Nascimento de Paulina Chiziane

Autora de obras como "Balada de Amor ao Vento", Paulina é a escritora mais reconhecida de Moçambique

Por
Gabriela Ferrari Toquetti
Data de Publicação

“O discurso literário da autora mais reconhecida dentro e fora de Moçambique pode contribuir para uma compreensão do presente com aprendizados do passado”, afirma Stela Saes. [Arte: Gabriela Ferrari Toquetti]

Em 4 de junho de 1955, nasceu em Moçambique a escritora Paulina Chiziane. Primeira mulher africana a ganhar um Prêmio Camões - considerado o prêmio de maior importância na literatura de língua portuguesa -, ela apresenta em suas obras um panorama cultural, histórico e político de seu país, com foco nas mulheres moçambicanas. Questões como a experiência feminina, o racismo e o colonialismo são pontos centrais em seus textos.

A história de Moçambique se entrelaça com a escrita e com a vida de Paulina, que cresceu no regime colonial português e lutou pela independência com a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). A autora começa a publicar no contexto pós-independência e, através de protagonistas negras, dá voz a movimentos que buscam uma sociedade mais igualitária. Suas personagens refletem a diversidade de Moçambique e, ao mesmo tempo, retratam as mulheres ao redor do mundo.

No Brasil, seus impactos são múltiplos. Niketche: uma História de Poligamia, um de seus romances mais reconhecidos, integra a lista de leituras obrigatórias do vestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Além disso, o interesse pelas obras de Paulina vem crescendo entre o público brasileiro, que recentemente recebeu uma visita da escritora.

A importância de sua literatura, portanto, ecoa em diversas áreas e sua escrita serve como referência para outras autoras célebres, como a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. “Analisar a ficção de Paulina Chiziane é conhecer as nuances das trajetórias das mulheres moçambicanas em seus determinados tempos históricos. Considerada a maior romancista do país, apresenta um projeto literário ligado às questões culturais e históricas e às condições das mulheres em Moçambique. Inclusive, a própria autora já foi questionada diversas vezes sobre o caráter feminista de sua obra, mas, sem colocar sob essa definição, ela prefere afirmar que sua literatura é especialmente dedicada às mulheres e suas lutas”, explica Stela Saes, doutora em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Você poderia comentar brevemente sobre quem é Paulina Chiziane, para os leitores que ainda não a conhecem?

Stela Saes: A escritora moçambicana Paulina Chiziane nasce em 1955 na província de Gaza, que fica ao sul do país, uma região tradicionalmente agrária e que foi dominada pelo reinado de Gungunhana (último rei a resistir à ocupação colonial portuguesa), quando este se instalou em Manjacaze, cidade natal de Paulina, algum tempo depois.

De origem tchope (ou chope), ela cresce durante o regime colonial português no território moçambicano e, desde muito nova, sempre ouviu relatos de seus familiares sobre a ocupação estrangeira e a formação da luta armada pela independência. Desse modo, foi formada pela tradição de contar e ouvir histórias e relatos orais, forma narrativa que está muito presente na construção de suas obras. Era filha de um pai alfaiate e uma mãe camponesa e ambos eram contra o regime dos assimilados (forma de alienação que tinha como intuito hierarquizar as relações sociais da colônia). Por isso, mesmo tendo sido educada em escolas católicas e para brancos, onde aprendeu o português, Paulina morou em bairros suburbanos para negros não assimilados.

Mais tarde, chegou a cursar, por um tempo, Linguística na Universidade Eduardo Mondlane na capital Maputo. A escritora também foi militante pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) durante a guerra de independência de seu país (1964-1975). Após esse período, se dedicou a inúmeros projetos pessoais e políticos, e foi nesse percurso que se iniciou sua escrita literária, publicando seu primeiro romance em 1990. Sua trajetória, portanto, está intimamente ligada com aspectos históricos relevantes de Moçambique e sua luta como escritora dialoga com os conflitos do país.

Além de já ter ganhado o prêmio José Craveirinha pela publicação de Nikecthe: uma História de Poligamia em 2002, recentemente, em 2005, foi candidata ao prêmio Nobel da Paz por seus trabalhos em prol da justiça e da igualdade em Moçambique. Em 2021, recebeu ainda o Prêmio Camões, quando fez um discurso pedindo para que a língua portuguesa fosse, enfim, descolonizada. Hoje, podemos ver que sua obra, composta de romances, contos, poemas e textos de não ficção, é reconhecida e traduzida em diversos países, tendo o Brasil como um grande público leitor de seus textos.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Paulina?

Stela Saes: Analisar a ficção de Paulina Chiziane é conhecer as nuances das trajetórias das mulheres moçambicanas em seus determinados tempos históricos. Considerada a maior romancista do país, apresenta um projeto literário ligado às questões culturais e históricas e às condições das mulheres em Moçambique. Inclusive, a própria autora já foi questionada diversas vezes sobre o caráter feminista de sua obra, mas, sem colocar sob essa definição, ela prefere afirmar que sua literatura é especialmente dedicada às mulheres e suas lutas.

De fato, a maior parte das personagens criadas pela autora é inspirada em moçambicanas reais, que buscam não apenas o entendimento de suas questões, mas sobretudo desafiam as opressões do sistema capitalista e patriarcal em diferentes regiões e épocas de Moçambique. Vale lembrar que é durante o contexto pós-independência de seu país que se iniciam e consolidam-se as publicações literárias de Paulina, revelando um projeto socialista forjado durante a revolução que não apenas foi enfraquecido e fracassou, mas se abriu para o capitalismo neoliberal e colocou as mulheres, mais uma vez, em situação de subalternidade, vulnerabilidade e esquecimento.

Suas personagens, como Rami, Delfina, Maria das Dores, Emelina e Sarnau, são protagonistas negras construídas com grande fluxo de consciência e representam uma grande variedade cultural de Moçambique. No entanto, suas experiências não deixam de ecoar nas condições das mulheres ao redor de todo o mundo. É muito difícil não se identificar com tais personagens e questões apresentadas em suas obras. 

Podemos dizer, portanto, que o projeto literário de Paulina, iniciado com Balada de Amor ao Vento em 1990, apresenta o protagonismo e o movimento de mulheres ao mesmo tempo em que os diferentes enredos discutem a guerra, as tradições e os desafios do país perante a nova questão mundial. O trabalho como escritora é, em si, uma forma de dar voz às mulheres no sentido de vislumbrar um universo menos desigual.

Serviço de Comunicação Social: Quais são suas principais contribuições para a Literatura e qual é a importância de suas obras no contexto atual?

Stela Saes: Apenas como um exemplo sobre a amplitude e necessidade das obras de Paulina para o contexto atual, podemos citar uma das personagens mais reconhecidas de Paulina: Rami, de Niketche: uma História de Poligamia. Por intermédio dela, a escritora ousa retratar a questão da poligamia para as sociedades ao sul de Moçambique. A perspectiva rompe com muitos paradigmas e causa grande polêmica não só internamente, em Moçambique, mas para outras fronteiras, como uma forma de quebrar paradigmas e preconceitos sobre as práticas de poligamia e visões de matrimônios ao redor do mundo. Por esse e outros motivos, o livro é, ainda durante este ano, adotado como leitura obrigatória do vestibular da Universidade de Campinas (Unicamp).

A experiência da mulher negra é, com certeza, um elemento essencial em suas obras e uma de suas maiores contribuições para a literatura. Paulina faz questão de visibilizar as lutas e afastar as objetificações e estigmas que sempre invisibilizaram e apagaram as mulheres negras de suas próprias histórias. A escritora é tanto uma referência como uma ponte para outras tantas escritoras negras do continente africano na contemporaneidade, como Chimamanda Ngozi Adichie, Sefi Atta, Futhi Ntshingila, Scholastique Mukasonga e Yaa Gyasi.

Além disso, outros temas extremamente relevantes perpassam a obra da escritora, como o racismo, a guerra, o colonialismo e o patriarcado, que chegam ao leitor em uma mistura de poesia, narrativa e denúncia. Muitos de seus textos podem ser facilmente encontrados em livrarias no Brasil e a escritora esteve recentemente no país em encontros e palestras das mais diversas, recebendo sempre um grande público para ouvi-la, como grande contadora de histórias que é. 

Dessa forma, o discurso literário da autora mais reconhecida dentro e fora de Moçambique pode contribuir para uma compreensão do presente com aprendizados do passado. A autora evidencia de que forma as histórias das mulheres são essenciais para que seus romances possam contribuir na identificação da contestação do campo ideológico sistemático que incide sobre as mulheres do continente africano e ao redor do mundo.

Stela Saes é mestre e doutora em Letras na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela FFLCH. Realizou intercâmbio universitário na Universidade Eduardo Mondlane em Maputo, Moçambique. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Estudos Comparados de Literaturas em Língua Portuguesa, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura, colonialismo, materialismo histórico e literatura comparada.