Nascimento de José Lins do Rego

As obras de José Lins carregam traços de sua infância e de suas raízes

Por
Gabriela Ferrari Toquetti
Data de Publicação

“Pouco lido atualmente, José Lins do Rego é um autor que merece ser redescoberto, seja por sua importância histórica, seja pelo que continua a nos dizer sobre o Brasil e sobre nós mesmos”, opina Davi Lopes Villaça. [Arte: Gabriela Ferrari Toquetti]

Em 3 de junho de 1901, nasceu o escritor paraibano José Lins do Rego, conhecido por ser um verdadeiro contador de histórias, como descrito pelo crítico Otto Maria Carpeaux. No início de sua carreira como autor, utilizou suas memórias de infância no engenho de açúcar de seu avô para retratar o ciclo da cana e a decadência dos engenhos nordestinos. Em uma mistura de realidade e ficção, suas primeiras obras são, essencialmente, dramas de memória. Seus cinco primeiros romances foram agrupados sob o nome de Ciclo da Cana de Açúcar. Mais tarde, sua escrita passou a explorar principalmente um lado ficcional em detrimento das memórias, dando espaço a um olhar mais objetivo, mas sem abandonar sua espontaneidade.

As contribuições de José Lins para a Literatura brasileira são inúmeras. Na linguagem, seu estilo é marcado pela oralidade e se aproxima do ritmo da fala. Com frases curtas e um linguajar espontâneo, o autor criou, em seus romances, uma atmosfera que muito se assemelha a uma contação de histórias, em que memória e invenção se mesclam. Assim, rompeu com convenções da linguagem formal e se consagrou como regionalista.

Além disso, as obras de José Lins são fundamentais na dimensão sócio-histórica, sobretudo porque pintam um retrato dos engenhos de açúcar. A princípio, o tom nostálgico de sua narração pode se confundir com saudosismo ou até mesmo passar a impressão de que o escritor idealiza excessivamente o trabalho nos engenhos. Em uma leitura mais atenta, porém, percebemos que existe na escrita de José Lins um conflito com a própria memória e um olhar voltado às contradições daquele mundo, ainda que o autor não tivesse uma postura propriamente crítica.

“José Lins é nostálgico sem ser propriamente saudosista, isto é, sem incensar o passado. O romancista é o primeiro a reconhecer que Menino de Engenho é narrado da perspectiva da criança, e que esse ponto de vista, expressão de uma verdade íntima, não traduz a experiência pessoal dos seres que habitavam à sua volta. Ele não oculta os problemas do passado, embora também não os coloque em evidência: releva-os, como quem perdoa os defeitos de um ente amado há muito falecido. Sua obra continua valendo, desse modo, como importante documento para a compreensão da realidade retratada, inclusive no que diz respeito às suas estruturas de poder e contradições sociais”, explica Davi Lopes Villaça, mestre em Literatura Brasileira pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Você poderia comentar brevemente sobre quem foi José Lins do Rego, para os leitores que ainda não o conhecem?

Davi Lopes Villaça: Paraibano nascido na cidade do Pilar, em 1901, José Lins do Rego escreveu memórias, crônicas  e romances. Passou a infância no engenho de açúcar de seu avô, e das recordações desse período obteve o material para sua primeira obra, que é também uma das mais importantes: o romance memorialista Menino de Engenho. Entrou para a história literária como o criador do Ciclo da Cana de Açúcar, nome que ele mesmo deu ao conjunto dos seus cinco primeiros romances, que narram a decadência dos engenhos de açúcar no Nordeste, que haviam dominado a região desde o início da colonização até as primeiras décadas do século XX, quando foram substituídos pelas usinas, o que pôs fim a toda uma ordem social que se estruturava em torno desse antigo modo de produção. Abordando um capítulo fundamental da formação da sociedade brasileira, esses romances oferecem um retrato lírico e melancólico de um mundo arcaico que se desfaz com o avanço da modernização. É o olhar para um Brasil que se perde na realidade na medida mesma em que se tenta enquadrá-lo na ficção. Por isso o drama fundamental dessas narrativas é também um drama da memória, que evoca o significado de lembrar e esquecer, ou de lembrar para esquecer. Esse drama continua a ser desenvolvido em sua obra tardia. O autor escreveu ao todo doze romances, e embora apenas aqueles do Ciclo (entre os quais a crítica viria a incluir sua obra-prima, Fogo Morto) tratem diretamente do mundo do engenho, todos contêm heróis e narradores mal ajustados entre um tempo e outro, buscando de algum modo recuperar o seu passado sem, com isso, perderem-se para o presente. 

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam sua escrita?

Davi Lopes Villaça: Quando se fala do estilo de José Lins do Rego, “espontâneo” e “intuitivo” são palavras que frequentemente vêm à tona. Essas impressões são corroboradas pela rapidez com que o autor escrevia, no que pareciam ser momentos de grande inspiração: publicou um romance por ano entre 1932 e 1939. Sua prosa se distingue pelos períodos curtos e pela linguagem simples e fluida, próxima da sintaxe e do ritmo da fala. Em O Brasileiríssimo José Lins do Rego, o crítico Otto Maria Carpeaux definiu o romancista como um conteur nato, um dos últimos verdadeiros contadores de histórias profissionais – uma encarnação tardia, poderíamos dizer, daquele arquetípico “narrador” de que nos fala Walter Benjamin em seu célebre ensaio. A leitura de seus romances tem algo da escuta de uma história que se conta na medida em que dela se recorda. Nos primeiros trabalhos, memória e invenção se combinam harmoniosamente. Em verdade, já não se distinguem. Menino de Engenho foi primeiro pensado como livro de memórias, mas a verve do romancista falou mais alto: o desejo de recordar se aliou ao de criar e deu origem a uma forma singular de narrativa. Mas a escrita do autor também se modificou com o passar do tempo. Como observou Antonio Candido em Um Romancista da Decadência, sua trajetória pode ser descrita como um longo processo de amadurecimento artístico, em que o memorialismo intimista da fase inicial vai aos poucos cedendo espaço  a um olhar mais objetivo e analítico para as diferentes realidades retratadas, e a espontaneidade a uma maior elaboração da forma e do enredo. A partir de O Moleque Ricardo (o quarto integrante do Ciclo) os romances claramente deixam de ser “de memórias”, passando a explorar cada vez mais o veio ficcional do escritor. Entra em cena o narrador em terceira pessoa, com seu panorama mais amplo e distanciado do mundo e sua possibilidade de transitar entre as perspectivas de diversas personagens. Esse processo de sofisticação formal atinge o auge em Fogo Morto, narrativa dividida em três partes, voltadas para a história e o ponto de vista de três heróis psicológica e socialmente distintos, cada um expressando aspectos diferentes do drama da decadência e da memória que perpassa toda a obra do autor.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Literatura? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Davi Lopes Villaça: Pouco lido atualmente, José Lins do Rego é um autor que merece ser redescoberto, seja por sua importância histórica, seja pelo que continua a nos dizer sobre o Brasil e sobre nós mesmos. Como outros escritores de sua geração, aproximou a linguagem literária da linguagem falada e buscou contar a história de sua região por seus próprios olhos e pelos daqueles que fizeram parte dela. Contribuiu assim para a formulação de uma nova ideia de romance nacional, mais próxima da linguagem popular e da realidade social, que continua a inspirar os autores de atualidade. No que diz respeito à sua dimensão histórica e sociológica, o autor foi o principal pintor do mundo que orbitava em torno do trabalho nos engenhos de açúcar e da autoridade dos seus senhores. Teve, portanto, o papel de revelar aos leitores brasileiros um capítulo fundamental de sua própria história – essa história que entre nós é frequentemente construída sobre o apagamento do passado. É verdade que o olhar do autor para a realidade do engenho se mostrou muitas vezes idealizante. Em suas primeiras obras o cenário de sua infância passa a impressão de uma ordem harmônica e perfeita. Mas, como ressaltou Luís Bueno em Uma História do Romance de 30, perfeita na medida mesma em que perdida, encerrada. José Lins é nostálgico sem ser propriamente saudosista, isto é, sem incensar o passado. O romancista é o primeiro a reconhecer que Menino de Engenho é narrado da perspectiva da criança, e que esse ponto de vista, expressão de uma verdade íntima, não traduz a experiência pessoal dos seres que habitavam à sua volta. Ele não oculta os problemas do passado, embora também não os coloque em evidência: releva-os, como quem perdoa os defeitos de um ente amado há muito falecido. Sua obra continua valendo, desse modo, como importante documento para a compreensão da realidade retratada, inclusive no que diz respeito às suas estruturas de poder e contradições sociais.

O conhecimento da obra do autor na sua totalidade nos permite melhor compreender quão ambígua era sua relação com a ideia do passado. Os romances exteriores ao Ciclo da Cana de Açúcar, que representam metade de sua obra, foram muitas vezes ignorados pela crítica, e são poucos hoje os que se aventuram a lê-los, o que certamente não faz juz a seu alcance. O prestígio que José Lins originalmente adquiriu como autor regionalista acabou também por ofuscar alguns aspectos importantes de sua obra, sobretudo no que diz respeito ao drama psicológico que está sempre presente. O que no autor foi inicialmente notado como simples nostalgia acabou se revelando uma relação altamente problemática e conflitiva com a própria memória. Seus romances, tanto os do Ciclo quanto os de fora dele, se desenvolvem a partir de um mesmo motivo:  o de personagens em conflito com suas origens e com a história que os precede. Seus heróis trazem consigo as marcas de um tempo morto que ameaça paralisar o seu presente. Se alguns descobrem que já não podem viver para o passado, outros se sentem incapazes de desvencilhar-se dele. E há também aqueles para os quais ambas essas impossibilidades parecem coexistir: o passado é um tempo a que não podem retornar, mas do qual tampouco podem escapar. Exemplo disso é o romance Pedra Bonita, a fábula de um herói praticamente sem família e sem raízes, mas que descobre, por trás desse desenraizamento, a existência de uma antiga história da qual não participou, mas que mesmo assim parece selar o seu destino, não importa o que faça ou aonde vã. É somente na medida em que o herói recupera essa história e se responsabiliza por ela que se vê capaz de assumir uma posição pessoal no seu presente. Os romances do autor dialogam, assim, com um país que precisa ainda elaborar a sua história, que jamais soube o que fazer com o próprio passado. Se tenta esquecê-lo, acaba, sem saber, subjugado por ele. Esse é também o drama fundamental das personagens de José Lins.

Davi Lopes Villaça é mestre em Literatura Brasileira pela FFLCH da USP.