Publicação de “Eneida” de Virgílio

Obra é uma das bases da literatura latina

Por
Larissa Gomes
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"Bem conhecida, a Eneida é uma chave de leitura fundamental não só de poemas latinos, mas também de versos em italiano, inglês, português, etc.", explica Alexandre Hasegawa. [Montagem: Larissa Gomes e Renan Braz]

A Eneida de Virgílio, uma das obras mais relevantes da literatura latina, é um poema épico, dividido em doze livros, compostos em versos hexamétricos. Seu enredo conta a história do troiano Eneias, filho de Anquises e Vênus, e seu papel nas origens de Roma.

Apesar de muito antiga, a Eneida é relembrada até hoje por poetas contemporâneos. Pode-se dizer que quem não conhece a obra desconhece uma das bases essenciais da literatura. Ela ainda é estudada porque, além de ser peça fundamental de leitura para poemas latinos, também é relevante para versos em outras línguas como o inglês, português e italiano, conforme explica Alexandre Pinheiro Hasegawa, professor de Língua e Literatura Latina da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências humanas da USP:

Confira a entrevista completa com o professor:

Serviço de Comunicação Social: Poderia nos dizer qual o tema central da obra?

Alexandre Pinheiro Hasegawa: A Eneida de Virgílio (70 a.C. – 19 a.C.) é um poema épico, dividido em doze livros, composto em versos hexamétricos, que narra a história do troiano Eneias, filho de Anquises e Vênus. No proêmio da obra (1.1-2), o poeta diz que canta “as armas e o varão, que, primeiro, das praias de Troia chegou à Itália ...” (arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris / Italiam [...]). Narra-se, então, a viagem de Eneias de Troia, depois de sua queda, até chegar ao Lácio, onde luta (“as armas”) contra os povos itálicos, liderados por Turno, rei dos rútulos, a quem tinha sido prometida em casamento Lavínia, filha do rei Latino. O herói troiano, vitorioso, casa-se com Lavínia, tornando-se o progenitor do povo romano.

Neste sentido, a Eneida é um poema de fundação, que narra as origens de Roma, já que Rômulo e Remo são descendentes de Eneias, mencionados no livro 8, na descrição profética do escudo do herói troiano. Nesta linhagem, será inserido Otávio Augusto (63 a.C. – 14 d.C.), mencionado ao longo do poema, contribuindo assim para a construção da imagem divina do político romano.

Grosso modo, a obra é uma imitação das epopeias de Homero, a Ilíada e a Odisseia: nos seis primeiros livros (1-6), há sobretudo imitação da Odisseia, pois narra-se a viagem de Eneias de Troia à Itália; nos seis últimos (7-12), há sobretudo imitação da Ilíada, pois narra-se a batalha do troiano contra os povos itálicos. No entanto, Virgílio não rivaliza apenas com Homero, pois tem ainda as Argonáuticas de Apolônio de Rodes (séc. III a.C.) como importante modelo, principalmente para a composição do livro 4, em que se narra a célebre paixão de Dido, rainha de Cartago, por Eneias, modelada na paixão de Medeia por Jasão. Além das obras gregas mencionadas, Virgílio imita autores romanos, como Quinto Ênio (239 a.C. – 169 a.C.), autor dos Anais, poema épico que nos chegou muito incompleto, e Cneu Névio (circa 275 a.C. – 201 a.C.), autor da Guerra púnica, epopeia de que nos restam poucos fragmentos.

Serviço de Comunicação Social:  Em sua opinião, por conta da língua latina, a Eneida se aproxima mais da civilização ocidental comparada com as epopeias homéricas, como a Ilíada e a Odisseia

Alexandre Pinheiro Hasegawa: Não sei se entendi bem a pergunta. A ‘civilização ocidental’ deriva desta tradição grega e latina. Práticas políticas e poéticas da época de Augusto são derivadas do período helenístico. Aliás, quando disse que Virgílio imita Homero, deveria ter acrescentado que se trata de um Homero editado pelos filólogos de Alexandria (séc. III a.C.). Seja como for, eu diria que para nós a Eneida é, em certo sentido, um poema mais difícil do que a Ilíada e a Odisseia, porque não temos poemas antes de Homero. Assim, não há necessidade de conhecer alguma obra anterior para entender as epopeias homéricas. No entanto, para compreender o que Virgílio faz na Eneida é preciso ter em mente não só a Ilíada e a Odisseia, mas também as Argonáuticas, as tragédias gregas, Platão, Catulo, Lucrécio, etc. Como não há poemas antes de Homero – o que torna também difícil a compreensão de Ilíada e Odisseia –, considerado assim o início de tudo, podemos adotar a prática helenística e ler Homero com Homero. Para a Eneida, porém, é importante conhecer bem toda a tradição grega e latina, que, por assim dizer, a produz. Obviamente, algumas das dificuldades para a compreensão da Eneida residem no fato de também não termos completas as fontes de Virgílio, como os Anais de Ênio e a Guerra púnica de Névio, por exemplo, poemas já mencionados.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram as principais contribuições do livro para a literatura?

Alexandre Pinheiro Hasegawa: Não é uma pergunta muito simples para responder em poucas linhas. Antes mesmo de sua publicação, a Eneida é celebrada por poetas contemporâneos. Para citar apenas um autor, o elegíaco Propércio, que fazia parte do mesmo círculo de Virgílio, diz (2.34.65-66), depois de ter escutado uma parte da obra: “rendei-vos, escritores romanos, rendei-vos, gregos! / nasce não sei quê maior que a Ilíada” (cedite Romani scriptores, cedite Grai! / nescio quid maius nascitur Iliade). Ovídio, poeta também augustano, mas mais jovem do que Virgílio, diz na conclusão do seu livro Amores (1.15.25-26): “as armas de Eneias serão lidas / enquanto Roma for a cabeça do mundo conquistado” (... Aeneiaque arma legentur, / Roma triumphati dum caput orbis erit). Não faltam imitações da Eneida nas Metamorfoses do próprio Ovídio. Um pouco depois, Estácio (circa 45 d.C. – circa 96 d.C.), importante poeta da dinastia flaviana, na conclusão da sua epopeia Tebaida (12.816-17), poema de doze livros em que ele continuamente imita a Eneida, diz, em apóstrofe à própria obra: “nem rivalizes tu com a divina Eneida, mas segue-a de longe e venera sempre seus passos” (... nec tu diuinam Aeneida tempta, / sed longe sequere et uestigia semper adora). Assim, a epopeia virgiliana foi modelar para os autores latinos, mesmo contemporâneos.

Deixando de lado os poetas cristãos, como Prudêncio (348 d.C. – circa 413 d.C.), e toda a poesia em latim, passo a Dante, que, em célebre passo da Comédia (Inf. 1.85-87), faz grande elogio ao poeta da Eneida: tu se’ lo mio maestro e ’l mio autore, / tu se’ solo colui da cu’ io tolsi / lo bello stilo che m’ha fatto onore. Em língua portuguesa, não posso deixar de mencionar Os Lusíadas de Camões, que já nas primeiras palavras de sua epopeia (1.1.1-2) segue de perto Virgílio: “as armas e os barões assinalados / que da Ocidental praia lusitana”. Não só as palavras iniciais são as da Eneida (arma uirumque), como o poeta segue a construção sintática, com a oração relativa (“que” / qui), etc. O Uraguai, poema épico de Basílio da Gama, tem como epígrafe dois versos da Eneida (8.241-242). Virgílio deixou marcas mesmo em poetas mais modernos, como Fernando Pessoa, que criptografa parte de um verso da Eneida (6.727: mens agitat molem ...: “a mente move a massa”) no título de sua obra Mensagem, como revelam anotações encontradas do autor português em que ele sublinha as letras do verso virgiliano: MENS AGITAT MOLEM. Pode-se dizer, com a hipérbole que lhe é característica, que a Eneida de Virgílio modificou toda a poesia posterior. Assim, parodiando Ernst Robert Curtius, falando das Bucólicas do mesmo Virgílio, podemos dizer que quem não conhece a Eneida de cor perde uma chave fundamental da literatura.

Serviço de Comunicação Social: Por que a obra é estudada atualmente?

Alexandre Pinheiro Hasegawa: Estuda-se a Eneida por diversas razões, mas ela é estudada hoje por causa dela mesma. Estuda-se a Eneida para tentar compreendê-la cada vez mais. Estuda-se para que as novas edições apresentem um texto melhor; estuda-se para a realização de comentários que nos expliquem as características elocutivas do poema, as relações com os modelos gregos e latinos, os aspectos filosóficos e políticos presentes nela, etc. Bem conhecida, a Eneida é uma chave de leitura fundamental não só de poemas latinos, mas também de versos em italiano, inglês, português, etc., como comentei anteriormente. Logo depois de sua publicação, póstuma, editada pelos poetas e amigos de Virgílio, Lúcio Vário e Plócio Tuca, a epopeia se torna texto escolar. Todos estudavam a Eneida. Todos os homens letrados até, pelo menos, o século 18 estudavam a épica virgiliana. Ela continuará a ser estudada sempre porque é um texto fundamental, que formou gerações desde o século 1 a.C. Ler a Eneida no original percebendo o ritmo do hexâmetro, a sonoridade dos versos, “a imaginação auditiva” de Virgílio, como destacam os críticos, é uma experiência singular.

Alexandre Pinheiro Hasegawa é professor de Língua e Literatura Latina pela FFLCH-USP, possui mestrado e doutorado em Letras Clássicas pela mesma instituição. Suas pesquisas têm como foco: gêneros poéticos, bucólica, iambo/epodo, lírica, organização de livros poéticos, métrica e estilo nos poetas augustanos.