Publicação de "Admirável Mundo Novo"

Aldous Huxley imaginou uma distopia em que os indivíduos são gerados em incubadoras, a sociedade é dividida em castas e o Estado tem o domínio total da vida das pessoas

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Gabriela Ferrari Toquetti
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“Dois grandes temas que atravessam a leitura de Admirável Mundo Novo são a engenharia genética e a perda de identidade em um mundo padronizado”, segundo Andreya Susane Seiffert – Arte: Gabriela Ferrari Toquetti

Imagine um mundo em que os indivíduos não são gerados por meio da gravidez, mas sim em incubadoras. A sociedade é dividida em castas e, desde antes do nascimento, todas as pessoas passam por um processo de condicionamento para se comportarem de acordo com a classe a que pertencem. O Estado tem o domínio total da vida das pessoas, e todos consomem uma droga fabricada para mantê-los felizes. Esse é um pequeno resumo do enredo de Admirável Mundo Novo, do escritor inglês Aldous Huxley.

Publicada em 1932, a obra é considerada uma das mais importantes distopias literárias do século passado ao lado de outros livros como 1984, de George Orwell, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Huxley revela em sua escrita os medos que ameaçavam a sociedade em que vivia, como a possibilidade de ascensão de regimes totalitários. O romance também mostra e critica a lógica capitalista em que tudo vira mercadoria, levando essa lógica ao extremo ao imaginar uma realidade em que todos os indivíduos perdem sua identidade e tornam-se artificiais.

“Outro elemento central na feitura de Admirável Mundo Novo é o choque entre os valores do velho e do novo mundo, entre a Inglaterra natal de Huxley e os Estados Unidos, que visitou em 1926 e que viria a ser seu novo lar a partir de 1937”, explica Andreya Susane Seiffert, doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Em linhas gerais, quais são as temáticas centrais abordadas por Admirável Mundo Novo?

Andreya Susane Seiffert: Em Admirável Mundo Novo, a estabilidade do Estado Mundial foi alcançada graças à imposição de uma rígida sociedade eugênica, possível através dos avanços da ciência. Nessa sociedade, a reprodução foi totalmente afastada do sexo e dos corpos humanos e é realizada por meio de úteros artificiais. Os fetos são divididos em espécie de castas, de alfa a ípsilon, e já nessas incubadoras recebem tratamentos diferenciados, de forma a se desenvolverem física e mentalmente de acordo com a casta à qual pertencem.

Durante o crescimento, as crianças são condicionadas a terem certos comportamentos através da “hipnopedia”, uma técnica de aprendizagem na qual mensagens gravadas são ouvidas repetidamente durante o sono.

Todos os habitantes do Estado Mundial são artificialmente felizes, pois são treinados a consumirem desde cedo uma droga chamada “soma”.

Então, dois grandes temas que atravessam a leitura de Admirável Mundo Novo são a engenharia genética e a perda de identidade em um mundo padronizado.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Aldous Huxley na obra?

Andreya Susane Seiffert: O romance, publicado em 1932, é uma espécie de distopia. Huxley, na verdade, começou a escrevê-lo como uma paródia aos livros utópicos do também escritor inglês H.G. Wells, principalmente em resposta ao Men like Gods (1923).

Outro elemento central na feitura de Admirável Mundo Novo é o choque entre os valores do velho e do novo mundo, entre a Inglaterra natal de Huxley e os Estados Unidos, que visitou em 1926 e que viria a ser seu novo lar a partir de 1937.

Huxley espantou-se com o grau do capitalismo estadunidense em que tudo vira mercadoria e aplicou essa lógica para os próprios seres humanos de Admirável Mundo Novo, produzidos industrialmente e facilmente substituíveis.

Em termos de estrutura, Admirável Mundo Novo está dividido em dezoito capítulos e é escrito em terceira pessoa, com um narrador onisciente. Até mais ou menos a metade do livro, acompanhamos Bernard Marx, um “alfa” que, por um erro na aplicação da quantidade de álcool em sua incubadora, acabou não sendo exatamente igual aos demais e isso faz com que ele se sinta deslocado. Em uma viagem a uma “reserva de selvagens”, Marx conhece John Selvagem, que nasceu lá “de forma natural”, filho de Linda, antiga moradora do Estado Mundial. John nunca se sentiu pertencente à sociedade indígena em que ele e a mãe acabaram morando e os três partem para a “civilização”. Passamos então a acompanhar mais de perto John e seu horror diante do “admirável mundo novo”.

Serviço de Comunicação Social: Qual é a importância do livro na literatura e na ficção científica? Em sua análise, a obra se mostra atual? Há elementos dessa distopia que estão presentes em nosso mundo hoje?

Andreya Susane Seiffert: Uma obra sempre revela mais do tempo ao qual pertence do que aquele a que se propõe discutir e Admirável Mundo Novo não é exceção, ainda que tenha especulado sobre tecnologias que se mostraram possíveis (como a clonagem, por exemplo).

O romance de Huxley dialoga com os medos e anseios do seu tempo, como a ascensão de Estados totalitários.

Transparece também uma interpretação questionável de Huxley a respeito da obra de Freud. No Estado Mundial imaginado por Huxley, a sexualidade é incentivada desde a infância pelo Estado. Como bem apontou Adorno (1998, p. 99), “Huxley não faz nenhuma distinção entre liberação e degradação sexual”.

No prefácio à obra de 1946, Huxley afirma que “a promiscuidade sexual de Admirável Mundo Novo também não parece tão distante. Já existem cidades norte-americanas em que o número de divórcios é igual ao de casamentos.” Assim, ao tentar pintar o futuro com cores negativas, Huxley esbarrou em seu próprio conservadorismo.

De qualquer forma, Admirável Mundo Novo é uma das obras distópicas mais relevantes da primeira metade do século 20, junto a Nós, do escritor russo Yevgeny Zamyatin, de 1924, e 1984, do escritor inglês George Orwell, de 1949.

Curiosamente, Huxley havia sido professor de francês de Orwell na década de 1920. Quando publicou 1984, Orwell enviou uma cópia a seu antigo docente, que lhe respondeu elogiando o livro mas destacando que a distopia de Admirável Mundo Novo parecia mais provável: “Dentro da próxima geração, eu acredito que os governadores do mundo irão descobrir que o condicionamento infantil e a narco-hipnose são mais eficientes, como instrumentos de governança, do que porretes e prisões, e que a cobiça pelo poder pode ser completamente satisfeita ao sugerir que as pessoas amem a sua servidão, ao invés de chicoteá-las e chutá-las à obediência. Em outras palavras, eu sinto que o pesadelo de 1984 está destinado a ser modulado ao pesadelo de um mundo mais semelhante ao que eu imaginei em Admirável Mundo Novo”.

Para nossa sorte, as democracias ainda resistem, mesmo que a duras penas.

Para saber mais:

ADORNO, Theodor W. Prismas: crítica cultura e sociedade. Tradução de Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Editora Ática, 1998.

Em carta, Aldous Huxley discorre sobre obra de seu aluno George Orwell:

https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2018/08/em-carta-aldou…

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Andreya Susane Seiffert é doutora em História Social pela FFLCH e atualmente é professora colaboradora no Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina. Atua principalmente com ficção e história dos Estados Unidos.