"Capitães da Areia", de Jorge Amado, é publicado

Considerado um clássico da literatura brasileira, a obra aborda questões de caráter social

Por
Alice Elias
Data de Publicação

"Capitães da Areia", de Jorge Amado, é publicado
Segundo Roberto Amado, a obra faz parte de "uma literatura de denúncia que deu voz a uma expressão brasileira até então ignorada pelo leitorado". (Arte: Alice Elias)

 

Em 1937, Jorge Amado publicou Capitães da Areia, obra reconhecida como um clássico da literatura brasileira. Nascido no sul da Bahia, o escritor fez parte do grupo conhecido como “autores do norte”: na contramão da literatura burguesa e eurocêntrica produzida até então, os autores do norte apresentaram uma outra realidade ao leitor, voltada às camadas populares e problemas sociais como miséria, fome e violência. “Uma literatura de denúncia que deu voz a uma expressão brasileira até então ignorada pelo leitorado”, nas palavras de Roberto Amado, sobrinho de Jorge Amado e mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Capitães da Areia é um exemplo desse novo modelo literário, marcado pela denúncia social. Jorge Amado apresenta personagens pobres e marginalizados como heróis de suas obras – no caso de Capitães da Areia, um grupo de crianças e adolescentes nas ruas de Salvador. “A atividade literária de Jorge Amado (...) revela o protagonista de uma nova voz que emerge e propõe transformações expressivas na literatura brasileira praticada até então”, afirma Amado em sua dissertação de mestrado.

Confira abaixo a análise completa de Roberto Amado sobre a obra e seu autor:
 
Capitães da Areia apresenta algumas dimensões importantes para a  literatura e a cultura brasileira em geral. O livro foi lançado em 1937, quando Jorge Amado tinha apenas 25 anos, e foi o sexto livro de sua carreira muito prodigiosa e precoce. É, ainda hoje, talvez a obra que mais resistiu ao tempo, adotada em escolas e leitura obrigatória em alguns vestibulares. Na Fuvest, por exemplo, foi adotada durante 17 anos.

A primeira dimensão que eu destacaria em Capitães da Areia é que se trata de uma obra que se insere no chamado “Romance de 30”, no meu entender o movimento literário mais importante da nossa história. Foi durante essa década de 1930 que foram revelados inúmeros escritores que, hoje, são cânones, como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e o próprio Jorge Amado. Foi um momento de florescimento da literatura brasileira, baseado, principalmente nos chamados “autores do norte”, que desenvolveram uma literatura transformadora, pela qual apresentaram um novo cenário literário ao país. Até então, a literatura se desenvolvia principalmente nos ambientes do Rio de Janeiro (capital do país) ou, um pouco menos, no de São Paulo, retratando uma burguesia eurocêntrica, com hábitos e preocupações limitados aos seus ambientes. Os autores do norte apresentaram uma nova realidade aos leitores, uma realidade feita de miséria, de fome, de exclusão, de hierarquias opressoras, de violência sexual. Uma literatura de denúncia que deu voz a uma expressão brasileira até então ignorada pelo leitorado. Revelava-se, pela literatura, um novo país, feito de seus retalhos, de uma gente sofrida, mas ao mesmo tempo impregnada de uma cultura única, singular. Mas o romance de 30 não se constituiu apenas nesse esforço de denúncia e representação simbólica da realidade. Foi, principalmente, uma proposta estética que reuniu linguagens, cenários, personagens, ambientes, situações e conflitos numa voz transformadora que lançou raízes definitivas na nossa literatura, presentes até a atualidade.

Esse “Romance de 30” não é uma expressão que ocorre gratuitamente. Está inserido no ambiente político e social que ocorreu no Brasil durante essa década, com a chamada Revolução de 30, e alguns eventos marcantes que a seguiram, como a Revolução Constitucionalista, o Levante Comunista e a Decretação do Estados Novo conduzido por Getúlio Vargas. Além de nossas fronteiras, a complexidade da geopolítica nesses anos de entre-guerras contaminava decisivamente a cultura e a literatura, produzindo autores e obras que determinaram novos caminhos estéticos e formais — e que certamente também chegaram ao Brasil e tiveram importância em nossa produção literária.

Dentro deste movimento de placas tectônicas nacionais e internacionais, Jorge Amado revela-se, desde o começo da década, como um protagonista. Não só pela quantidade de obras representativas do “Romance de 30” como também pela sua irrefreável participação na política e na cultura. Ele escreveu, durante esta década, mais de 150 artigos em revistas e cadernos literários sobre literatura e cultura, além de ser alvo de quantidade semelhante de textos publicados por críticos e outros autores sobre sua vida e obra. Era uma celebridade.

Capitães da Areia é um exemplo dessa condição notável que o escritor adquiriu na década. A obra segue os parâmetros da literatura do “Romance de 30” marcada pela denúncia social de um grupo de adolescentes e crianças abandonados, vivendo nas ruas de Salvador. As questões sociais estiveram, sim, presentes em suas obras desta década, mas nem sempre protagonizaram ou prevaleceram sobre suas temáticas. Apesar disso, predomina na crítica literária, principalmente posterior à década, a ideia de que o autor praticava uma literatura politizada e comprometida com o Partido Comunista. Essa ideia, que não corresponde à verdade, é contaminada pelo engajamento que o autor apresenta na década seguinte, a de 1940, quando, de fato, esteve a serviço de uma ideologia comunista, escrevendo e atuando com esse propósito. Na década de 1930, no entanto, Jorge Amado praticava a literatura como seu único objetivo, ainda que tenha, de maneira não tão explícita, simpatias por ideias de esquerda, assim como muitos dos escritores que surgiram nessa década.

Roberto Amado é mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela FFLCH, e atualmente é doutorando na mesma instituição. É jornalista, escritor, e professor de literatura e escrita criativa.
Para quem se interessar sobre o tema, Roberto Amado é autor do livro Jorge Amado: Meu tio, e sua dissertação de mestrado está disponível em Jorge Amado e o romance de 1930: protagonismo de uma nova voz emergente.