Expulsão dos mouriscos da Península Ibérica

Descendentes dos árabes-muçulmanos, os mouriscos representavam uma resistência cultural e religiosa ao domínio cristão na Península Ibérica

Por
Paulo Andrade
Data de Publicação

Mouriscos
​Descendentes dos árabes-muçulmanos, os mouriscos representavam uma resistência cultural e religiosa ao domínio cristão na Península Ibérica (Arte: Renan Braz)​​​​​

Desde o ano 711 d.C. a presença de árabes muçulmanos em parte da Península Ibérica trouxe à região grandes avanços nas ciências, artes e humanidades. Contudo, durante séculos, monarcas cristãos foram progressivamente reconquistando territórios até a queda do último líder muçulmano, no reino de Granada, em 1492.

Nos anos seguintes, as populações islâmicas descendentes dos mouros foram batizadas à força, sendo denominadas de mouriscos.

Em doutorado defendido pelo Programa de História Social da FFLCH, a jornalista e pesquisadora Ximena Isabel León Contrera estudou esses povos, em especial o processo de expulsão das populações remanescentes, autorizado pela monarquia cristã de Felipe III a partir de 22 de setembro de 1609.

“Cabe esclarecer que os mouriscos não eram árabes, eram populações que se assentaram em Granada e em outros locais da Espanha com origens diversas, como norte da África, regiões da Arábia (atual Síria), entre outros”, explica a pesquisadora. 

Os monarcas católicos buscavam uma uniformização cultural, e a conversão forçada era uma política imposta a mouriscos, judeus, cristãos não católicos e outros grupos minoritários.

A pesquisadora destaca que os batismos forçados não convertiam, mas forçavam parte da população a professar o cristianismo. “Apesar da imposição de uma nova prática religiosa e da vigilância, os mouriscos que ainda permaneciam na sua fé tinham que realizar suas orações e costumes relacionados ao Islã em segredo”.

Ximena explica que as expressões culturais e científicas construídas durante a Idade Média foram se perdendo ao longo do século 16. A monarquia católica perseguiu os mouriscos que, empobrecidos e segregados, viviam de culturas agrícolas, criação de gado, comércio e atividades correlatas. 

Resistência e expulsão

Ao mesmo tempo, os mouriscos protagonizaram diversos levantes e revoltas, apoiados pela fé islâmica. “Apesar de ser proibido escrever, ler e falar árabe ou manter livros nesse idioma, muitos arriscavam a liberdade escondendo manuscritos em paredes e fazendo a leitura coletiva, durante a noite, do livro sagrado no Islã, o Corão”, explica Ximena.

Os monarcas católicos, por sua vez, buscavam extirpar os vestígios da cultura árabe-islâmica da vida dos mouriscos, como hábitos de higiene e embelezamento, de abate de animais, da recusa de consumir certas carnes e bebidas, vestuário, mudança de nomes e sobrenomes.

Após anos de perseguições pelo Estado e pela Inquisição espanhola, em 22 de setembro de 1609, o rei Felipe III autoriza oficialmente a expulsão dos mouriscos dos territórios espanhóis, em processo que se estenderia até 1614. “Cerca de 300 mil pessoas foram obrigadas a deixar suas terras e grande parte de seus bens e mesmo neste processo ocorreram levantes com grande violência”. 
 

Confira a entrevista completa abaixo:

Serviço de Comunicação Social: Quem eram os mouriscos e como podemos explicá-los no contexto pós-Reconquista na Península Ibérica?

Ximena Contrera: Em primeiro lugar cabe um esclarecimento, a palavra Reconquista é um termo usado a partir do século XIX, não sendo encontrado em fontes anteriores. No que tange ao processo de retomada de territórios pelos cristãos, as populações que professavam a crença no Islã tiveram algumas denominações. Assim, quando esses grupos viviam na sua fé, mas sob o governo de reis cristãos, eram denominados “mudéjares”. 

Com o progressivo avanço do cristianismo nos territórios que hoje constituem a Espanha, restou um único reino, no século XV, que tinha um líder muçulmano: o reino de Granada. Em janeiro de 1492, após uma feroz resistência, este monarca assina as capitulações de Granada e Isabel de Castela e Fernando de Aragão passam a incorporar o território aos seus domínios. 

As populações que ficaram sendo seus súditos e que professavam o Islã por alguns anos permaneceram em sua fé (de acordo com o compromisso das capitulações), mas na virada do século, após uma revolta, passam a ser batizados à força. 

Ao longo do século estes “novos convertidos de mouros” passam a ser chamados de mouriscos (no reino de Aragão os batismos forçados demoraram um pouco e os conversos receberam a denominação de tagarinos). Durante este período, estes grupos eram chamados também, inclusive pela monarquia, de “os naturais da terra”. 

Cabe esclarecer que os mouriscos não eram árabes, eram populações que se assentaram em Granada e em outros locais da Espanha com origens diversas, já que a penetração de populações muçulmanas na Península Ibérica ocorreu a partir de 711 e com diversas origens, como norte da África, regiões da Arábia (atual Síria), entre outros. 

Em Portugal, onde os mouriscos foram expulsos no final do século XV, a origem era diversa: tratava-se de pessoas norte africanas, muçulmanas e que migraram para o reino português sendo convertidos ao cristianismo. 

O grande problema dos mouriscos foram os batismos forçados, que não converteram as pessoas, apenas as forçaram a serem cristãs. O processo de conversão foi mal feito e criticado até por alguns religiosos católicos. Sob esse aspecto o grupo era heterogêneo: alguns se converteram completamente enquanto outros praticavam a crença no Islã em segredo.   

Serviço de Comunicação Social: É correto afirmar que a religião foi o fio condutor da política que culminou no processo de expulsão dos mouriscos? 

Ximena Contrera: A grande questão relativa à assimilação dos mouriscos passa por uma série de características da Monarquia Católica (e de outros reinos do período) que envolviam a uniformização cultural, que incluía a religião. A conversão forçada dos mouriscos integra outras ações que buscavam essa uniformização e que passava por perseguições de judeus conversos, e mesmo cristãos não católicos (protestantes e outros grupos minoritários considerados hereges). 

Na realidade o ponto essencial a ser considerado é a doutrina da razão de estado que, mesmo não sendo explicitamente apontada como a causa da expulsão (ocorrida entre 1609 e 1614) pode ser considerada como o grande motor dessa ação. 

Cabe lembrar que por mais que existissem suspeitas e acusações concretas (graças ao trabalho da Inquisição) os mouriscos eram cristãos e, portanto, para alguns o seu desterro para terras dominadas pelo Islã (norte da África, Turquia e mesmo localidades na França) constituía um crime contra irmãos de fé que foram condenados a abraçar uma seita considerada infiel.

Serviço de Comunicação Social: A continuidade da efervescência e diversidade cultural construída pelos árabes-muçulmanos foi prejudicada com a expulsão dos mouriscos?

Ximena Contrera: Na realidade quando nos referimos a uma cultura sofisticada com grandes avanços nas ciências, artes, humanidades que os povos árabes ou muçulmanos desenvolveram na Península Ibérica durante o emirado e depois califado Omíada (e mesmo depois da sua dissolução nos reinos de taifas) temos que observar o marco temporal medieval. 

No momento da expulsão dos descendentes destes grupos (e mesmo muitos cristãos de origem que foram se convertendo ao Islã ao longo dos séculos de dominação muçulmana na península) esta efervescência já não mais existia por uma série de motivos, inclusive a retomada pelos cristãos.

Os mouriscos que seguiam os ditames da sua fé de forma dissimulada o faziam muitas vezes precariamente e ao longo do século XVI com as perseguições e imposições do emergente estado absolutista correspondente à Monarquia Hispânica as expressões culturais e científicas se perdem em meio a uma população empobrecida que vivia de explorar culturas agrícolas (seda/amoreira, vinhas, azeite, figo, hortaliças, frutas cítricas), da criação de gado, do comércio e de algumas atividades correlatas (saberes ligados à irrigação em Granada, por exemplo, ou mesmo a tradução de textos em árabe a mando das autoridades inquisitoriais ou do Rei, entre outros).

Serviço de Comunicação Social: Durante o período em que os mouriscos ainda permaneceram na Espanha qual foi a forma de resistência do grupo em relação aos costumes e religião?

Ximena Contrera: Apesar da imposição de uma nova prática religiosa e da vigilância, os mouriscos que ainda permaneciam na sua fé tinham que realizar as suas orações e costumes relacionados ao Islã em segredo utilizando diversas estratégias. 

Ao mesmo tempo em determinados momentos foram protagonistas de levantes e revoltas como uma ocorrida na virada do século XV para o XVI e outra, de grandes proporções entre 1568 e 1570 (ambas em Granada, no entanto outras se deram em outros reinos) e que resultou de episódios de grande violência que provocaram a remoção dos mouriscos do reino de Granada que foram reassentados em localidades do reino de Castela. 

É essencial destacar o papel de textos proféticos que traziam indicativos de um futuro feliz e dentro da fé islâmica nessa resistência e na eclosão de revoltas e ao mesmo tempo na característica de se tratar de um grupo marginalizado e explorado que passa a considerar insuportáveis as penas impostas mesmo sendo batizados ao cristianismo.

Deixar a Península era vedado mas mesmo assim existiram casos de fugas rumo ao Norte da África. Apesar de ser proibido escrever, ler e falar árabe ou manter livros nesse idioma muitos arriscavam a sua liberdade escondendo manuscritos em paredes e fazendo a leitura coletiva, durante a noite, do livro sagrado no Islã, o Corão.

Serviço de Comunicação Social: Como foi a expulsão?

Ximena Contrera: Após mais de um século de debates sobre a forma de conversão, as estratégias mais adequadas, a imposição de uma série de medidas que visavam a extirpar os vestígios da cultura árabe-islâmica da vida dos mouriscos (hábitos de higiene e embelezamento, de abate de animais, da recusa de consumir certas carnes e bebidas, vestuário, mudança de nomes e sobrenomes) e perseguições pela Inquisição, da compra de tempo que permitiu postergar o cumprimento destas medidas, finalmente no começo do século XVII e sob o reinado de Felipe III, foi publicado em 22/9/1609 o primeiro bando (comunicado oficial) de expulsão dos mouriscos de Valencia (reino com grande contingente desta comunidade) que inaugura o processo que se estende até 1614. Mais ou menos 300 mil pessoas foram obrigadas a deixar suas terras e grande parte de seus bens e mesmo neste processo ocorreram levantes com grande violência.