Nascimento de Alexis de Tocqueville

Autor de obras como "A democracia na América" e "O Antigo Regime e a Revolução", Tocqueville aborda os efeitos da democracia como estado social, o governo, as ideias, os costumes, a ciência, as artes, a literatura, etc

Por
Alice Elias
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Nascimento de Alexis de Tocqueville
Segundo Felipe Freller, "os dois volumes de A democracia na América podem ser considerados como um dos esforços teóricos mais elaborados e extensivos, no século XIX, para compreender a sociedade moderna, seus potenciais e os perigos com que ela se defrontava no terreno político." (Arte: Alice Elias)

 

Alexis de Tocqueville nasceu em 29 de julho de 1805, em Paris (França). Foi um pensador político e escritor, famoso por obras como A democracia na América, e O Antigo Regime e a Revolução. Dentre suas inúmeras contribuições, Tocqueville reformula o conceito de democracia, a fim de melhor descrever a sociedade moderna.

A partir de sua obsessão por entender os resultados de uma sociedade democrática, Tocqueville articulou elementos presentes em análises alheias sobre a democracia, “uma articulação particular que realçou, em relação a todos esses discursos, o que a democracia tinha de profundamente radical, além de ambíguo”, aponta Felipe Freller, doutor em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS).

Confira a entrevista completa com Felipe Freller, sobre o legado do escritor que “conseguiu abarcar como ninguém os diversos, e por vezes contraditórios, aspectos da democracia moderna, levando em consideração a tendência ao individualismo extremado, ao isolamento individual favorável ao ressurgimento do despotismo, mas também a dimensão política da soberania do povo, a qual poderia se realizar de maneira a corrigir a tendência ao individualismo.”

 

Serviço de Comunicação Social: Você poderia comentar um pouco sobre quem foi Alexis de Tocqueville?


Felipe Freller: Alexis de Tocqueville foi um importante pensador político, assim como um ator político, na França do século XIX. Ele nasceu em 29 de julho de 1805, durante o Império napoleônico, em uma família proveniente da tradicional nobreza da Normandia – seus pais haviam escapado por pouco da guilhotina durante a Revolução Francesa, mas outros membros da família não conseguiram escapar, como a irmã de sua mãe. A obsessão intelectual de Tocqueville sempre foi compreender o movimento histórico que levou a esse evento tão dramático para seu país e sua família – a Revolução Francesa –, assim como a sociedade oriunda desse movimento histórico – uma sociedade sem aristocracia, concebida como composta por indivíduos livres e iguais de direito. Convencido de que esse movimento histórico em direção a uma sociedade igualitária transcendia o seu próprio país, ele resolveu estudar seus resultados na nação tida como a mais democrática de seu tempo, os Estados Unidos da América. Depois de passar cerca de um ano nos Estados Unidos, a pretexto de estudar o sistema penitenciário daquele país, ele publica, em 1835, o primeiro volume de A democracia na América, livro que o torna imediatamente famoso. Longe de se resumir a uma simples interpretação da sociedade e do sistema político estadunidenses, os dois volumes de A democracia na América (o segundo é publicado em 1840) podem ser considerados como um dos esforços teóricos mais elaborados e extensivos, no século XIX, para compreender a sociedade moderna, seus potenciais e os perigos com que ela se defrontava no terreno político.

A fama conquistada com esse livro permite a Tocqueville exercer também uma carreira política, algo quase natural, na época, para quem tinha seus interesses. Eleito deputado em 1839, ele exerce essa função ininterruptamente até a Revolução de 1848 eclodir como o maior trauma político de sua geração, em uma proporção quase análoga ao que fora a Revolução Francesa para a geração de seus pais. Tocqueville procura participar ativamente dos eventos abertos por essa revolução, elegendo-se, pelo sufrágio universal masculino, à Assembleia Nacional Constituinte da Segunda República Francesa, depois à Assembleia Nacional Legislativa, e exercendo o cargo de ministro dos Assuntos Estrangeiros no segundo governo Odilon Barrot, de junho a outubro de 1849. O golpe de Estado de Luís Napoleão Bonaparte, em dezembro de 1851, encerra definitivamente sua carreira política, a qual talvez não tenha estado à altura de suas ambições, e pela qual ele já imaginava, em vida, que seria menos lembrado do que por seus escritos.

Os últimos anos da vida de Tocqueville são dedicados a uma minuciosa pesquisa histórica sobre a sociedade francesa do Antigo Regime, por meio da qual ele pretendia esclarecer qual havia sido, afinal, a obra do grande evento que sempre determinou sua curiosidade intelectual, a Revolução Francesa. Em 1856, ele publica a primeira parte de O Antigo Regime e a Revolução (as partes seguintes permanecem apenas notas não publicadas em vida), seu principal escrito depois de A democracia na América, no qual se argumenta que a obra política e social da Revolução Francesa foi uma continuação do que a centralização administrativa do Antigo Regime já vinha realizando havia séculos. Tocqueville morre em 16 de abril de 1859, aos 53 anos, em Cannes, para onde havia se retirado alguns meses antes para tratar uma tuberculose.

 

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a França do século XIX? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?


Felipe Freller: Quando Tocqueville escreve A democracia na América, outros autores e personagens políticos já haviam usado o conceito de democracia para se referir à sociedade moderna, deslocando o sentido tradicional de democracia como um regime político, tradicionalmente associado, além do mais, à Antiguidade clássica mais do que à modernidade. Autores e políticos liberais já haviam empregado o conceito de democracia para se referir à influência crescente das classes médias nos assuntos públicos, um fenômeno social que teria por consequências políticas o governo representativo, a liberdade de imprensa, a igualdade civil e jurídica etc. Autores e políticos conservadores, por outro lado, falavam por vezes da democracia como uma nova forma de sociedade caracterizada pelo extremo individualismo, ou seja, pela dissolução dos vínculos hierárquicos que asseguravam a coesão social na antiga sociedade aristocrática.

As principais contribuições de Tocqueville para o pensamento político de seu tempo devem ser entendidas no contexto dessa reformulação do conceito de democracia para descrever a sociedade moderna. O autor tem por ponto de partida essas análises da “revolução democrática” moderna já efetuadas por liberais e conservadores de uma geração anterior, mas ele leva essas análises a um grau superior de sistematização e aprofundamento, abordando, de maneira detalhada, os efeitos da democracia, como estado social, sobre o governo, as ideias, os costumes, os sentimentos, a religião, a ciência, as artes, a literatura, a indústria, a família, a relação entre homens e mulheres, a guerra etc. É verdade que, em todas essas análises, às vezes é difícil distinguir a contribuição original de Tocqueville em relação a autores anteriores que o influenciaram (Benjamin Constant, Madame de Staël, Guizot, Royer-Collard, Chateaubriand etc.). Um contemporâneo dele, Charles de Rémusat, chegou a comentar que Tocqueville “se dava ao trabalho de descobrir por sua própria conta o que já se havia encontrado antes dele (...), o que o dispõe a encontrar como novo o que não o é, mas que lhe confere sobre suas ideias menos originais um direito de propriedade unido a um acento de convicção que ele não teria sem isso”.[1]

Podemos afirmar que a contribuição mais original de Tocqueville provém da maneira particular como ele articulou elementos presentes em outros discursos de seu tempo sobre a democracia – uma articulação particular que realçou, em relação a todos esses discursos, o que a democracia tinha de profundamente radical, além de ambíguo. O autor viu na democracia um fenômeno muito mais profundo e dramático do que a tranquila influência política das classes médias louvada por alguns liberais – e nisso ele se aproximou mais do “terror religioso” (expressão que ele próprio usa [2]) de alguns conservadores diante da dissolução dos antigos vínculos sociais e da ascensão desenfreada do individualismo. Por outro lado, ele seguiu os liberais na descrição dos efeitos positivos de instituições como a liberdade de imprensa, o júri, a descentralização administrativa, a competição entre partidos etc., argumentando, contra os conservadores, que as instituições políticas da democracia podiam temperar, ou mesmo reverter, as tendências nefastas da democracia como estado social. Em outras palavras, Tocqueville conseguiu abarcar como ninguém os diversos, e por vezes contraditórios, aspectos da democracia moderna, levando em consideração a tendência ao individualismo extremado, ao isolamento individual favorável ao ressurgimento do despotismo, mas também a dimensão política da soberania do povo, a qual poderia se realizar de maneira a corrigir a tendência ao individualismo.

Tocqueville também apresentou uma contribuição original ao aprofundar o aspecto “sociológico” da democracia, ou seja, ao mostrar que o estado social democrático não era apenas o sentido de uma História universal de longa duração, mas uma realidade que assumia contornos profundamente distintos em diferentes países, em função das particularidades históricas e culturais. Assim, A democracia na América articula uma teoria geral da democracia a um estudo sociológico sobre como ela se entrelaça de maneira particular com a história e os costumes dos Estados Unidos, assumindo uma feição totalmente diferente da que ela tem na Europa. O Antigo Regime e a Revolução, por sua vez, descreve como a democracia emergiu na França em um processo de corrupção dos costumes da liberdade promovido pela centralização administrativa do Antigo Regime. Tocqueville consegue unir, dessa maneira, as perspectivas de liberais e conservadores do século XIX sobre a democracia como estado social a um estilo de escrita que remonta aos republicanos clássicos de séculos anteriores: um estilo de escrita que põe no centro a fundação da liberdade nos costumes de um povo particular, tendo por problema crucial o processo de corrupção desses costumes.

As contribuições de Tocqueville repercutem atualmente na medida em que, apesar dos esforços de certa vertente da ciência política nas últimas décadas, torna-se cada vez mais difícil isolar o estudo das instituições democráticas de uma apreensão mais geral da democracia como fenômeno social. As últimas décadas não foram marcadas por um aprofundamento da igualdade em sua dimensão econômica, pelo contrário; porém, elas presenciaram sim uma radicalização do processo de individualização – e essa era a marca fundamental da democracia para Tocqueville. Nas sociedades contemporâneas, os indivíduos estão mais liberados do que nunca de vínculos ou identidades coletivas compulsórias, sejam elas de família, classe, religião etc. Tocqueville discerniu muito claramente os riscos de tal processo de individualização, riscos que vão da massificação da indústria cultural (ele falou em “indústria literária”[3]) à ascensão de novas formas de autoritarismo. Por outro lado, o próprio refinamento sociológico de Tocqueville é um procedimento metodológico indispensável para nos permitir enfrentar esses perigos sem fatalismo: longe de aderir aos relatos apocalípticos da catástrofe iminente, já presentes no século XIX, o autor de A democracia na América refletiu pormenorizadamente sobre os diferentes efeitos que a democracia poderia ter em diferentes circunstâncias, enfatizando ao mesmo tempo o peso da História e dos costumes herdados e a importância das escolhas humanas.

 

Serviço de Comunicação Social: Em sua dissertação de mestrado, você afirma que Tocqueville procurou reformular a soberania do povo em novas bases, após a Revolução Francesa. Você poderia falar mais sobre isso?


Felipe Freller: A Revolução Francesa proclamou e procurou pôr em prática a soberania do povo, mas esse povo foi concebido, em geral, como uma entidade abstrata que deveria transcender o conjunto de cidadãos empiricamente existentes, orientados por costumes e formas políticas herdados da História. A Assembleia Nacional Constituinte chegou a elaborar uma divisão administrativa completamente nova para a França, com a justificativa de que as antigas províncias e municipalidades tornavam aquele país uma coleção de pequenas democracias, ao passo que ele deveria se transformar, nas palavras de um influente orador do período, em “um todo submetido uniformemente a uma Legislação, a uma Administração comum”.[4] Isso significava que, para fazer da França uma nação soberana, era preciso que os franceses se desapegassem de seus vínculos locais e provinciais, construídos por séculos de História, e passassem a se sentir politicamente vinculados apenas à Assembleia Nacional, onde seria formulada a vontade oficial do povo.

Tocqueville foi um crítico dessa maneira pela qual a Revolução Francesa concebeu e tentou pôr em prática a soberania do povo, pois percebeu que a realidade desse poder derivado da nação abstrata encarnada misticamente na Assembleia Nacional era exercida, de fato, por uma burocracia centralizada de funcionários que passavam a tutelar a vida nacional em detalhes cada vez menores. Sua tese, em O Antigo Regime e a Revolução, é que essa administração centralizada era uma herança do Antigo Regime da qual os revolucionários se apropriaram, pensando que bastava substituir, em seu comando simbólico, o Rei pelo povo soberano:


Decidiram portanto misturar ao mesmo tempo uma centralização administrativa sem limites e um corpo legislativo preponderante: a administração da burocracia e o governo dos eleitores. A nação como tal teve todos os direitos da soberania, cada cidadão em particular foi restringido à mais estreita dependência: a uma pediram a experiência e as virtudes de um povo livre; ao outro, as qualidades de um bom servidor.[5]


O que mais interessa Tocqueville nos Estados Unidos é que lá ele vê um outro paradigma da soberania do povo. Ela não seria exercida somente em um centro político no qual os representantes da nação são eleitos. Ela seria exercida, em primeiro lugar, no âmbito da comuna, das pequenas frações do território, onde os cidadãos se reúnem para resolver as questões mais cotidianas e corriqueiras. É nessa escala que, segundo o autor, os indivíduos aprendem a negociar, a deliberar, a decidir em conjunto, enfim, a agir politicamente. Se a soberania do povo é reduzida apenas ao direito de votar para a Assembleia Nacional, mas a burocracia toma conta dos assuntos locais e cotidianos, “os cidadãos saem um momento da dependência para indicar seu senhor e voltam a entrar nela”.[6]

Em suma, o exemplo americano ajuda Tocqueville a reformular o ideal de soberania do povo, passando a pensá-la não como concentrada em um centro político, mas como disseminada em frações do território. O povo não seria soberano somente ao eleger seus representantes, mas principalmente quando se reúne para decidir diretamente sobre assuntos de interesse comum de uma cidade, comuna ou vilarejo específico. Formulando uma concepção de poder que ressoará, mais de um século depois, na obra de Michel Foucault, Tocqueville confere menos importância à soberania abstrata do povo sobre o Estado do que à conduta efetiva dos cidadãos no governo de suas questões cotidianas e locais: “é principalmente no detalhe que é perigoso sujeitar os homens. Eu tenderia a crer a liberdade menos necessária nas grandes coisas do que nas pequenas, se pensasse que se pudesse ter uma garantida sem possuir a outra”.[7]

 

Referências bibliográficas:

[1] RÉMUSAT, Charles de. “De l’esprit de réaction, Royer-Collard et Tocqueville”. Revue des Deux Mondes, t. XXXV, 1861, p. 804.
[2] TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Livro I: Leis e costumes. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 11.
[3] TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Livro II: Sentimentos e opiniões. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 69.
[4] Dire de l’abbé Sieyès sur la question du veto royal, à la séance du 7 Septembre 1789, Paris, Chez Baudouin, Imprimeur de l’Assemblée nationale, p. 12.
[5] TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 185.
[6] TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Livro II: Sentimentos e opiniões. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 391.
[7] Ibid., p. 391-392.

Felipe Freller é doutor em Ciência Política pela FFLCH USP e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), mediante convênio de dupla titulação. Sua tese de doutorado, Benjamin Constant e o problema do arbítrio: um decisionismo moderado, foi contemplada com o Prêmio CAPES de Tese 2021 da área de Ciência Política e Relações Internacionais, com o Grande Prêmio CAPES de Tese Oscar Niemeyer do Colégio de Humanidades e com Menção Honrosa do Prêmio Tese Destaque USP 10ª edição (Grande Área: Ciências Humanas). Atua principalmente na área de Teoria Política Moderna, e pensamento político da Revolução Francesa e da primeira metade do século XIX na França, em torno de temas como a democracia, a soberania do povo, o liberalismo e o problema do arbítrio e da decisão política.

Para quem se interessar mais sobre o assunto, a dissertação de mestrado de Freller se encontra disponível em Guizot, Tocqueville e os princípios de 1789, e ainda este ano será publicada como livro pela editora Alameda. Um artigo baseado em sua dissertação foi publicado na Revista Estudos Políticos, disponível em Guizot, Tocqueville e os princípios de 1789 | Revista Estudos Políticos, ou mesmo como capítulo no livro A nova ciência da política (organização de Rogério Arantes e Lucas Petroni; São Paulo: FFLCH/USP, 2020).