Nos últimos meses, políticos e influenciadores digitais invadindo universidades públicas voltaram a disputar as redes sociais. Gritos, câmeras e violência preenchem esses vídeos. Seu alvo são estudantes e trabalhadores das universidades e, principalmente, as pautas que essas pessoas carregam: questões de raça, gênero e sexualidade. No centro desses ataques, uma palavra tem sido usada como arma: identitarismo. Quem explica é Silvana de Souza Nascimento, professora e vice-diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
“A expressão vem de uma ideia de identidade, um conceito que tem sido estudado e investigado pelo campo das ciências humanas há séculos”, começa, apontando a origem do termo. Silvana comenta que, apesar de o estudo das identidades humanas ser antigo, na contemporaneidade há quem tente colocar em xeque toda a sua importância: “O termo identitarismo tem sido utilizado tanto pelos campos conservadores quanto pelos campos progressistas para colocar o tema de raça, gênero, sexualidade, a questão das pessoas trans, todas as pautas que envolvem os movimentos sociais – que sofrem diversas opressões no Brasil – como um assunto menor”.
Para a professora, a questão silencia vozes, invalida a existência de desigualdades e atrapalha diálogos. “Quando alguém que não é branco, não é rico, se manifesta como pessoa periférica, como mulher, como pessoa negra, trans, ela é acusada de estar fazendo uso do identitarismo. Não deveria ser um problema as pessoas se manifestarem nas suas diferenças e reivindicarem os seus direitos a partir das desigualdades que sofrem. A acusação, ou esse debate político, também é fruto de um movimento mais conservador.”
Silvana comenta as origens desses tensionamentos. Ela aponta, primeiramente, mobilizações contra debates feministas nas escolas: “Vem já há mais de dez anos, é um movimento internacional de impedir que a educação trate de temas que envolvam mulheres, que envolvam assédio sexual”. Em seguida, reforça que a situação surge, também, como resposta ao avanço das ações afirmativas, principalmente as cotas raciais: “Quando se tem uma entrada grande de pessoas negras nas universidades e elas começam a ocupar espaços que não eram, geralmente, ocupados por pessoas negras, em vários campos profissionais, nas instituições, esse racismo estrutural fica muito evidente”.
Segundo a professora, a resistência em aceitar a mudança é um ponto central para os movimentos anti-identitários. Há uma dificuldade de aceitar que se formem outros atores políticos, universitários e intelectuais. “Hoje temos deputadas pretas, trans. E aí vem essa acusação do identitarismo, porque a branquitude tornou a questão racial como um tema das pessoas negras. Mas quando pessoas negras apontam a branquitude como sistema de opressão, mostram que pessoas brancas também são racializadas.” Nesse sentido, Silvana aponta a contradição: quem acusa também se utiliza do identitarismo, mas se esconde atrás da neutralidade, ou da chamada “universidade”.
Democracia
Silvana vai além no debate, colocando que o verdadeiro horizonte é a democracia brasileira: “Estamos pensando na agenda política que queremos para a democracia. Para um país que reconheça as suas diferenças e promova justiça social.” Ela alerta para o caminho que até a parcela progressista da sociedade toma: colocar os direitos universais em oposição à luta contra as desigualdades, e questiona quem de fato tem acesso aos direitos universais. “A ideia de direitos universais vem a partir do iluminismo, no século 18. Pensar direitos que fossem iguais para todas as pessoas, que naquela época eram direitos do homem.”
Em contraponto à ideia de universalidade euro-americana, a docente aponta outra linha de pensamento e referencia Lévi Strauss: “Quanto mais a humanidade se relaciona, mais diferenças aparecem, porque a diferença é humana”. Ela prossegue explicando que a história de formação do Brasil sobre colonização e escravidão fundamenta sua incompatibilidade com esse conceito simplista de universalidade e neutralidade: “Isso não significa que os direitos não possam ser para todas as pessoas, eles precisam ser para todas as pessoas. E como fazemos isso? Reconhecendo que as desigualdades são constitutivas. Isso não é identitarismo, isso é fazer justiça social”.
Ataques às universidades
A professora alerta para uma das mais claras manifestações desse movimento antidemocrático: os ataques de políticos e influencers de extrema-direita às faculdades de humanas. A viralização desses episódios nas redes sociais não é casual. Ela é parte integral desse mesmo projeto que busca não apenas deslegitimar os movimentos sociais e acadêmicos, mas também aprofundar polarizações e lucrar sobre a intolerância. O termo identitarismo funciona como um atalho retórico para isso.
Silvana, como vice-diretora da FFLCH, unidade que é alvo recorrente dos provocadores, coloca: “A gente tem sofrido invasões de políticos que são extremamente violentos e provocam os estudantes. O que eles lucram com isso? Para além de fortalecer essa ideologia deles, lucram financeiramente com visibilidade nas redes sociais, likes e patrocínio, é o capital”. Sua preocupação vai, também, em direção ao campo da comunicação e aos canais que o setor conservador constitui e fortalece a partir dessa violência: “Se fortalecem acusando de forma totalmente inverídica, violenta e desproporcional os movimentos sociais, estudantes e professores que estão presentes nas universidades. Eles deslegitimam, desrespeitam e violentam os espaços universitários, que são autônomos”.
Como sair dessa armadilha? Para Silvana, a saída exige a produção de diálogo, justiça restaurativa e o reconhecimento das desigualdades, que são constitutivas da sociedade brasileira. “Quando a gente não vai para o debate, se recusa a pensar essas questões, silencia a voz das pessoas minoritárias, acusando-as de identitarismo, a gente não está construindo uma possível democracia que um dia possa florescer no Brasil.”
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Escrito por Sophia Vieira, sob supervisão de Paulo Capuzzo.
Texto original: https://jornal.usp.br/atualidades/sem-o-reconhecimento-das-desigualdade…