Chacina da Candelária

Em 23 de julho de 1993, oito jovens foram assassinados nas proximidades da Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro. Esse acontecimento ficou conhecido como a Chacina da Candelária

Por
Alice Elias
Data de Publicação

Chacina da Candelária
Segundo o professor Sergio Adorno, "o caso teve grande repercussão internacional, tendo mobilizando a sociedade civil organizada para que os acusados fossem processados e punidos e tais eventos não voltassem a correr." (Arte: Renan Braz)

Em 23 de julho de 1993, oito jovens que dormiam em frente à Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, foram assassinados a tiros por homens armados, posicionados em dois veículos com placas encobertas. Com o testemunho de um dos sobreviventes, foram indiciados sete homens entre policiais militares, ex-policial militar e pessoas civis. Apesar de condenados a sentenças de ao menos 200 anos, continuam em liberdade até hoje. 

De acordo com Sergio Adorno, coordenador científico do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, e professor do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, apesar da transição democrática, a Constituição de 1988 não fez muitas alterações nas organizações policiais e manteve uma forte herança do passado autoritário brasileiro. 

Essas organizações são parte de uma estrutura social que privilegia a proteção de cidadãos melhor posicionados na hierarquia social. Os governos democráticos posteriores a 1988 não promoveram mudanças que oferecessem proteção às camadas menos privilegiadas, como protocolos de atuação e uso de armamentos e tecnologias. 

A Chacina da Candelária é apenas uma dentre diversas outras chacinas na história brasileira, um tipo de crime que assola o Brasil ainda hoje. Conversamos com o professor Sergio Adorno para entender mais sobre as motivações dessa violência, confira:

Serviço de Comunicação Social: Você poderia comentar brevemente sobre o que foi a Chacina da Candelária?

Sergio Adorno: Em 23 de julho de 1993, oito jovens foram assassinados nas proximidades da Igreja da Candelária, no Centro do Rio de Janeiro. No início dos anos 1990, muitas crianças dormiam nas ruas, ao relento, sem abrigo e em situação de abandono parental e de falta de assistência por parte de organismos governamentais e não-governamentais. Nesse dia, estima-se que na região dormiam muitas pessoas, entre os quais pré-adolescentes e adolescentes. Pouco antes da meia-noite, dois veículos, com placas encobertas, passaram no local atirando contra esses moradores de rua, atingindo seis adolescentes e dois jovens adultos. Posteriormente, com apoio no depoimento de um dos sobreviventes, as investigações lograram descobrir a autoria dessa chacina, entre milicianos, tendo sido acusados sete pessoas entre policiais militares, ex-policial militar e pessoas civis. O caso teve grande repercussão internacional, tendo mobilizando a sociedade civil organizada para que os acusados fossem processados e punidos e tais eventos não voltassem a correr.

Serviço de Comunicação Social: Que tipo de pesquisa o NEV desenvolve acerca desse tema? Já houve algum trabalho específico sobre a Chacina da Candelária? 

Sergio Adorno: O Núcleo de Estudos da Violência da USP, ligado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, nasceu com a preocupação de descrever e compreender os paradoxos entre a transição da sociedade brasileira para o regime democrático, depois de 21 anos de vigência de ditadura civil-militar e a persistência da violência e sobretudo das graves violações de direitos humanos. Conforme apontam a historiografia e a bibliografia especializada em transições democráticas, as sociedades que lograram com êxito consolidar o Estado democrático de Direito o fizeram mediante controle legal da violência, o que significou não apenas reduzir as oportunidades de conflitos intra sociedade civil com desfechos fatais ou graves ameaças aos direitos fundamentais de quem quer que seja, como também a violência policial na repressão aos crimes e no controle da ordem pública. Sociedades que se democratizaram respeitam Direitos Humanos, os direitos fundamentais à vida e às liberdades civis e públicas. No seu programa de investigação e de disseminação de conhecimento para públicos amplos, o NEV procura compreender as razões da incompletude da democracia no Brasil. 

Apesar de sermos uma sociedade e um Estado cuja Constituição está fundamentada na agenda dos Direitos Humanos, persistem graves violações desses direitos, não apenas pelo emprego desmedido e ilegal da violência, tanto por atores civis quanto por atores com responsabilidade pública no cumprimento das leis, assim como graves violações de direitos sociais, culturais e políticos. Ao longo de sua história acadêmica, o NEV procurou documentar esses casos de graves violações, estudá-los mediante rigorosas análises baseadas nas ciências sociais e humanas, além extrair conclusões que pudessem influenciar diferentes setores da sociedade, como formadores de opinião e educadores visando disseminar a cultura dos Direitos Humanos. Especificamente não nos detivemos no caso da Chacina da Candelária, pois havia outros pesquisadores especialmente do Rio de Janeiro acompanhando o desenrolar dos acontecimentos. Mas, temos nos dedicado a outros casos, igualmente com repercussão internacional, como o Massacre da Casa de Detenção (Carandiru)  em São Paulo.

Serviço de Comunicação Social: O Brasil tem um número considerável de Chacinas -  da Candelária, Carandiru, de Eldorado, e muitas outras. Em sua análise, quais os principais motivos que alimentam essa violência, e ainda, os principais alvos?

Sergio Adorno: Certamente, concorrem para a repetição dessas ocorrências uma convergência de possíveis causas, cuja complexidade não é possível tratar neste curto espaço. Pode-se indicar algumas hipóteses. Apesar da transição democrática e da consolidação política democrática, a Constituição de 1988 não alterou substancialmente o modelo de suas organizações policiais. Mesmo que se considerem as mudanças que foram e vêm sendo introduzidas nessas organizações há mais de trinta anos, já na vigência do regime democrático, fortes heranças do passado e sobretudo do passado autoritário se mantiveram. 

Em todas as sociedades que se democratizaram, foram introduzidas mudanças nos mais diferentes aspectos – na administração do trabalho policial, na definição das funções, nos protocolos de vigilância das ruas e de uso de armamentos, em inovações tecnológicas e inclusive organizacionais como a ênfase no policiamento comunitário e na criação de relação de confiança entre cidadãos e policiais, nos limites ao uso da força, nas tarefas de repressão e de investigação dos crimes, na profissionalização e na criação de carreiras. Tudo isso contribuiu para a formação, em duas ou três gerações, de uma nova cultura organizacional capaz de formar novos recursos humanos capazes de melhor compreender e dimensionar suas atribuições institucionais e os efeitos de suas ações, inclusive quando empregam força física além dos limites estabelecidos pelas normas e estatutos. 

Além disso tudo, é preciso considerar que as organizações policiais são parte de uma estrutura social que cada vez mais acentua desigualdades e polariza os estratos sociais em grupos com interesses antagônicos e divergentes. Como se sabe, porque se trata de fenômeno bem documentado, o alvo principal das intervenções policiais são aqueles pertencentes aos estratos socioeconômicos de baixa renda, moradores nas chamadas periferias urbanas, constituídos em sua maior parte de trabalhadores não especializados, vinculados ao mercado informal, na sua maioria jovens pretos. Nesse cenário, as organizações policiais tendem, intencionalmente ou não, a privilegiar a proteção dos cidadãos e cidadãs melhor posicionados nas hierarquias sociais em detrimento daqueles indivíduos e grupos desprovidos do acesso universal aos direitos. Assim, um dos grandes desafios da imaginação política brasileira é reformar suas organizações policiais de forma a que deixem de reproduzir desigualdades e passem a efetivamente oferecer proteção e segurança para todos os cidadãos e cidadãs independentemente de suas diferenças de classe, poder, gênero, geração, raça e etnia. 

Serviço de Comunicação Social: Segundo dados do Anuário de Segurança Pública de 2021, houve um aumento de 190% no número de mortes decorrentes de violência policial, em comparação aos dados de 2013. Quais as possíveis causas desse aumento, e quais medidas o Estado deve adotar para minimizar esses crimes? 

Sergio Adorno: Parte da resposta já foi tratada na questão anterior. As causas possíveis permanecem e não foram enfrentadas pelos governos democráticos, a despeito dos esforços nos governos Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Rousseff, para fomentar políticas públicas de segurança no âmbito dos governos federais com o propósito de mudar o cenário institucional da dinâmica da violência e da atuação das agências encarregadas de controle da ordem pública. 

A esse cenário, cabe ainda acrescentar quatro outras considerações. Em primeiro lugar, há uma certa dissonância de políticas de segurança pública entre os Estados da federação e o governo federal. De acordo com a Constituição e o Pacto Federativo, cabe aos estados a competência para o controle legal da ordem pública. Ao governo federal cabe oferecer diretrizes nacionais, mediante estímulo para que os governos estaduais acompanhem essas diretrizes, como fundos e recursos financeiros, materiais e humanos. Mas, as relações entre governo federal e governos estaduais longe estão de serem de acomodação e reciprocidade, ao contrário, constituem não raro fonte de tensão entre governos e governantes. 

Em segundo lugar, os governos estaduais evitam introduzir mudanças profundas em suas organizações policiais com receio de resistências corporativas, quase sempre muito poderosas, capazes de desestabilizar governos locais. Os governos estaduais procuram distanciar-se de temas polêmicos que afetam a sensibilidade institucional das organizações policiais. E o pior, em períodos de graves crises institucionais e das consequências de um crime ocorridos em áreas de competência estadual, com repercussão nacional e internacional, tende a reafirmar as piores políticas de segurança com apoio irrestrito ao uso desmedido e ilegal da força e mesmo justificando mortes de cidadãos suspeitos de cometimento de crimes ou mesmo sem qualquer imputação de crimes na justiça penal. 

Em terceiro lugar, os esforços dos governos estaduais têm-se limitado ao reaparelhamento das organizações policiais, mediante demandas internas e corporativas. Embora até de certo modo necessárias – basta ver a precariedade das instalações nas delegacias de polícia – na sua maior parte compreendem compra e modernização de armamento, de viaturas e outros meios de imposição da força. Não há um programa efetivamente estratégico de curto, médio e longo prazo com previsão de resultados que possam ser acompanhados e monitorados. 

Por último, o aumento das intervenções policiais com mortes também pode ser consequência indireta de acenos do atual governo federal no sentido de que somente uma polícia mão dura é capaz de conter a violência dos criminosos, ao que se associa o armamento da população e o ódio que se dissemina não apenas contra os supostos bandidos mas contra os pobres em geral.

Serviço de Comunicação Social: Por último, observa-se que esses crimes, cada dia mais frequentes, não geram uma grande comoção popular. Por que isso acontece? 

Sergio Adorno: Eu respondo com uma observação mais geral. Essa espécie de inércia da consciência pública no Brasil não se restringe aos crimes com repercussão. Elas fazem parte da cultura política nesta sociedade. Não quero dizer com isso que os cidadãos e cidadãs brasileiros sejam conformados. A cultura política brasileira é uma mescla complexa de elementos conservadores e autoritários, por um lado, e de profundas raízes democráticas, por outro. Há momentos em que manifestações de protesto e de comoção popular tomam as ruas e produzem efeitos nas relações entre governantes e governados. E, há outros em que a ausência de protestos e resistência diante de situações de graves violações de direitos humanos causa espanto inclusive para nós cientistas sociais. 

De todo modo, não seria de todo equivocado afirmar que, em áreas determinadas da existência social – como são os problemas decorrentes do crime e da carência de políticas públicas de segurança eficazes – em que o conservadorismo social ganha maior amplitude entre diferentes estratos socioeconômicos, independentemente de qual posição ocupem nas hierarquias sociais. É um verdadeiro paradoxo entender por que, entre os cidadãos e cidadãs mais vulneráveis à violência policial, vítimas potenciais de desfechos com mortes, há expressivas parcelas daqueles que apostam em polícias duras, inflexíveis e que usam da força em maior intensidade do que a de bandidos. 

O professor Adorno é doutor em Sociologia pela FFLCH USP, e obteve pós-doutorado pelo Centre de Recherches Sociologiques sur le Droit et les Institutions Pénales (CESDIP - França), professor titular em Sociologia da FFLCH, e coordenador científico do NEV USP. Com ênfase em Sociologia Política, atua principalmente nos seguintes temas: violência, direitos humanos, criminalidade urbana, controle social e conflitos sociais.