Queda da Bastilha

Queda da prisão da Bastilha se tornou o marco inicial da Revolução Francesa

Por
Pedro Fuini
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Queda da Bastilha
"A Revolução Francesa foi um processo plural em suas possibilidades, anfíbio em seus legados e diverso em seus protagonismos", afirma Daniel Gomes de Carvalho. (Arte: Pedro Fuini)

Há 233 anos, em 14 de julho de 1789, a fortaleza que simbolizava o autoritarismo da monarquia era tomada pelos revolucionários franceses. Embora naquele momento contasse com apenas sete prisioneiros, a queda da prisão da Bastilha se tornou o marco inicial da Revolução Francesa.

A insatisfação popular com a monarquia motivou o levante burguês, com amplo apoio das camadas populares, em meio à circulação dos ideais iluministas. O processo revolucionário,  mesmo que marcado por contradições e disputas internas, influenciou a história ocidental ao propor a universalização de direitos e liberdades individuais e a adoção do sistema republicano.

O Hoje na História conversou sobre este fato com Daniel Gomes de Carvalho, Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Serviço de Comunicação Social: O que a Queda da Bastilha simbolizou no contexto da Revolução Francesa? 

Daniel Gomes de Carvalho: A fortaleza da Bastilha, assentada em 1370, fora convertida em prisão no século XVII, por ordem do cardeal Richelieu. Para muitos, ela remetia ao autoritarismo do Antigo Regime. Por exemplo, na década de 1770, o número de pessoas detidas por terem escrito ou comercializado textos proibidos perfazia 40% dos presos, número que caiu nas décadas seguintes. Apesar disso, o motivo imediato da queda da fortaleza-prisão foi mais pragmático que simbólico.

Em 14 de julho de 1789, a prisão, que estava entre o bairro popular de Saint-Antoine e o bairro rico do Marais, contava apenas com sete presos (o célebre marquês de Sade havia sido transferido há oito dias). Ocorre que, enquanto tinha lugar em Versalhes a Assembleia dos Estados Gerais, dois boatos percorriam Paris. Primeiro, dizia-se que havia um grande complô aristocrático, o que incluía uma invasão de países estrangeiros para esmagar a Assembleia Constituinte recém-formada. Segundo, dizia-se que, enquanto a população passava fome, a nobreza “escondia grãos” para alimentar os próprios filhos. “É o alarme para uma noite de São Bartolomeu dos patriotas”, alertou Camille Desmoulins referindo-se aos massacres nas guerras entre católicos e protestantes do século XVI.

Para piorar, em 11 de julho de 1789, chegou a Paris a notícia de que Luís XVI iria demitir o popular ministro suíço Jacques Necker para cercar-se de ministros autoritários como o barão de Breteuil, Puységur e Broglie. Nos dois dias seguintes, a situação agudizou. O jovem advogado Camille Desmoulins, de pé sobre uma mesa de café no Palais Royal, com uma pistola em cada mão, comunicava a demissão de Necker e chamava a multidão para o combate. Formaram-se aglomerações também em torno do homem de letras de origem pobre e suíça, Jean-Paul Marat. Aos 46 anos, ele discursava contra a aristocracia com um exemplar do Contrato Social de Rousseau na mão. Marat ficou conhecido pelo seu jornal L’Ami du peuple (Amigo do Povo), fundado em setembro do mesmo ano.

Nesse clima de tensão, soldados do príncipe de Lambesc mataram manifestantes nos Jardins das Tulherias. Em resposta, os parisienses queimaram a Arrecadação Geral de Impostos e tomaram os depósitos de grãos. Estavam em chamas 40 das 54 barreiras de acesso em Paris, enquanto os guardas franceses recusavam-se a obedecer aos agentes do rei.

No dia 13 de julho, Paris passou a ser governada por uma Comuna, com 120 deputados eleitos. Cada bairro ou distrito teria de fornecer homens às milícias populares. Outras Comunas se formaram nas cidades de Lille, Mauberge e Cherburg. Foram criados comitês administrativos e tribunais populares.

No dia 14 de julho, em Paris, o Palácio dos Inválidos foi invadido e 40 mil fuzis foram repartidos entre os insurgentes. Rumores diziam que na Bastilha havia mais armamentos. A multidão, então, atacou a prisão. Foram oficialmente reconhecidos 953 homens e uma mulher (a lavadeira Marie Charpentier) como “os conquistadores da Bastilha”. Entre eles, 661 eram artesãos. O mais velho tinha 72 anos e o mais jovem, 8. O diretor da Bastilha, Delaunay, foi morto e sua cabeça colocada na ponta de uma lança, tendo como acompanhante a cabeça de Jacques Flesseles, governante de Paris. Depois, a Bastilha foi demolida sob direção do construtor Pierre-François Palloy. Algumas das pedras da prisão foram depois esculpidas e transformadas em pequenas Bastilhas, vendidas como “relíquias da liberdade.”

Um ano depois, o dia da queda da Bastilha tornou-se a “festa da federação”, em referência as guardas nacionais (“federações”) formadas na França; em 1880, no contexto de “invenção das tradições” da 3ª República Francesa (e a consequente tentativa de domesticar o passado revolucionário por meio de celebrações cívicas), o dia 14 de julho tornou-se feriado nacional.


Serviço de Comunicação Social: A Queda da Bastilha foi sucedida por intensas mudanças políticas e sociais. Quais eram os interesses dos grupos envolvidos no processo revolucionário?

Daniel Gomes de Carvalho: Os interesses, sem dúvida, eram bastante diversos, de forma que seria difícil sintetizá-los em poucas palavras. Vamos tomar como exemplo a nobreza, recorrendo a algumas passagens de meu livro recentemente publicado. A nobreza estava longe de ser um grupo homogêneo e com um interesse único. Existiu, por exemplo, uma altíssima nobreza, a nobreza de corte, próxima ao rei, caso dos Orléans, dos Condé e dos Conti. No século XVIII, eram muitos os membros da alta nobreza que participavam do comércio colonial, do sistema financeiro ou da indústria incipiente. O conde de Artois participava da manufatura de Javel, Buffon criou uma forja em Montbard, o duque de Orléans construiu casas de aluguel no Palais-Royal, os Noailles e os Ségur possuíam grandes plantações no Haiti e Talleyrand jogava na bolsa. Era surpreendente também a quantidade de nobres envolvidos nas Companhias de Tráfico de escravizados. Dado que muitos nobres não dependiam de seus “privilégios”, não nos deve causar surpresa a existência da chamada nobreza “liberal”, isto é, que será partidária da Revolução Francesa, caso de Condorcet, La Fayette, Barras, Mirabeau, Le Peletier, Barére. Em contraste, uma nobreza empobrecida (a “plebe nobiliária”, nos termos do historiador Albert Mathiez), sobretudo nas regiões montanhosas, costumava ser mais apegada aos privilégios e contrária às reformas. Desde o reinado de Henrique IV (1572-1589), havia sido instituída também uma nobreza de toga, isto é, de origem plebeia, mas que se enobrecia com a compra de cargos. Mas a presença forte de uma nobreza burocrática, como tudo no Antigo Regime, não era regra uniforme (a ideia de que a justiça se traduz em leis uniformes e iguais para todos os grupos sociais, afinal, é uma das heranças da própria Revolução Francesa). Em regiões como a Borgonha, onde a nobreza era mais coesa, era preciso quatro gerações de donos de terra para ser considerado nobre, ao passo que em regiões como o Languedoc, existiam somente 23 barões. Nessas duas regiões, a nobreza vangloriava-se de “proteger” a população contra os impostos da coroa.

Do ponto de vista dos interesses econômicos e políticos, o historiador François Furet dividiu a nobreza pré-revolucionária em três grupos: em primeiro lugar, a nobreza “à polonesa”, hostil ao Estado e nostálgica da predominância local; em segundo lugar, a nobreza “à prussiana”, que apoiava a modernização do Estado como forma de monopolizar empregos e cargos militares; em terceiro lugar, a nobreza “à inglesa”, entusiasta de uma monarquia constitucional. No período pré-revolucionário, Luís XVI cedia ora a um grupo, ora a outro, contribuindo para uma verdadeira hostilidade entre as elites dirigentes. Uma tensão atravessava e constituía a relação entre a coroa e a aristocracia, dado que essa última buscava maior autonomia em relação à monarquia, mas, ao mesmo tempo e paradoxalmente, dependia dela ou se beneficiava profundamente dos empreendimentos monárquicos. Alguns historiadores, inclusive, enxergam essa fragmentação dentro da nobreza como um dos elementos fundamentais para compreender a possibilidade de eclosão da Revolução Francesa.

Um dos debates mais candentes na historiografia, desde os anos 1970 até o início dos anos 1990, foi a existência ou não de um antagonismo entre a burguesia e a nobreza na época da Revolução Francesa. Não cabe aqui retomarmos esse velho debate; vale dizer que não existia, no século XVIII, um uso circunscrito do termo “burguesia”.

Em algumas regiões da Europa, as palavras burgher ou bürger referiam-se a quem vivia na cidade e gozava de certos direitos. Os grupos mais pobres, não raro, utilizavam o termo “burguês” como sinônimo de ricos ou empregadores. Já a nobreza usava “burguesia” de forma depreciativa, referindo-se a uma pessoa de modos grosseiros. Com certa frequência, o termo “burguês” referia-se a alguém que vivia de rendas – viviam “nobremente”, como se dizia na época. Como prova dessas diferenças em relação aos dias de hoje, Saint-Simon, por exemplo, escreveu: “não foram os industriais que fizeram a revolução, foram os burgueses”.

A historiografia, por isso, com frequência divide a “burguesia” nesse período em quatro grupos: a) aqueles que viviam de rendimentos, como a renda fundiária e alguns funcionários do reino b) advogados, médicos, cientistas, escritores, artistas e outros profissionais liberais c) o grupo artesanal e lojista, pequena ou média burguesia vinculada ao sistema tradicional de produção e de trocas d) banqueiros, comerciantes, financistas e outros grupos enriquecidos. Mesmo no interior dessas categorias havia muitas diferenças: o poderoso comerciante portuário de Bordeaux pouco se parecia com um vendedor ambulante de vila, por exemplo. Além disso, socialmente, a maioria das pessoas se “encaixava” em mais de uma categoria. Por exemplo, o camponês proprietário poderia também ser lavrador e comerciante, assim como um advogado poderia ser um dono de terras no campo e comerciante.

A burguesia industrial na França pré-revolucionária era incipiente. Basta lembrar que, em 1789, a Inglaterra possuía 20 mil máquinas de fiar, 9 mil fiandeiras e 200 moinhos industriais. Já a França possuía, respectivamente, mil, zero e 8. A indústria francesa localizava-se em Rouen, Orléans, Lyon, Reims, Sedan e Louviers. A burguesia financeira havia crescido em estreita ligação com a coroa, de modo que muitos deles se casaram com aristocratas, caso dos Lavoisier e dos Helvétius. É preciso destacar também a importância dos banqueiros suíços, como Necker e Clavière, bem como dos holandeses, como Vandenyver, e dos ingleses, como Boyd.  No que diz respeito à burguesia comercial, destacam-se os grupos ligados ao comércio colonial e aos portos de Nantes, Bordeaux e Marselha. Dentre os artesãos, alguns tinham o ofício livre, enquanto outros eram organizados em corporações cujos mestres (ou seja, os chefes dos ateliês) estavam sujeitos a regulamentos de preços e salários.

Dito isso, quando os historiadores remetem a “líderes burgueses” da Revolução, em geral eles se referem à pequena burguesia de juízes, procuradores, notários, oficiais de justiça, homens de letras e, principalmente, advogados, como Robespierre, Desmoulins e Brissot, ou médicos como Tronchin, Guillotin e Cabanis.

Os comerciantes tiveram papel reduzido entre os líderes revolucionários, jamais ultrapassando 14% dos deputados em nível nacional, embora tenham dominado os conselhos locais de grandes cidades como Amiens, Bordeaux, Nancy e Toulouse. Em cidades menores, as elites agrárias tenderam a perpetuar-se no poder. Compreendidos esses aspectos, podemos voltar a história dos Estados Gerais da França.

Semelhante fragmentação e complexidade encontraríamos se fossemos destrinchar também grupos populares ou analisar com detalhamento a questão dos privilégios no Antigo Regime. Um importante dicionário do período, o Dictionnaire Universel de Futière (1690), definia privilégio como “vantagem particular que uma pessoa goza em detrimento das outras, a qual vêm com a benção de seu Soberano”. Ser privilegiado, no sentido político-social, era gozar de uma liberdade ou de uma vantagem em detrimento dos outros. Apesar de frequentemente os manuais falarem em privilégios “do clero” ou “da nobreza”, a situação era muito mais complicada: algumas cidades ou regiões específicas poderiam gozar de privilégios e mesmo os grupos mais miseráveis poderiam gozar de privilégios como a isenção do imposto sobre o sal, ao passo que setores da burguesia frequentemente estavam isentos de outros impostos, como a corveia. A propósito, a instituição de impostos sobre a nobreza (como a captação e o vigésimo) ao longo dos reinados de Luís XIV e Luís XV foram também elementos de tensão no período pré-revolucionário. Assim, dentro “do clero” (o 1º Estado), “da nobreza” (o 2º Estado) e “do povo” (o 3º Estado) vigoravam os mais distintos estatutos, a depender, por exemplo, da localidade, da ocupação, das fortunas e do modo de vida. A rigor, portanto, é parcialmente errado falar em “ordens privilegiadas”, embora, é claro, as elites nobiliárquicas e clericais tinham privilégios que, por assim dizer, as opunham ao povo de forma geral.

Espero ter explicado, portanto, que é um tanto perigoso falarmos em interesse “da nobreza” ou “da burguesia” na Revolução Francesa. Contudo, de forma alguma eu nego, importante salientar, a importância da Revolução Francesa na formação da ordem capitalista, sobretudo no aspecto jurídico-político. Em 1789 e em 1793 foram abolidos os direitos senhoriais, isto é, os privilégios fiscais e judiciários dos senhores sobre seus territórios. Em 1791, por meio da Lei le Chapelier e da Lei Allarde, desapareceram os monopólios das corporações na França, consagrando o livre comércio e as liberdades individuais. Nos anos finais do processo revolucionário, especialmente no Diretório e no período Napoleônico, uma sofisticada legislação consagrou o direito à propriedade privada. O Código Civil Napoleônico, que bem cumpriu esse propósito, é hoje a base do direito civil em diversos países do mundo.

O que proponho, além da importância de reconhecermos a complexidade desses grupos sociais, é que as ações e propostas revolucionárias não sejam compreendidas como “expressão” de “um interesse” prévio, que supostamente seria claro e bem estabelecido; pelo contrário, é na próprio processo de constituição das classes sociais na ordem capitalista, no final do século XVIII e na primeira metade do século XIX, que esses interesses passam a ser simultaneamente constituídos e reconhecidos como tais.


Serviço de Comunicação Social: Em sua tese, você analisa o pensamento de Thomas Paine. Qual a visão que o intelectual tinha da Revolução?

Daniel Gomes de Carvalho: Minha tese de doutorado teve como ponto de partida uma passagem – a meu ver, equivocada – de Eric Hobsbawm em A Era das Revoluções, segundo a qual Paine teria sido um “radical” nos Estados Unidos e um “moderado girondino” na França. Tentei discutir em meu trabalho como essa passagem carrega uma série de problemas, tais como uma separação demasiado brusca dos acontecimentos na América do Norte e na Europa, bem como uma visão um tanto esquemática a respeito do pensamento de Paine (lembremos sempre da passagem de Michelet em sua História da Revolução Francesa: "Quantos homens em um homem! Como seria injusto, para essa criatura móvel, estereotipar uma imagem definitiva!"). Em contraste, e recorrendo aos métodos contextualistas, busquei mostrar como Paine é, a um só tempo, ator, testemunha e intérprete da Revolução Francesa, o que significa dizer que seu pensamento tem uma historicidade, que ele é simultaneamente inspiração e criatura da Revolução.

Ocorre que, após a independência dos Estados Unidos, Paine mudou-se para Paris, no intuito de promover sua ideia de uma ponte metálica sobre o rio Sena. O contexto francês, porém, o impediu de realizar seu projeto – ele mesmo disse ter visto “os primeiros frutos maduros dos princípios americanos transplantados para a Europa” e se engajou no processo revolucionário francês. A propósito, quando caiu a Bastilha, Paine ficou encarregado de entregar sua chave ao presidente dos Estados Unidos, George Washington, uma forma do governo revolucionário reconhecer sua dívida em relação aos norte-americanos. Após a fracassada fuga da família real francesa, em 1791, Paine defendeu a república antes mesmo que Robespierre o fizesse. Enquanto isso, na Inglaterra, ele era perseguido como inimigo público pelo governo britânico, de modo que a pena de morte então decretada contra Paine na Inglaterra jamais foi revogada.

Nesse contexto, ele publicou Os direitos do homem (1791-1792), a grande resposta às Reflexões sobre a Revolução em França (1790) do conservador Edmund Burke. O texto foi a principal defesa da Revolução efetuada por um estrangeiro. Para Paine, a defesa das tradições feitas por Burke era a defesa de uma forma de escravidão, como se os “mortos pudessem governar os vivos”. Afinal, quando começa esse “Adão Político” que Burke chama de tradição? Há cem anos? Duzentos? Mil? O tempo, disse Paine, não cria nem direitos nem autoridade. Ideia capenga e indefensável, a tradição deveria ser substituída pela natureza, que nos confere eternamente liberdade e igualdade. “Nunca existiu, nunca existirá, e nunca poderá existir um Parlamento, ou qualquer classe de homens, em qualquer país, que possua o direito ou o poder de comprometer e controlar a posteridade até ao fim dos tempos”. Toda geração, dizia Paine, tem o direito de, se quiser, reinventar-se.

Com a prisão de Luís XVI e a proclamação da República na França, Paine, que havia recebido o título de cidadão francês, foi eleito deputado por quatro departamentos nas eleições para a Convenção Nacional – Oise, Aisne, Puy-de-Dôme e Pas-de-Calais, optando por esse último. Durante o julgamento do rei, Paine opôs-se à sua morte, apesar de ser um defensor da República. Os argumentos de Paine eram, fundamentalmente, cinco. Primeiro, ele era contrário à pena de morte, que “não passa de um desprezível assassinato, punindo um crime com outro. Como a França foi a primeira das nações europeias a abolir a realeza, permitam que seja também a primeira a abolir a pena de morte”. Em segundo lugar, a pena de morte não passaria de um “ato de vingança”, que transformaria o aparelho legislativo e governamental numa máquina judiciária e abriria um precedente que poderia se voltar contra os próprios deputados. Em terceiro lugar, a execução do rei seria uma confirmação de uma visão típica do Antigo Regime, qual seja, a importância fundamental da pessoa do rei: "é o cargo de rei, antes que o detentor do cargo, que acarreta consequências funestas", argumentou. Em quarto lugar, a morte de Luís XVI despertaria ainda mais ódio dos príncipes europeus e estimularia os sucessores do trono a tentar tomar o poder, à exemplo da Revolução Inglesa. Em quinto lugar, era preciso reconhecer a ajuda que Luís XVI dera aos norte-americanos e, por consequência, a antipatia que a execução do monarca poderia causar.

Foi sua ação em favor do rei – bem como sua proximidade em relação aos girondinos, sobretudo Condorcet – a principal responsável por ele cair sob suspeita. Paine foi preso pelos jacobinos em dezembro de 1793, em virtude da lei que proibia os estrangeiros de representarem os franceses. Teria sido por mero acaso que Paine escapou do cadafalso: o sinal que indicava que ele seria executado foi afixado de maneira imprópria na porta de sua cela.

Paine só foi libertado em 4 de novembro de 1794, quase quatro meses depois da derrubada dos jacobinos e três meses depois de Morris ser substituído no posto por James Monroe. Paine foi então reintegrado à Convenção Nacional, contra a qual efetuou duras críticas, notadamente ao voto censitário e ao imobilismo dos deputados em resolver a questão da pobreza. Foi nesse momento que ele publicou Justiça Agrária, a primeira defesa de um projeto de lei para renda básica universal de que temos notícia, e Dissertação sobre os Primeiros Princípios do Governo, uma defesa do sufrágio universal. Derrotado nas duas propostas, Paine afastou-se da Convenção termidoriana. Terminada sua participação na Revolução Francesa, em 1802, aos 65 anos, doente e fora da política, Paine voltou aos Estados Unidos, onde terminou seus dias.


Serviço de Comunicação Social: Qual o legado deixado pela Revolução no mundo contemporâneo? Esse legado ainda se mantém sólido ou está ameaçado?

Daniel Gomes de Carvalho: No primeiro capítulo de meu livro Revolução Francesa, publicado pela Editora Contexto, digo que a Revolução Francesa foi um processo plural em suas possibilidades, anfíbio em seus legados e diverso em seus protagonismos. Em outras palavras, não vejo a Revolução como “um bloco”, nas palavras de Clemenceau, mas como um período repleto de contradições e demandas distintas.  Por isso, não faz sentido falar em “legado”, mas em “legados” que podem, inclusive, ser opostos.

Por exemplo, sabemos que, durante as independências da América Latina, a Constituição de 1795 foi uma referência importante. Contudo, durante a Revolução Francesa, nomes como Talleyrand apelavam abertamente para a colonização do Norte da África como um substituto para a perda do Caribe, consolidada na independência do Haiti em 1804; vale lembrar que Napoleão, em 1798, invadiu o Egito, enquanto os jornais franceses apelavam para uma difusão das luzes europeias contra o “fanatismo” do Islã. Também para enfraquecer a Inglaterra, os franceses enviaram tropas para a Índia, em auxílio do sultão Tippoo. Nesse sentido, eu poderia dizer que a Revolução Francesa possui simultaneamente um legado imperialista e outro em prol das autonomias nacionais. São motivos como esses que levam os historiadores a falar, por exemplo, em “apropriações”, em vez de legados.

Claro que, como discuto em meu livro, poderíamos ser mais diretos, e discorrer sobre o legado da Revolução Francesa remetendo as bandeiras tricolores, aos nossos códigos civis, aos museus (entre 1791 e 1794, foi criado o Grande Museu Central das Artes, o Louvre e o Conservatório de Artes e Ofícios), a ideia dos direitos humanos, a noção de cidadania ou a incontornável noção política de direita e de esquerda. O hino de guerra da Revolução Francesa, a Marselhesa, foi cantado pelos poloneses lutando pela soberania em 1794, pelos húngaros na luta antissoviética em 1956 e pelos chineses no protesto da praça da Paz Celestial em 1989. De forma criadora e criativa, a Revolução reformulou a linguagem política e deu o tom, com fortes doses de ineditismo, ao debate político contemporâneo. Conservadorismo e progressismo, ditadura revolucionária e império das leis, partilha da propriedade e imposto progressivo, liberalismo conservador e democrático, moderação e moderantismo, dentre várias outras categorias do debate político contemporâneo, estavam presentes no calor dos acontecimentos franceses.

Porém, é preciso lembrar também que esses legados são distintos se considerarmos, por exemplo, os pontos de vista das mulheres de Paris (e aqui gostaria de mencionar o excelente livro de Tânia Machado Morin, oriundo de sua dissertação de mestrado na FFLCH USP, Virtuosas e Perigosas – As Mulheres na Revolução Francesa), dos camponeses e nobres contrarrevolucionários da Vendeia (pois qualquer abordagem séria sobre a Revolução Francesa não desconsidera as Franças que recusaram a Revolução), dos escravizados do Caribe ou dos sacerdotes do Egito. Os textos dos sacerdotes do Egito, aliás, apresentavam um ponto de vista surpreendente sobre a Revolução Francesa: para eles, tratava-se de uma decorrência da filosofia greco-romana, a qual eles debatiam exaustivamente nas décadas anteriores à invasão de Napoleão. Em história, já nos disse Marshall Berman, as coisas não são isto ou aquilo, mas isto e aquilo. Por isso que, ao pensarmos nos legados da Revolução, é preciso, antes, responder a duas perguntas: primeiro, legado para quem? Segundo, de qual aspecto da Revolução estamos falando? Mas, para não fugir à pergunta, eu respondo de forma direta: o passado revolucionário, e espero que as palavras acima tenham brevemente demonstrado isso, ainda se faz presente; para o bem e para o mal.

Daniel Gomes de Carvalho é bacharel e licenciado em História pela FFLCH USP (2012) e Doutor em História Social pela mesma instituição (2017). Sua pesquisa concentra-se no pensamento político e religioso na Inglaterra, França e América do Norte, na passagem do século XVIII para o século XIX. É docente na área de História Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB), tradutor de Justiça Agrária, de Thomas Paine (Editora Paco, 2019) e autor do recém-lançado Revolução Francesa (Editora Contexto, 2022). Sua tese de doutorado O pensamento radical de Thomas Paine (1793-1797): artífice e obra da Revolução Francesa encontra-se disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.