A prática do skate na FFLCH

Olimpíada de Tóquio-2020: Conheça pesquisas realizadas sobre a sensação do Brasil nos jogos

Por
Eliete Viana
Data de Publicação

 

Rayssa Leal competindo
A skatista Rayssa Leal competindo na Olimpíada de Tóquio-2020, na qual conquistou a medalha de prata - Foto: Julio Detefon - CBSk


​​​​​​​​​​​​​​Na Olimpíada de Tóquio-2020 cinco novos novos esportes passaram a integrar os jogos: beisebol, escalada esportiva, karatê, skate e surfe. 

O skate e o surfe empolgaram a torcida brasileira nesta edição das Olimpíadas, pelas manobras radicais e também por serem esportes que trouxeram medalhas para o Brasil: três de prata no skate e uma de ouro no surfe.

Skate na universidade

​​​​​​​Na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP há duas pesquisas feitas no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social por Giancarlo Marques Carraro Machado, durante o mestrado e o doutorado, nas quais ele analisou vários aspectos relacionados à prática do skate de rua na cidade de São Paulo, abordando os espaços urbanos, a sociabilidade urbana, redes de relações, a citadinidade (entendida como uma maneira astuciosa, transgressiva e tática de se fazer a cidade), a antropologia urbana e a antropologia do esporte.

Na dissertação de mestrado De "carrinho" pela cidade: a prática do street skate em São Paulo, defendida em 2011, com orientação do professor Heitor Frúgoli Junior, do Departamento de Antropologia, é abordada a modalidade street skate na cidade de São Paulo - a mesma em que Kelvin Hoefler e Rayssa Leal ganharam medalhas. 

Por meio da etnografia, o trabalho evidenciou não só aspectos em torno do exercício de uma prática esportiva, mas, sobretudo, as implicações em virtude dos usos e apropriações dos espaços urbanos por parte dos citadinos. A ideia foi mostrar como a cidade pode ser lida e ordenada simbolicamente por meio de um olhar skatista.

"A partir do trabalho de campo realizado pretendeu-se descrever, analisar e acompanhar até onde fosse possível o que perpassou as redes criadas através de um evento chamado Circuito Sampa Skate. Nesse sentido, ao pesquisar os diversos lugares skatáveis da cidade e seus respectivos picos, a referência etnográfica não é um único espaço ou aglutinações de pessoas, mas sim, uma multiplicidade de espaços e de atores que se encontram articulados por meio de redes mais amplas de relações. Desse modo, tem-se a chance de relacionar os distintos recortes inseridos no universo do street skate em São Paulo, sendo esse não definido a priori, mas construído a partir de discursos, práticas e representações heterogêneas, e em meio a uma dinâmica relacional que se manifesta situacionalmente", escreveu no resumo do trabalho.
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De carrinho pela cidade: a prática do skate em São Paulo (Editora Intermeios/FAPESP)
A dissertação de mestrado deu origem ao livro De carrinho pela cidade: a prática do skate em São Paulo (Editora Intermeios/Fapesp)

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A pesquisa sobre o skate continuou em sua tese de doutorado intitulada A cidade dos picos: a prática do skate e os desafios da citadinidade, de 2017, com orientação do professor José Guilherme Cantor Magnani, também de Antropologia. 

Na tese, a realização do skate de rua constitui-se como foco de uma investigação que o trata não apenas como uma prática multifacetada que transcorre no urbano, mas, igualmente, como sendo uma própria prática do urbano transposta por resistências, transgressões, conflitos e negociações, enfim, por posicionamentos díspares frente às governanças que são feitas dos espaços da cidade.
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​​​​​​​Desta forma objetiva-se analisar como os skatistas embaralham certos ordenamentos urbanos e põem em suspensão embelezamentos estratégicos de uma cidade gerenciada como mercadoria e voltada para práticas de cidadania que são englobadas sobretudo por lógicas de consumo. A São Paulo do skate, portanto, apresenta-se não como uma realidade definida a priori, como algo acabado e definido, mas em permanente construção em razão de seu caráter relacional e situacional.
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Giancarlo Marques Carraro Machado
Giancarlo Marques Carraro Machado - Foto: Arquivo Pessoa

"Identifiquei que muitas das estratégias institucionais que engendram certos sentidos do skate conforme suas próprias rubricas (como a criação de frentes parlamentares em sua defesa, o incentivo ao seu lado esportivizado etc.) nada mais são do que uma regulação dos usos dos espaços urbanos por meio de uma constante tentativa de esportivização da citadinidade. Todavia, em tempos recentes, vêm ocorrendo situações inéditas que revelam que a citadinidade que permeia a prática do skate de rua, embora muito combatida, também tem sido alvo de determinadas pretensões econômicas e político-urbanísticas. Nessas circunstâncias, ao mesmo tempo em que os skatistas se apropriam da cidade, o mercado bem como as governanças urbanas vêm tentando se apropriar de suas experiências urbanas de acordo com variados interesses. Por fim, para além das contradições, foi possível concluir que ao ampliarem as possibilidades de usos da cidade, os skatistas potencializam a produção de uma cidade vivida, sentida e em processo, tornando-a mais porosa ao se esquivarem de eventuais pragmatismos e dispositivos gestionários que tentam condicionar a vida urbana", comenta Machado sobre as considerações obtidas na sua tese.​​​​​​​

Paixão antiga
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Segundo Machado, o skate está presente em várias cidades do Brasil e não só nos grandes centros urbanos como o imaginário popular pode pensar. Isso se deve à propagação do skate pelas redes sociais e pela construção de mais pistas. 
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Machado andava de skate na adolescência como passatempo e diversão - o que continua fazendo até hoje -, então para ele não foi tão difícil realizar a manobra de usar a paixão como tema de estudo. Na graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), ele começou a realizar pesquisas relacionadas ao skate durante a iniciação científica e que foi seu Trabalho de Conclusão de Curso, em 2008: Todos juntos e misturados: um estudo sobre a formação das redes de relações entre skatistas em campeonatos de skate

"A minha pretensão com as pesquisas relacionadas ao skate era compreender a relação do skate com os espaços urbanos. Mais que compreender as questões intrínsecas ao lado esportivo do skate, minha intenção em ambas as pesquisas era evidenciar qual é a São Paulo feita a partir das ações e experiências dos skatistas. O skate aparece muito mais como prática espacial do que corporal. E, justamente, este fato permite compreender a cidade, porque o skate ultrapassa o esporte. Ele é um esporte, mas não somente, porque é um estilo de vida e até um espaço social, pois existem ongs [organizações não governamentais que utilizam o skate como forma de lidar com a vulnerabilidade das pessoas, por exemplo", explica o pesquisador. 

Quando ele começou a pesquisar o assunto, ele era algo pouco explorado na antropologia e não haviam muitas pesquisas sobre skate na área. Mas, ele ressalta que recebeu acolhimento dos seus orientadores por conta desta relação do skate com questões mais amplas, como a questão urbana e a esportiva. 

Para ele, o acolhimento foi maior ainda na USP, porque começou a fazer parte de dois núcleos: O Núcleo de Antropologia Urbana (NAU) e o Grupo de Estudos de Antropologia da Cidade (GEAC), ambos ligados ao Departamento de Antropologia da FFLCH, e pode estudar o skate como fenômeno esportivo e suas influências na antropologia. 

Atualmente, Machado é professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social da Unimontes. Possui experiência na área da Antropologia, com ênfase em Antropologia Urbana, Antropologia da Juventude e Antropologia dos Esportes.

​​​​​​​Além do livro fruto de sua dissertação de mestrado, é organizador da coletânea Entre Jogos e Copas: reflexões de uma década esportiva (Editora Intermeios/Fapesp) e coordenador da coleção Entre Jogos da Editora. Ele continua atuando como pesquisador dos núcleos citados acima e também do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (Ludens).
 

skatistas na Praça Roosevelt
Skatistas na Praça Roosevelt - Foto: Fernando Pereira / SECOM-Prefeitura de São Paulo

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Ampliando o olhar 

Recentemente, ele terminou seu projeto de pós-doutorado no Departamento de Antropologia da Faculdade, no qual ampliou o foco de suas pesquisas, mas sem deixar de estudar temas relacionados ao skate. Em Mais vida no Centro? Impactos citadinos da reurbanização do Vale do Anhangabaú, o pesquisador estuda as contradições da reforma deste espaço no centro da cidade de São Paulo, que é bastante frequentado por skatistas.

Ao ser perguntado se a visibilidade que o skate ganhou com a estreia e a conquista de medalhas para o Brasil na Olimpíada de Tóquio-2020 mudará a visão que as pessoas têm sobre o skate em geral, o pesquisador acredita que a vertente do esporte pode ajudar que ele seja mais praticado, mas a a vertente citadina, que se apropria das ruas como espaço para a prática do skate e que isso provoca um monte de conflitos, fará com que os skatistas continuem sendo olhados como transgressores. 

Machado lembrou que tratou sobre um destes conflitos em sua tese de doutorado, na Parte I – Dinâmicas da citadinidade, Capítulo  1.  Manobras  na  Praça  Roosevelt:  embates  em  torno  da  prática  do skate, no qual ele dedica cerca de 50 páginas falando a respeito dessa praça, localizada no centro da capital paulista: a parte arquitetônica, às "tretas", como ele mesmo denomina, até às apropriações citadinas e usos inesperados do lugar.