Produção de roupas em série para escravizados marcou início da indústria do vestuário no Brasil

Pesquisa da FFLCH abordou o desenvolvimento da indústria do vestuário no Brasil do século 19 até os anos 1960, quando a roupa industrial voltada à classe média ganhou expressão de moda

Por
Paulo Andrade
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Uma pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP construiu, de forma inédita, um painel da história do vestuário no Brasil desde o século 19, com a produção em série de roupas para escravizados, até o início dos anos 1960, quando a indústria têxtil nacional já apresentava traços semelhantes aos dos grandes centros do Ocidente.

A tese de doutorado Indústria do vestuário e moda no Brasil do século XIX a 1960: da cópia e adaptação à autonomização subordinada, defendida pelo jornalista e historiador Luís André do Prado, em 2019, aborda um segmento pouco estudado pela academia no Brasil e em instituições estrangeiras.

Prado pesquisou dados estatísticos e análises econômicas a partir de fontes como IBGE, livros, imprensa, teses, dissertações, além de pesquisas físicas em acervos pessoais e institucionais de associações e editoras especializadas em moda. “Meu objetivo inicial era focar a década de 1960, mas a carência de dados sobre os primórdios da indústria do vestuário no Brasil me fez voltar no tempo mais do que planejara. Fui parar no início do século 19”.

O pesquisador explica que o início da confecção de roupas em série se deveu menos à criação e uso de máquinas e mais à padronização das roupas por meio de moldes em escalas de tamanhos. Isso permitiu a produção em escala industrial desde a virada do século 18 para o 19, em países como Inglaterra, França e Estados Unidos, e, na primeira metade do século 19, no Brasil. “[Posteriormente,] a introdução das máquinas de costura, de corte de tecidos e de fabricação de malhas, entre meados e fins do século 19, contribuiu enormemente para acelerar o crescimento da fabricação de roupas prontas”.

Início da padronização

Anúncios em jornais da primeira e segunda metade do século 19 comprovam a produção em série de roupas de trabalho para escravizados - primeiro nicho de produção industrial em série.

Ainda naquele século, desenvolveram-se manufaturas de roupas íntimas (masculinas e femininas), uniformes escolares e de vestuário masculino, que seguia os padrões ocidentais do terno. “Estas peças se prestaram melhor à produção seriada justamente por serem mais padronizadas, sem forte influência das alternâncias da moda”, explica Prado.

Roupas femininas, por seguirem as modas sazonais, passaram a ser padronizadas em uma escala ascendente a partir da década de 1930. As confecções brasileiras copiavam e adaptavam os padrões da moda internacional, centrados em Paris.

Em 1960, o Censo Industrial do Brasil, realizado pelo IBGE, mostrou pela primeira vez a produção de roupas femininas com uma porcentagem maior que a masculina: 26,8 contra 23,4%.

Padrões similares em roupas de escravos no século XIX (AZEVEDO, Paulo Cesar e LISSOVSKY, Maurício (orgs.). Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Chistiano Jr. São Paulo, Ex Libris, 1988, p. 42, 43, 47.)
Padrões similares em roupas de escravizados no século 19. Fonte: AZEVEDO, Paulo Cesar e LISSOVSKY, Maurício (orgs.). Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. São Paulo, Ex Libris, 1988, p. 42, 43, 47.


Produção para a classe média

Um dos capítulos da pesquisa analisou a multinacional francesa Cia. Industrial Rhodiaseta (conhecida como Rhodia), durante os anos 1960, sustentada pela ideia do “lançamento internacional da moda brasileira”, que tinha por objetivo maior o lançamento dos fios sintéticos para produção de tecidos no Brasil.

Durante sete anos, foram realizados desfiles de peças de alta moda, criadas por costureiros locais, e de moda de produção em série (denominada prêt-à-porter) de marcas em atuação no Brasil. Prado explica que tais campanhas constituíram uma “estratégia publicitária para vender à classe média brasileira a ideia de que as confecções e os criadores do Brasil também poderiam ter valor simbólico. Uma estratégia paradoxal pela qual procurou-se simular um reconhecimento, no exterior, da moda feita no Brasil”.

Materiais publicitários das coleções Brazilian Primitive afirmava "Brasil exporta moda" (Acervo da Cia. Brasileira Rhodiaceta, Revista Jóia e Varig, 1965/1966)
Materiais publicitários das coleções Brazilian Primitive afirmava "Brasil exporta moda" (Acervo da Cia. Brasileira Rhodiaceta, Revista Jóia e Varig, 1965/1966)


A ideia era valorizar a produção em massa que seria vendida à classe média no Brasil. “Evidencia-se, por esses eventos, a mentalidade ‘colonizada’ do brasileiro médio, mas que reproduzia um comportamento naturalizado pelas elites nacionais”, analisa.

A alta moda naquele período teve expoentes como Dener Pamplona de Abreu e Clodovil Hernandes, por exemplo, costureiros que vivenciaram trajetórias curtas como criadores, pois a moda em série ganhou hegemonia sobre a alta costura na virada para os anos 1970.

Prado observa que o interesse pela formação do campo da criação de moda, estudado na pesquisa, vem crescendo no Brasil e que o desenvolvimento da indústria do vestuário constitui uma vertente de pesquisa relevante e pouco explorada na História Econômica. “São assuntos que apaixonam mesmo o público não acadêmico. Já em 2010, o Brasil ocupava o primeiro posto entre os países que mais oferecem graduação de nível superior em moda”.