na afirmação de que 80% de “todos os brasileiros” seriam compostos pelo que alcunha carinhosamente de “pobralhada”. De que matriz, de que estudo (ainda que inédito) o articulista terá extraído esse número? Se os dados não constituem fruto de uma matéria de ficção irresponsável, por que o jornalista não investiu maior tempo em preparar o artigo? Assim, pouparia a retina do leitor atento, brindando-o com o nome do instituto de pesquisa, ou a identidade dos economistas que teriam calculado, chegado a essas estatísticas. Seria possível colocar “todos os brasileiros” numa afirmação de tamanho quilate?
Outros comentários que nos cabem. Se é para discutir o que vem a ser mais ou menos “útil”, seria razoável índice de honestidade que o jornalista elencasse todos os cursos que, do seu ponto de vista mesquinho, mereceriam a pecha de mais (ou menos) adequados ao diapasão que brande – em tese para combater a “desigualdade social”. Em lugar disso, transfere mais uma responsabilidade indevida às universidades, reconhecidas pela desproporção entre a excelência de seus quadros (inclusive na área de Humanas, vejam só!) e a mesquinharia de setores do Estado e da sociedade.
Nós, que estimamos Línguas e Literaturas e outras artes, poderíamos recomendar a (re)leitura das Aventuras de Robin Hood (referimo-nos à versão de Alexandre Dumas, de 1862) – livro de ação em que um súdito do rei Ricardo Coração de Leão subtrai comida, mantimento e moedas aos ricos para distribuí-los para os mais necessitados. Quem sabe a leitura, esse passatempo “inútil” de gente preocupada com história, filosofia, cultura e a linguagem, fertilizasse o minguado imaginário de sujeitos que se habituaram a ofender os profissionais do ensino e a desprezar a ascensão econômica fomentada pelas universidades públicas?
Com base em números extraídos não se sabe bem de onde – afora dois rankingsinternacionais, que o jornalista menciona como item de credibilidade – seria preciso discutir o que, efetivamente, significa ocupar, ou não, posição entre as 250 “melhores” instituições do mundo. Afinal, quais seriam os critérios utilizados pelo Shangai Ranking (ARWU) ou pelo Times Higher Education? Critérios orientados quantitativamente aplicar-se-iam, sem ressalvas ou ajustes, a toda e qualquer instituição de ensino, seja no Ocidente, seja no Oriente?
Ainda que esses dados possam ser irrelevantes diante dos verdadeiros desafios que nossa universidade enfrenta, é absolutamente risível o articulista se valer de dados com os quais não tem a menor intimidade. Afinal, ao observarmos que mais de 1.000 universidades são avaliadas, estar entre as 250 não é pouca coisa. Ademais a USP está no patamar das 150 melhores universidades, acima de inúmeras universidades norte-americanas e de muitas europeias (ARWU, 2019), a FFLCH tem seis de seus cursos classificados entre os 50 melhores do mundo[3] e as Artes e Humanidades da USP ocupam a honorabilíssima 76a posição[4] pelo QS World University Rankings, 2019.
Se o leitor ainda não ficou sensibilizado diante das falácias ostentadas pelo jornalista, agora falta pouco. Aparentemente, a controversa posição de J. R. Guzzo sobre o Ensino Superior é desvelada por ele mesmo, nas linhas finais do artigo de opinião. Supondo ter concebido uma peça magistral, primado da síntese, da correção e do bom gosto, sem respaldo para além de parte do senso comum vociferado por homens que não entendem de gente, mas alardeiam sapiência ao mundo dos negócios. Citamos: “Ou o Brasil se livra dos educadores, ou os educadores conduzirão o Brasil ao nível de instrução vigente na Idade da Pedra”. Quem sabe ele devesse ter escolhido sujeito mais adequado para o período frasal?
O senso comum talvez adore uma polêmica. Mas, cá entre nós, espanta que a revista Veja dê vazão a um artigo de opinião redigido por um jornalista que não valoriza a diversidade de saberes, ataca o (já insuficiente) repasse de verbas às universidades e, pior, declara serem vilões a serem extirpados os professores megapoderosos de um país carente de quase tudo, especialmente saúde, educação e moradia. Em tempos de cólera, o ódio e o ressentimento parecem campeirar desde o planalto central até certas redações.
Artigo publicado no Jornal da USP, em 30/05/2019: https://jornal.usp.br/artigos/fabricas-de-utensilios/
[1] https://www.youtube.com/watch?v=iOlZ-Mhbm7k, acesso 27 de maio de 2019.
[2] https://jornal.usp.br/ciencias/nos-paises-desenvolvidos-o-dinheiro-que-…
[3] https://www.fflch.usp.br/1182
[4] https://www.topuniversities.com/university-rankings/university-subject-…