Nascimento de Frantz Fanon

Autor de obras como Pele Negra, Máscaras Brancas e Os Condenados da Terra, Fanon é referência na área de estudos críticos raciais

Por
Alice Elias
Data de Publicação

Nascimento de Frantz Fanon
Segundo Léa Tosold, "Para Fanon, não basta apenas “inverter” os termos da opressão: é imprescindível que se criem outros modos de relacionalidade que não sejam fundamentados na violência." (Arte: Alice Elias)

 

Frantz Fanon nasceu em 20 de julho de 1925, na Martinica, sob colonização francesa. Foi um importante intelectual, médico psiquiatra e ativista, especialmente no que tange às questões raciais.
Dentre suas obras, é autor de Pele Negra, Máscaras Brancas (1951), em que evidencia a forma de operação e as consequências do racismo, e Os Condenados da Terra (1961), em que defende as lutas anticoloniais em curso naquele período. Fanon é precursor dos estudos pós-coloniais, decoloniais e anticoloniais, e inspirou nomes como Paulo Freire, Lélia Gonzalez, Neuza Santos Souza, e Beatriz Nascimento.


Conversamos com Léa Tosold, doutora em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sobre o legado do ativista cujas contribuições “permitem entender a perpetuação dos mecanismos de colonização no presente”. Confira:

 

Serviço de Comunicação Social: Você poderia comentar brevemente sobre quem foi Frantz Fanon?

 

Léa Tosold: Em seu curto período de vida — de apenas 36 anos —, Frantz Fanon foi um notável e influente intelectual, médico psiquiatra e ativista. Ele não somente colocou a questão racial no centro de suas reflexões teóricas e políticas, como também abriu caminho para uma análise muito mais aprofundada, rica e precisa do fenômeno, que abrange inclusive implicações de ordem ontoepistemológica. Nascido em 1925 na Martinica sob colonização francesa, ele tem a oportunidade de cursar a universidade na França depois de alistar-se junto à fração antinazista do exército francês a fim de lutar contra o nacional-socialismo durante a Segunda Guerra Mundial. Em Lyon, durante seus estudos de psiquiatria forense, Fanon engajava-se ativamente nos efervescentes movimentos sociais e políticos da época, como ocupações fabris e publicação de jornais. Nessa época, Fanon chega, inclusive, a escrever peças de teatro. É ainda na França, em 1951, que Fanon publica seu famoso livro Pele Negra, Máscaras Brancas — texto que havia sido rejeitado por seu orientador como manuscrito de conclusão de curso. Neste livro pujante, de escrita encarnada, Fanon é sagaz em apontar como o racismo opera em termos materiais e simbólicos, com terríveis consequências não só para as pessoas negras, mas para toda a sociedade — inclusive para pessoas brancas. Nessa obra, ele também mostra os limites de se lidar individualmente com a questão do racismo: seja pela tentativa de assimilação ou pela afirmação da diferença, afirma Fanon, o referente segue sendo “o branco”.
Em 1953 — apenas um ano antes de estourar a guerra descolonial na Argélia — Fanon assume a chefia de um hospital psiquiátrico em Blida, próximo a Argel, capital deste país. Neste momento, a polícia francesa já havia passado a adotar políticas ainda mais rigorosas e brutais de segregação. Fanon, no hospital, acompanha in loco o impacto do colonialismo na estrutura psíquica humana: ele atende tanto torturadores quanto torturades sofrendo em decorrência de transtornos mentais provocados pela violência colonial. A certo ponto, quando a guerra descolonial já está em curso, Fanon abandona formalmente a chefia do hospital a fim de atuar integralmente contra a permanência do regime colonial junto à Frente de Libertação da Argélia, da qual se torna proeminente combatente, intelectual e porta-voz, sem deixar de seguir intervindo no campo da psiquiatria. É um pouco antes do desfecho da guerra descolonial — quando já se podia antever a derrota da França — que Fanon, sofrendo da leucemia que colocaria um fim precoce à sua vida, escreve seu influente livro Os Condenados da Terra (1961), em que não somente se posiciona em favor das lutas anticoloniais que tinham lugar naquele momento ao redor do mundo, como também traz reflexões fundamentais que inspirariam (e seguem inspirando) processos e projetos de construção de vida em sociedade em moldes fundamentalmente distintos daqueles impostos pelo colonialismo. Neste livro, Fanon aponta a importância do engajamento coletivo em um processo mais amplo de transformação social e política a fim de se possibilitar a criação de novos referentes que sejam capazes, então, de gerar uma real transformação social e a superação do racismo e do colonialismo.

 

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

 

Léa Tosold: Os escritos de Fanon têm enorme repercussão, tanto na prática política de movimentos sociais quanto em diversas áreas do conhecimento. Como contam relatos de ativistas e intelectuais que lutaram contra a ditadura no Brasil, Os Condenados da Terra era um dos livros que circulavam entre os presos políticos no cárcere. Os trabalhos de importantes intelectuais brasileires engajades em nosso contexto — como Lélia Gonzalez, Neuza Santos Souza, Paulo Freire e Beatriz Nascimento, entre muites outres — são fortemente influenciades pela obra de Fanon.
No campo da psiquiatria e psicanálise brasileiras, a recente publicação em português de Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos (2020) demonstra que Fanon vem sendo cada vez mais lido justamente pela atenção ao que ele nomeou como sociogenia: a importância de se levar em conta na teorização e na prática clínica não apenas o indivíduo isoladamente, mas também o contexto sociopolítico mais amplo em que se habita. Em vez de meramente substituir uma análise exclusivamente individual por uma de ordem estrutural, Fanon sugere ser possível compreender e responder mais adequadamente ao que os indivíduos vivenciam subjetivamente quando se considera o caráter sócio-histórico dos fenômenos psíquicos. Dado o trabalho que Fanon desenvolveu junto ao psiquiatra espanhol anti-fascista François Tosquelles, seus escritos inspiram experimentos de psicoterapia social alternativos, que conferem amplo protagonismo aos pacientes. Em São Paulo, destacam-se os trabalhos desenvolvidos pelo Instituto AMMA Psique e Negritude e pelo Programa de Psiquiatria Social e Cultural do Instituto de Psiquiatria (Prosol) dos Hospital das Clínicas, bem como os trabalhos das psicólogas Clélia Prestes e Priscilla Santos.
Fanon também é considerado um verdadeiro divisor de águas para o surgimento dos assim chamados estudos pós-coloniais, decoloniais e anticoloniais. O trabalho seminal de Edward Said sobre orientalismo, a obra de importantes teóricos como Homi Bhabha e as considerações da teoria decolonial tal qual proposta por María Lugones, por exemplo, são profundamente marcados pelos escritos de Fanon. Tais áreas de estudo tangem os mais diferentes aspectos de sua obra, com destaque para a imbricação entre o caráter material e o caráter simbólico que caracterizam a continuidade da violência racial colonial, bem como para a reflexão sobre possibilidades de resistência que evitem a (re)produção dos mesmos mecanismos de opressão com nova roupagem, — visto que Fanon, em sua obra, está profundamente interessado na constituição de modos de relacionalidade não binários, capazes de deslocar efetivamente a persistente centralidade da branquidade colonial como referente. Para Fanon, não basta apenas “inverter” os termos da opressão: é imprescindível que se criem outros modos de relacionalidade que não sejam fundamentados na violência.
Além de evidentemente ser referência incontornável da área de estudos críticos raciais, o legado de Fanon é também de incalculável importância para os estudos feministas — como se pode ver nos trabalhos de Gloria Anzaldúa ou bell hooks, por exemplo —, por auxiliar na articulação entre gênero, raça, classe e sexualidade, entre outros, bem como pela centralidade que o corpo possui em sua obra a fim de propiciar uma reflexão teórica mais acurada. Para intelectuais indígenas — como o teórico político Glen Coulthard, da nação dene (Canadá), o Exército Zapatista de Libertação Nacional (México), e a ativista e psicóloga guarani Geni Núñez —, os escritos de Fanon permitem entender a perpetuação de mecanismos de colonização no presente e inspiram modos de ação coletiva que não sejam facilmente passíveis de cooptação pela lógica do estado-capital global. Em relação aos estudos marxistas, vêm sendo produzidas potentes releituras da obra de Marx inspiradas em larga medida no trabalho de Fanon, como destaque para as obras do cientista político Cedric Robinson e da filósofa e artista praticante Denise Ferreira da Silva. Fanon é crítico do ideal normativo implícito à teoria do capital, relacionado à ideia de progresso. Seus escritos também permitem entender a questão racial como fundante — e não mero adendo — do funcionamento do capital moderno global.
O mapeamento da ampla influência de Fanon na obra de importantes filósofes contemporâneos — como Judith Butler e Achille Mbembe — ainda segue em curso. No Brasil, merece destaque o trabalho do sociólogo Deivison Mendes Faustino, que mapeia os diferentes fanonismos inclusive em nosso contexto. Na USP, vale também ressaltar o primoroso trabalho que o sociólogo Nicolau Gayão vem fazendo no sentido de oferecer subsídio para uma melhor compreensão sobre a disputada questão da violência na obra de Fanon.
Em termos teórico-políticos e ontoepistemológicos, Fanon, ao demonstrar a centralidade da questão racial para a perpetuação material e simbólica do colonialismo, abre um campo que torna possível entender tal fenômeno para além de ações supostamente irracionais e pontuais de certos indivíduos. Como a obra de Denise Ferreira da Silva vem consistentemente apontando, a (re)produção da racialidade é inerente ao pensamento moderno. Tal constatação demanda um questionamento mais amplo de como os próprios modos de produção de conhecimento na universidade atuariam no sentido de (re)produzir e perpetuar a diferença racial/cultural que sustenta e legitima a violência total que o estado-capital global impinge contra determinados corpos e os territórios que estes ocupam.



Léa Tosold é doutora em Ciência Política pela FFLCH USP, co-fundadora do Grupo de Estudos de Gênero e Política (Gepô, Departamento de Ciência Política da USP), pós-doutoranda do Cluster of Excellence SCRIPTS - Contestations of the Liberal Script, Instituto Otto-Sur de Ciência Política, Universidade Livre de Berlim, Alemanha, e participa do Coletiva GIRA - Coletivo de estudos-intervenção antirracista e anticolonial.
Os principais focos de sua pesquisa são: epistemologias feministas antirracistas; teoria política, feminismos, sexualidade e antirracismo; critical race studies; políticas de diferença; ações afirmativas; políticas de memória; análise do discurso; pesquisa implicada e produção de conhecimento; ação coletiva; raça, gênero, territorialidades e violência; movimentos indígenas; estudos de(s)coloniais e anticoloniais; práticas sociopolíticas alternativas ao capitalismo.
Para quem se interessar sobre o tema, a tese de doutorado de Léa está disponível  em “Autodeterminação em três movimentos: a politização de diferenças sob a perspectiva da (des)naturalização da violência”.