Nascimento de Liev Tolstói

Autor de clássicos como "Guerra e Paz" e "Anna Karenina", Tolstói é conhecido como o maior prosador russo

Por
Alice Elias
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Nascimento de Liev Tolstói
Segundo Aurora Bernardini, "Apesar de seus narradores serem oniscientes, [Tolstói] não foi um autor monológico, no sentido de Bakhtin. Há diálogo e contraste de opiniões". (Arte: Alice Elias)

 

Em 9 de setembro de 1828, nasceu Liev Tolstói (em russo, Lev Nikoláyevich Tolstóy). Conhecido como o maior prosador russo, é autor de clássicos como Guerra e Paz (1869) e Anna Karenina (1877), obras primas do romance psicológico do século 19, e também de contos notáveis como A morte de Ivan Ilitch (1886).

Sua obra “potente, brilhante, original e universal” fascinou escritores como Fiodor Dostoievski, Gustave Flaubert e Virginia Woolf. Conversamos com Aurora Fornoni Bernardini, professora do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sobre o legado da carreira literária de Tolstói. Confira:

Serviço de Comunicação Social: Você poderia comentar brevemente sobre quem foi Liev Tolstói?

Aurora Bernardini: Aqui está parte do prefácio que escrevi para a tradução que fiz da diatribe de Tolstói Shakespeare e o drama publicada pela Nova Fronteira em 2021, que poderá servir para dar uma ideia geral sobre o escritor e responder à sua primeira questão:

“Tolstói [1828-1910] é o maior prosador russo”, diz Vladímir Nabokov em suas Lições de literatura russa. “À primeira vista” – continua o autor – “pareceria que a ficção de Tolstói é fortemente infectada por suas posições doutrinárias. Na verdade, sua ideologia era tão moderada, tão vaga e tão distante da política que sua arte – tão potente, tão ferozmente brilhante, tão original e universal – transcendeu de muito o sermão. (...) Na juventude, o libertino teve melhores oportunidades e prevaleceu. Mais tarde, após seu casamento, em 1862, Tolstói encontrou uma paz temporária na vida em família, dentro da qual administrava sabiamente sua fortuna – possuía terras férteis na região do Volga – e a produção de sua melhor prosa. (...) Mais tarde, no final da década de 1870, quando tinha mais de quarenta anos, sua consciência triunfou: os fatores éticos superaram tanto o estético quanto o pessoal, levando-o a  sacrificar a felicidade da esposa,  a vida familiar pacífica [Tolstói decidiu que não lhe seriam mais pagos os  direitos autorais de seus livros, para que todos pudessem lê-los] e a sublime carreira literária, àquilo que considerava uma necessidade moral: viver de acordo com os princípios da moralidade cristã racional – a vida simples e severa da humanidade em geral, em vez da aventura excitante da arte individual.”

“Entretanto,” diz Górki em suas Reminiscências sobre Tolstói, “sempre me afastava de Tolstói essa sua obstinada e despótica ambição de transformar a vida do conde Lev Nikoláievitch Tolstói na ‘vida do santo padre nosso beatífico boiardo Lev’.” E essa necessidade moral continuou, cada vez mais premente e acentuada, revelando-se em sua nova forma de escrever, até quando, aos 82 anos, em 1910, saiu de casa rumo a um mosteiro onde nunca chegou, pois, conforme se sabe, morreu em viagem, na estação de trem de Astápovo.

São dessa última e longa fase não mais suas obras-primas do romance psicológico do século XIX,  mas sim  lendas,  contos,  a maioria  deles notáveis, como A morte de Ivan Ilitch  e  Kholstomer (ambos de 1886), Padre Sérgio e Depois do baile (ambos publicados postumamente, em 1911) e, principalmente, ensaios de caráter pedagógico, crítico, moral e/ou religioso, sendo que nesses últimos pode-se notar, progressivamente, “o desenvolvimento lógico da nova religião que ele formulou – uma mistura neutra de Nirvana hindu com o novo Testamento, Jesus sem a igreja”, como novamente explica Nabokov.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Tolstói?

Aurora Bernardini: No livro Os Cossacos (1863), um dos primeiros do escritor, que temos no Brasil em duas traduções (da Klara Gourianova e a da Sonia Branco), há o esboço de algumas das caracterizam que marcam sua escrita, a saber:

- escrever sobre assuntos que se conhecem bem;

- manter o máximo de fidelidade com a fábula (aquilo que aconteceu na realidade, na acepção do significado atribuído ao termo pelo Formalismo Russo)

- admiração pela coragem física e moral

- descrição sui generis (singular) de pessoas, objetos, acontecimentos, o que levou Víktor Chklóvski a considerá-lo um dos máximos expoentes do estranhamento (termo consagrado no Brasil para traduzir o original ostraniênie).

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Literatura? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Aurora Bernardini: Apesar do que insinua Nabókov, Tolstói foi sim um escritor “a tese”. Ou seja, ele tinha sedimentado, em sua vida, certas convicções (não necessariamente ideologias) que expunha em seus livros sob forma de uma tese a ser demonstrada, sempre com muito brilho, mesmo se algumas fossem difíceis de serem compartilhadas. Exemplo: a sublimação do sexo em Sonata a Kreuzer; o amor desinteressado em Padre Sérgio e no prefácio que ele escreveu a A Queridinha de Tchékhov. Apesar de seus narradores serem oniscientes, ele não foi um autor monológico, no sentido de Bakhtin. Há diálogo e contraste de opiniões.

Suas principais contribuições para a literatura e para nós:

- O texto deve agradar ao leitor.

- Deve haver certo suspense para manter aceso o interesse.

- No importantíssimo livro de Ricardo Piglia, O laboratório do escritor, ele fala de duas histórias: uma linear, aparente, e uma subjacente, latente, escondida, que irrompe no fim e que é a mais importante. A arte do escritor consiste em cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Para Tolstói seria o oposto.

- Em nosso mundo conspurcado por tantos ideologemas fake repercutem muito a propósito certas contribuições de Tolstói, a mais importante: “no seu íntimo, cada um sabe o que é certo e o que é errado”. (Isso continua válido, apesar de um aluno sábio e desiludido haver-me dito “professora, hoje ninguém sabe o que é consciência”).

Aurora Fornoni Bernardini é graduada em Língua e Literatura Inglesa e em Curso livre de língua russa pela FFLCH, mestre em Língua e Literatura Italiana e doutora em Literatura Brasileira pela mesma instituição. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria e Crítica Literárias, atuando principalmente nos seguintes temas: Teoria e Crítica Literárias, Literatura Russa, Literatura Italiana, Literatura Comparada e Teoria da Narrativa, Semiótica Russa.