Golpe Militar no Chile

Presidente Salvador Allende sofreu um golpe de Estado três anos após sua eleição

Por
Alice Elias
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Golpe Militar no Chile
Segundo o professor Horacio Gutiérrez, "Um golpe de Estado vinha sendo intentado desde a vitória de Allende em 1970, quando houve o assassinato do comandante-em-chefe do Exército (General Schneider) porque era favorável a respeitar o resultado das eleições". (Arte: Alice Elias)

 

Em 11 de setembro de 1973, o presidente chileno Salvador Allende sofreu um golpe de Estado, articulado com participação de militares desde sua vitória em 1970. Allende não aceitou propostas de exílio ou fuga, e permaneceu no Palácio de La Moneda enquanto o local era bombardeado e tomado por militares.

Morto no mesmo dia, há fortes indícios levantados que apontam tanto para sua execução quanto para seu suicídio. Contudo, antes de sua morte Allende se dirigiu ao povo chileno através da última rádio que permanecia no ar, em “discurso emblemático e impactante por sua reflexão política, premonição e sensibilidade”, segundo Horacio Gutiérrez, professor de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

O governo de Allende denunciava a condição de pobreza que assolava a maioria da população, enquanto a riqueza era posse de uma pequena elite. Inspirado por ideais socialistas, Allende visou implementar transformações estruturais capazes de suprimir a desigualdade social do país.

A oposição golpista foi composta por membros do Congresso, Poder Judiciário, Forças Armadas, grande imprensa e, sobretudo, conglomerados econômicos estrangeiros e nacionais. Dentre as motivações para o Golpe, pretendia-se reverter as reformas sociais implementadas pelo presidente e reduzir o poder conquistado pelos trabalhadores.

De acordo com o professor Gutiérrez, o regime militar, comandado por Augusto Pinochet, instaurou um modelo neoliberal antidemocrático e excludente, bem como a contrarreforma agrária e a privatização da educação, saúde, previdência e empresas públicas. “Isso provocou altos índices de crescimento e admiráveis indicadores macroeconômicos, mas também, simultaneamente, de desemprego, exclusão e desigualdade social”. Apesar do aumento de eficiência e qualidade nos serviços, tal modelo pôs à margem a maior parte da população, desprovida de condições financeiras para “usufruir do livre mercado”. 

A ditadura pinochetista foi caracterizada pela violência aos direitos humanos e por repressões sem precedentes. Protestos populares foram combatidos com prisões, exonerações, tortura, execuções, desaparições, exílios e censura. Para Gutiérrez, “o Golpe chileno e a ditadura subseqüente deixaram ensinamentos dolorosos, alguns hoje irrenunciáveis: a importância do respeito aos direitos humanos, tanto sociais como individuais. Qualquer sociedade imaginada para o futuro não poderá prescindir desses valores”. Confira na íntegra a entrevista com o professor:

Serviço de Comunicação Social: Qual o contexto anterior ao Golpe de Estado no Chile em 1973? Como ocorreram as articulações e eventos que o concretizaram?

Horacio Gutiérrez: O golpe de Estado de 11 de setembro de 1973 no Chile ocorreu contra o governo de Salvador Allende, que comandava a 'via chilena ao socialismo' com o apoio de uma coalizão de partidos de esquerda, marxistas e social-democratas, a Unidade Popular (UP). Era uma experiência única no país: superar o capitalismo e transitar ao socialismo por vias pacíficas dentro da democracia burguesa. O diagnóstico era a existência de uma profunda desigualdade social, com miséria generalizada afetando a maioria da população, e riqueza concentrada numa pequena elite nacional e estrangeira dona de terras e dos principais setores da indústria. O programa contemplava transformações estruturais de envergadura. Inicialmente o fortalecimento do Estado, com a nacionalização de grandes empresas e bancos chaves na economia chilena, em particular do setor da mineração, uma profunda reforma agrária, com a expropriação de latifúndios e sua redistribuição aos camponeses, e o estímulo à ampla participação popular com o robustecimento de sindicatos e entidades territoriais (Junta de Vizinhos, Centros de Mães, etc.). Muitas dessas medidas foram alcançadas, apesar do governo contar com a adversidade do Congresso, no qual nunca teve maioria, e a hostilidade permanente do Poder Judiciário, da grande imprensa e de parte significativa das Forças Armadas. A principal oposição, contudo, veio, como esperado, dos grandes conglomerados econômicos estrangeiros, principalmente estadunidenses, e nacionais, agrupados em associações patronais e partidos de direita. Um golpe de Estado vinha sendo intentado desde a vitória de Allende em 1970, quando houve o assassinato do comandante-em-chefe do Exército (General Schneider) porque era favorável a respeitar o resultado das eleições. Outras intentonas golpistas com participação de militares foram planejadas e ocorreram ao longo do governo da UP, mas foram debeladas. Cabe nesta data, 11 de setembro, referendar a exaltação que vem ocorrendo ultimamente, no Chile, da figura de Salvador Allende.

Serviço de Comunicação Social: Quais as principais motivações políticas para a deposição e morte do presidente Salvador Allende?

Horacio Gutiérrez: As principais motivações para o Golpe, após três anos de governo socialista, foram certamente a reversão das reformas sociais do governo da UP, devolvendo a propriedade dos meios de produção a seus antigos donos, bem como romper o empoderamento que as classes trabalhadoras tinham conquistado. Do ponto de vista político, o Golpe permitiria, como permitiu, a restauração da antiga estrutura vertical de poder. Mas a elite econômica foi além e, aproveitando o regime ditatorial, pôs em prática a implementação de um modelo neoliberal puro sangue, desejo antigo, impossível de se levar adiante em democracia, dada a exclusão que ocasionava na maioria da população trabalhadora, e que provocaria portanto grandes resistências. Com violenta repressão, inicialmente para eliminar todo vestígio do antigo governo, e a seguir, para abafar as resistências ao modelo neoliberal, são ideadas as assim chamadas 'modernizações', que incluíam uma reforma trabalhista ('flexibilização' da legislação trabalhista implicando limitação ou supressão de direitos), privatização da educação, saúde e previdência, privatização de empresas públicas, e contrarreforma agrária, entre outras. Isso provocou altos índices de crescimento e admiráveis indicadores macroeconômicos, mas também, simultaneamente, de desemprego, exclusão e desigualdade social. O princípio reitor das reformas foi o 'Estado subsidiário', ou seja, atingir um Estado mínimo, retirando dele toda atividade que pudesse ser realizada pelo mercado, alcançando-se assim a liberdade, muito celebrada, conceito que significava liberdade para empreender, aberta a todos, sem controles nem restrições. O resultado foi um aumento de eficiência e qualidade nos serviços, disponíveis, claro, para quem pudesse pagar, excluindo a maioria da população que não dispunha de dinheiro para empreender nem para usufruir do livre mercado. O 'Estado subsidiário' plasmou-se finalmente na Constituição de 1980. O custo adicional para a população foi uma repressão sem precedentes, necessárias para impor e naturalizar as modernizações. Toda a ditadura pinochetista caracterizou-se por violações sistemáticas aos direitos humanos: prisões, exonerações, tortura, execuções, desaparições, exílios, censura, mas também despontaram enormes jornadas de protesto que acabaram, na década dos 80, por desestabilizar a própria ditadura. 

Serviço de Comunicação Social: Quais as consequências do Regime Militar, sob o governo de Pinochet?

Horacio Gutiérrez: O Golpe de 1973 é uma boa oportunidade para refletir sobre temas candentes na época e que continuam atuais, no Chile, em Hispano-América e também no Brasil. Elenco alguns: o que é democracia e o que é ditadura; que democracia queremos; como atingi-la.
O socialismo praticamente desapareceu das plataformas dos partidos políticos de esquerda após o Golpe, e também do ideário popular, mas perguntas ressurgem: é o socialismo um projeto viável? Qual socialismo? Como alcançá-lo? O Golpe chileno eliminou a possibilidade de uma via pacífica? A derrota dos movimentos armados eliminou a possibilidade de vias armadas? Há outras vias?

O Golpe chileno e a ditadura subseqüente deixaram ensinamentos dolorosos, alguns hoje irrenunciáveis: a importância do respeito aos direitos humanos, tanto sociais como individuais. Qualquer sociedade imaginada para o futuro não poderá prescindir desses valores.

A escritura da história e as políticas de memória viraram algo necessário e pedagógico, e um compromisso ético e político. Dar nomes ao passado recente, reconstruir experiências individuais e coletivas, mapear a violência estatal, atribuir sentidos, buscar interpretações tornou-se imperativo, assim como o combate ao negacionismo e ao silêncio cúmplice.

A luta por sociedades mais justas e igualitárias deverá continuar, em democracia ou com ditaduras. Mas a sociedade de 1973 não é a mesma de hoje, cinqüenta anos depois. Novos temas e demandas, que não existiam na época, nem na direita nem como bandeiras da esquerda, emergem no presente: racismo, igualdade de gênero, homofobia, xenofobia, preocupação ambiental. Devem ser incorporados à pauta política como temas importantes? Sim, a nosso ver, e a esquerda deve estar atenta a eles, porque vários partidos, lá e aqui, ainda não tomaram conhecimento desses assuntos.

Horacio Gutiérrez é mestre, doutor e Livre-Docente em História pela FFLCH, e graduado em Economia pela Universidad de Chile. Atualmente é Professor Titular do Departamento de História da FFLCH e Diretor do Centro de Estudos de História da América Latina (CEDHAL). Leciona, pesquisa e orienta na área de História da América, em particular nos seguintes temas: identidades americanas, escravidão, história agrária e história demográfica.