"Cem Anos de Solidão", de Gabriel García Márquez, é publicado

Considerada uma das obras mais importantes da literatura latino-americana, cada história remete à evolução da história da América Latina

Por
Alice Elias
Data de Publicação

"Cem Anos de Solidão", de Gabriel García Márquez, é publicado
Segundo Laura Hosiasson, "a validade da leitura de Cem Anos de Solidão, embora transformada pelos mais de cinquenta anos que correram desde sua primeira publicação, se mantém e ela continua sendo uma experiência de deleite e aprendizagem". (Arte: Alice Elias)

 

Em 1967, o escritor colombiano Gabriel García Márquez publicou Cem Anos de Solidão,  considerada uma das obras mais importantes da literatura latino-americana. O romance acompanha quatro gerações da família Buendía, e cada uma das histórias e dramas vivenciados pelos personagens remetem à evolução da história da América Latina. Cem Anos de Solidão apresenta uma noção de totalidade, na medida em que transparece dimensões históricas, sociais, políticas, psicológicas e ontológicas do mundo a partir de suas múltiplas camadas de leitura.

Desde o ano de sua publicação, o romance de García Márquez foi muito bem recebido – inclusive, o escritor mexicano Carlos Fuentes o denominou como “um dos livros mais divertidos escritos na América Latina. Após um período literário de experimentalismo formal em que a ausência de um narrador levava o leitor a constituir diversas linhas narrativas, surge o narrador de Cem Anos de Solidão, que reassume a onisciência tradicional e orienta o leitor pela saga da família Buendía.

“Nesta volta à simplicidade da forma combinada com uma crescente complexidade do argumento, residia a novidade deste livro. Ao mesmo tempo, nada nele era ingênuo e à medida em que a trama avançava, fazia confluir mito e história política do continente retirando de seu espectro ideológico qualquer redenção religiosa. Isso teve um efeito tão insólito que ao longo de toda a década de 1970 foi leitura obrigatória de todo e qualquer jovem adulto que se julgasse moderno”, explica Laura Janina Hosiasson, professora de Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Qual a importância de Cem Anos de Solidão para a Literatura? Em linhas gerais, quais as temáticas abordadas pela obra?

Laura Janina Hosiasson: Cem Anos de Solidão surge em 1967 como o primeiro grande romance latino-americano com pretensão de totalidade, na medida em que, em suas múltiplas camadas de leitura, é possível vislumbrar uma ideia do mundo em suas mais diversas dimensões: históricas, sociais, políticas, psicológicas, ontológicas... Numa primeira aproximação, é possível percebê-lo em seu nível alegórico. Cada uma das muitíssimas micro-histórias nele contidas, cada um dos dramas vivenciados pelos seres que giram em volta da saga familiar dos Buendía, remete à evolução de uma história maior, a história da América Latina. Uma das formas interessantes dessa pegada alegórica está na relação entre crendice, superstição e poder. Bem lido, o livro fala da força dos poderosos cimentada sobre modos de manipulação da credulidade e da crendice dos oprimidos.

Também em linhas gerais cabe apontar para a concepção binária do romance que desenha a sequência das sucessivas gerações dos Buendía, dividindo os protagonistas masculinos entre Aurelianos e José Arcadios, o que aponta para profundas oposições. Elas se estabelecem num movimento de estruturas cíclicas e fechadas, espelhando a origem bipartidária da violenta história política colombiana. Já foi suficientemente demonstrado como a greve seguida do massacre dos operários da companhia norte-americana United Fruit, em 1928, é um evidente antecedente histórico do episódio da chacina de 300 mil operários da companhia bananeira no romance. O segundo José Arcádio Buendía, já velho (Cem Anos de Solidão acompanha quatro gerações da família), lembra ter testemunhado os horrores da chacina, mas ninguém à sua volta parece disposto a escutar seu relato e, portanto, a memória do acontecido periga de se perder no túnel do esquecimento. Lembrança e esquecimento são, aliás, dois pêndulos que impulsionam contraditoriamente o fluir desta história. Nas páginas finais, os dois vértices se tornam cruciais e os personagens já não sabem se lembram ou inventam, se esquecem ou sonharam. Sobra, sim, o pergaminho com a história contada no romance...

Árvore genealógica da família Buendía
Árvore genealógica da família Buendía

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de García Márquez em Cem Anos de Solidão?

Laura Janina Hosiasson: Já disse o grande escritor mexicano Carlos Fuentes, contemporâneo de Gabriel García Márquez, que Cem Anos de Solidão é um dos livros mais divertidos escritos na América Latina. Foi um estrondo desde o início, a partir de sua primeira publicação, em 1967. Lembro bem da manhã em que eu o tive em mãos pela primeira vez, na década de setenta. Logo no primeiro parágrafo fui sendo abduzida pela trama e não consegui me levantar da cama até terminar, já bem avançada a noite. Ao longo dos anos escutei de muitos o relato de experiências de leitura parecidas com a minha. Esse fenômeno pode ter tido várias razões, mas me parece que a principal tem a ver com essa fruição que a leitura de Cem Anos de Solidão propunha desde a primeira frase (“Muitos anos depois, frente ao pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía recordaria aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”). Por aqueles anos de experimentalismos formais, como os das vanguardas e do chamado ‘nouveau roman’' francês, por exemplo, o narrador tinha sumido deixando o leitor sozinho a compor as várias linhas narrativas e recompor os quebra-cabeças espaciais e temporais. No final da década de sessenta, surgia o narrador de Cem Anos de Solidão que parecia reassumir o lugar de uma onisciência tradicional em que a batuta era regida por ele de forma certeira para entregar, num tempo pretérito e majestoso, o conteúdo da fabulosa saga dessa família mítica e ao mesmo tempo profundamente latino-americana. Embora a dinâmica temporal do livro apresente inúmeros vaivéns temporais e saltos na linha cronológica, eles se aglutinam em volta de um sentido lendário da trama que avança sempre na direção de seu final.

Nesta volta à simplicidade da forma combinada com uma crescente complexidade do argumento, residia a novidade deste livro. Ao mesmo tempo, nada nele era ingênuo e à medida em que a trama avançava, fazia confluir mito e história política do continente retirando de seu espectro ideológico qualquer redenção religiosa. Isso teve um efeito tão insólito que ao longo de toda a década de 1970 foi leitura obrigatória de todo e qualquer jovem adulto que se julgasse moderno. 

Hoje, esse efeito foi neutralizado pela banalização do procedimento e certamente o romance não produz mais o impacto que teve naqueles anos. Muitos dos best sellers das décadas seguintes retomaram o romanesco e se utilizaram de fórmulas similares, embora sem nunca alcançarem as dimensões do romance de Gabo. Dentre eles, os romances da chilena Isabel Allende, como A Casa dos Espíritos, para citar só um caso.

Serviço de Comunicação Social: Como García Márquez articula os espaços e personagens na obra?

Laura Janina Hosiasson: A estrutura familiar é, sem dúvida, um dos suportes formais de Cem Anos de Solidão. As entradas e saídas das personagens nos múltiplos episódios estão marcadas pelos laços de parentesco, sejam eles consanguíneos ou por alianças matrimoniais. A árvore genealógica é tão complicada e emaranhada que vários estudos sobre o romance a apresentam diagramada em um esquema aparte, para ajudar na compreensão. Trata-se de quatro gerações que partem do casal primordial, José Arcádio Buendía e sua prima e mulher, Úrsula. Essa matriz incestuosa está no epicentro da trama que irá concluir com o acasalamento entre o último Aureliano e sua tia, Amaranta Úrsula. Gabriel García Márquez afirmou, em certa oportunidade, que seu livro tratava justamente da questão da maldição do incesto. Lembremos que a saga se fecha com o nascimento de um menino com rabo de porco. Nas repetições dos nomes se inscreve uma ideia da história em espiral, reiterativa, que é também um dos movimentos da narrativa. Quando os netos ou bisnetos repetem os gestos e hábitos de seus antepassados, a longeva Úrsula confirma sua impressão de que o tempo está voltando ao princípio: “Isto eu já sei de cor”, diz ela. Aqui também podemos pensar no sentido mítico de toda essa engrenagem que já foi longamente discutido a respeito do livro.

Por último, cabe falar brevemente do indiscutível caráter espacial do romance. No centro está Macondo, esse axis mundi que adquire protagonismo absoluto, a ponto de qualquer pessoa, mesmo sem ter lido, saber que quando se fala em Macondo é de García Márquez que está se falando. A vila havia surgido já nos primeiros relatos de García Márquez (Isabel Vendo Chover em Macondo e A Revoada). Em Cem Anos de Solidão a narrativa imaginosa e fantasiosa acompanha a história do lugarejo através das várias transformações civilizatórias que culminam com sua desintegração final. Macondo é a síntese e o espelho do devir das urbes latino-americanas. A diminuta vila pré-histórica e idílica “onde ninguém tinha morrido ainda”, irá se transformando em burgo, em localidade conectada com o restante do mundo através da construção de estradas, em espaço de migrações e imigrações, de novidades chegadas do estrangeiro, em sociedade colonizada e explorada política e economicamente, até o dilúvio final que a faz sucumbir à força da natureza. As implicações projetivas deste andamento da história urbana resultam hoje evidentes, a ponto de a gente poder pensar nele como a formulação premonitória de uma utopia negativa, anunciando a distopia do presente.

A validade da leitura (assim como da releitura) de Cem Anos de Solidão, embora transformada pelos mais de cinquenta anos que correram desde sua primeira publicação, se mantém e ela continua sendo uma experiência de deleite e aprendizagem.

Laura Janina Hosiasson é mestre e doutora em Letras (Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana) pela FFLCH, e atualmente é professora da mesma instituição. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Hispano Americana, atuando principalmente nos seguintes campos: literatura chilena, Nacionalismo Literário do século XIX, literatura e fantástico e literatura hispano-americana contemporânea.