Nascimento de Søren Kierkegaard

Autor de obras como “Temor e Tremor”, Kierkegaard é considerado o pai do existencialismo

Por
Gabriela Ferrari Toquetti
Data de Publicação

Nascimento de Søren Kierkegaard
Segundo Felipe Sá Cavalcante Alves, “por ter refletido sobre a complexidade da vida, em vez de tentar reduzi-la, seja ao pensamento ou a uma teoria das sensações, sua filosofia permanece viva e em plena forma até os dias de hoje”. (Arte: Gabriela Ferrari Toquetti)

Em 5 de maio de 1813, nasceu o filósofo e teólogo dinamarquês Søren Kierkegaard, conhecido como o pai do existencialismo. Autor de obras como O Desespero Humano, Temor e Tremor e Enter-Eller, inaugurou, por meio do estudo da estrutura interna do ser humano e da individualidade, uma corrente de pensamento que ecoa nos dias atuais.

Por esses e outros fatores, as obras e as ideias de Kierkegaard têm implicações em diversas áreas do conhecimento para além da Filosofia – por exemplo, na Psicologia. “Ele mostrou que o sujeito, vivendo e atuando no mundo, certamente deve compreender a si mesmo, mas que, ao mesmo tempo, pensar sobre si é refletir sobre a determinação, em certo sentido a influência, que o outro tem sobre nós [...]”, afirma Felipe Sá Cavalcante Alves, doutorando em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Você poderia comentar brevemente quem foi Søren Kierkegaard, para os leitores que ainda não o conhecem?

Felipe Sá Cavalcante Alves: Kierkegaard foi e permanece uma pessoa controversa. Algumas das suas relações pessoais suscitam o interesse de muitos, das mais diferentes áreas do conhecimento, desde teólogos, filósofos e críticos literários até psicólogos e, claro — e principalmente —, do leitor não especializado que cultiva um interesse sincero pelos temas de sua obra.
Porém, o interesse pela sua vida muitas vezes ofusca o conteúdo do seu pensamento e desemboca num tipo de leitura que vê nos seus textos uma espécie de relato autobiográfico, de autoanálise. Esse tipo de leitura deseja, no fundo, responder à pergunta: quem foi Søren Kierkegaard?
Acontece que Kierkegaard era alguém que, beirando a empáfia, tinha um grau de consciência fora do comum da qualidade da fixação do seu pensamento na escrita. Ele sabia que seus leitores e os curiosos de plantão tentariam identificar sua obra com a sua pessoa, numa espécie de simbiose. Por isso, teve um cuidado excepcional em escrever, do ponto de vista da individualidade, sobre aquilo que diz respeito a todos.
Assim, ele se escondia atrás da ideia, garantindo que ninguém realmente soubesse quem ele era, pois o que realmente importa não era conhecer a opinião ou a vida do outro, e sim reconhecer a si mesmo. Identificar na frente do espelho a imagem refletida. Desse modo, na sua obra, nos seus diários, mesmo nos relatos dos seus contemporâneos, as descrições “pessoais” não revelam quem ele possa ter sido, mas apenas vestígios exteriores que levam, no máximo, perto da boca do abismo, sem nunca mostrarem o que vive lá dentro.
Dando um pouco de concretude à resposta dada, gostaria de recontar uma história que, embora possa ter acontecido, pode muito bem ser ficcional. Um dia, em uma disciplina escolar, o professor inquiriu os três melhores alunos da sala — Peter, irmão de Kierkegaard, o segundo melhor aluno e o próprio Kierkegaard, respectivamente — a respeito da Batalha de Salamina. Foi perguntado ao irmão se ele estava na batalha e, ao responder que não, recebeu como punição um tapa na cabeça. Foi repetida a mesma pergunta ao segundo melhor aluno, que respondeu positivamente, mas, na réplica do professor, que retrucou se tinha obtido permissão do pai para ir à batalha, respondeu que não, recebendo o mesmo destino do primeiro.
Quando repete a pergunta para Kierkegaard, obtém a seguinte resposta: “Sim! Estava lá em espírito, senhor professor!”. A reação do professor foi um sorriso, seguido da afirmação de que o jovem Kierkegaard seria fonte de alegria e honra para ele. Se verdade ou anedota, a pequena história nos mostra alguém que desde sempre soube observar e ouvir o que se passava à sua volta, tomando todo o cuidado possível para empregar a linguagem, seduzindo e impressionando com suas falas que prendem a atenção do leitor ou ouvinte.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita e as obras de Kierkegaard?

Felipe Sá Cavalcante Alves: As obras e a escrita de Kierkegaard são caracterizadas por uma multiplicidade de estilos. Num mesmo parágrafo, por vezes até numa mesma frase, ele mistura ou alterna entre um estilo idealista e abstrato de comunicação para outro levemente mais concreto nas suas observações psicológicas, mas que são envolvidas pela habilidade poética de apresentar os mesmos pensamentos por meio de metáforas, hipérboles, citações e vários outros recursos literários. Essa escrita plural, e às vezes vertiginosa, é o que permite uma aproximação maior com a complexidade da vida, que fala do individual e do universal ao mesmo tempo.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Filosofia? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Felipe Sá Cavalcante Alves: Inúmeras são as suas contribuições para a Filosofia. Para não deixar a resposta muito longa, gostaria de ressaltar que a preocupação que Kierkegaard teve em observar e descrever a estrutura interna do ser humano é uma das suas maiores contribuições à história do pensamento. Ele mostrou que o sujeito, vivendo e atuando no mundo, certamente deve compreender a si mesmo, mas que, ao mesmo tempo, pensar sobre si é refletir sobre a determinação, em certo sentido a influência, que o outro tem sobre nós, seja um conhecido, um amigo, a namorada ou esposa, alguém que estimamos, ou a divindade. Pode parecer contraditório — e talvez seja —, porém, a exigência de conhecer quem somos passa pela reflexão que revela gradualmente o que temos e somos dentro de nós e, quase que simultaneamente, pela compreensão do que seja aquele ou aquela com quem conversamos.
Segundo minha análise, seu pensamento ressoa muito nos dias de hoje. As ideias de Kierkegaard são postas em diálogo, por exemplo, com a filosofia muçulmana, são também utilizadas para se pensar movimentos culturais e contraculturais e teorias literárias. Pode ser também utilizado para se refletir sobre o significado da imagem na representação de si e na sua transposição, por exemplo, ao cinema, na reflexão dos limites e papel da psicologia, do que é o cristianismo, da definição e comportamento da linguagem e muito mais. Em suma, por ter refletido sobre a complexidade da vida, em vez de tentar reduzi-la, seja ao pensamento ou a uma teoria das sensações, sua filosofia permanece viva e em plena forma até os dias de hoje.
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Felipe Sá Cavalcante Alves é mestre e doutorando em Filosofia pela FFLCH. Atualmente, pesquisa a obra de Kierkegaard, com foco principal na linguagem, ironia e hermenêutica.

Nota de agradecimento de Felipe Sá Cavalcante Alves: "Agradeço à FAPESP pelo financiamento da minha pesquisa de doutorado, sem o qual o desenvolvimento do presente texto seria impossível. Número do processo FAPESP: 2021/07504-0."