Publicação de "A Divina Comédia"

Obra narra a jornada do poeta Dante Alighieri pelo Inferno, Purgatório e Paraíso

Por
Renan Braz
Data de Publicação

Publicação de A Divina Comédia
 "A obra é importante porque mostrou como uma língua que não fosse o latim e com pouca tradição, pôde ser capaz de criar uma obra prima na altura da Odisseia, da Eneida", explica Maria Casini. [Montagem: Renan Braz]

Obra mais famosa de Dante Alighieri, a Divina Comédia foi publicada no século 14 e tornou-se uma das narrativas mais importantes da literatura mundial. Dividida em três partes e contendo 100 cantos, sua trama gira em torno da viagem ultraterrena de Dante pelo Inferno, Purgatório e Paraíso.

Além da temática ligada à religião, a estrutura da obra também é influenciada pelo cristianismo. Dante escolheu compor uma obra de 100 cantos por ser um valor múltiplo de 10, tornando-o um número perfeito segundo a numerologia pitagórica e cristã, conforme explica a pesquisadora Maria Cecilia Casini, docente do programa de Língua e Literatura Italiana do Departamento de Letras Modernas da USP, em uma aula disponibilizada no Moodle USP. Além dela, o Serviço de Comunicação Social também conversou com Paulo Sidnei de Lima, doutorando no Programa de Língua, Literatura e Cultura Italianas da FFLCH.

Confira a entrevista completa com os dois pesquisadores:

Serviço de Comunicação Social: Qual a importância de A Divina Comédia para a literatura? Quais os temas abordados pela obra?

Maria Cecilia Casini: A importância da Divina Comédia para a literatura é incomparável. Além de 'criar' ou usar, praticamente, cerca de 70%-80% da língua italiana, como ela era e como ela se desenvolveria em seguida (Dante nasceu em Florença em 1265 e morreu em 1321; logo antes de morrer, tinha terminado o Paraíso, a última parte da Divina Comédia), fortemente sob o estímulo de Dante e de sua obra. Ela cria um parâmetro poético difícil de ser imitado, porém fascinante e 'clássico' desde o começo. Ela é importante também por formar gerações e gerações de leitores modernos (não somente italianos), a partir do século 14, que liam diretamente em vulgar (a língua do povo, vulgus em latim); ou que, sem saber ler, assistiam às Leicturae Dantis, que começaram cedíssimo. A obra é importante porque mostrou como uma língua que não fosse o latim - nesse caso, o italiano - e com pouca tradição (se bem que já importante desde o século 13), pôde ser capaz de criar, sem nenhuma intimidação, uma obra prima na altura da Odisseia, da Eneida, do teatro grego. Socialmente, no Brasil, a Divina Comédia agregou os imigrantes, sobretudo os italianos, que se reconheciam nela, de qualquer parte da Itália que tivessem vindo; em concordância também com a política cultural de Dom Pedro II, noto humanista, leitor e tradutor de Dante. Enfim, a obra de Dante Alighieri alcança um valor poético universal, como poucos livros o fizeram no decorrer do tempo, sendo isso ainda mais impressionante considerando que se trata de um livro medieval.

A obra fala da viagem pelos 3 reinos ultraterrenos (Inferno, Purgatório e Paraíso, segundo a visão cristã) de uma pessoa, o poeta florentino Dante Alighieri, exilado de sua terra e refugiado político em várias cidades, que, com sua experiência de vida, que relatará em poesia assim que concluir sua viagem, oferece um exemplo a ser seguido por todos aqueles que querem ser tocados pela graça de Deus (tentando fazer o bem em vida, já que com certeza não queriam estar no Inferno depois de mortos). A viagem de Dante, que se desenvolve em uma semana, se põe como uma das maiores experiências vitais e espirituais consentidas ao homem por Deus, mas também, importantíssimo lembrar, por causa de seu livre arbítrio, que o torna livre de tomar decisões independentes da vontade de Deus.

Paulo Sidnei de Lima: A Divina Comédia é uma obra de importância fundamental para a literatura. Dante Alighieri (1265 – 1321) escreveu a obra, em versos, nos primeiros anos do século 14 – provavelmente até o final de 1314. Escrita em lingua volgare – termo utilizado para se referir a uma língua falada e entendida pelo povo, em contraposição ao latim, entendido somente pelos eruditos – a obra é o maior investimento que até então já se havia feito em uma língua popular, no caso, o florentino, falado por Dante e seus concidadãos, de modo que o poema é considerado a obra fundadora da literatura italiana.

Escrito em 100 cantos, utilizando um sistema conhecido como rima terzina, o poema foi dividido ainda em três partes, o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. O título original da obra era La Commedia, nome genérico, que parece levar em conta basicamente o fato de a obra ter um final feliz, no Paraíso, sendo que o título que hoje utilizamos, a Divina Comédia, foi atribuído anos depois por Giovanni Boccaccio (1313 – 1375), provavelmente o primeiro comentarista da obra e da vida de Dante Alighieri. Críticos literários como Carlyle consideram que a obra deu voz a dez séculos de silêncio.

Ainda assim, o tom predominante em seus cantos é a síntese e a busca de uma possível conciliação entre o mundo clássico e pagão e a România cristianizada dos tempos de Dante. Tal relação se evidencia já no início do relato dantesco escrito em versos, em que o poeta afirma ter se perdido de seu caminho em uma selva escura, e, não sabendo como retornar, aterrorizado ainda pela presença de feras que o impediam de prosseguir, tinha se abrigado em uma gruta, onde providencialmente encontra o espírito do poeta Virgílio. O sumo poeta o resgata de seu desespero, afirmando ter sido enviado para socorrê-lo pela intercessão de um espírito elevadíssimo e muito amado por Dante, sua musa e seu primeiro amor, Beatriz.

No entanto, a fim de que possa realmente se reencontrar e vencer todas as suas dúvidas, o Alighieri deveria empreender uma viagem desafiadora, tendo Virgílio como o seu guia, através dos três reinos do além, o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. A obra evoca toda a tradição clássica de que Dante é herdeiro, ao narrar o encontro de Dante com os espíritos dos grandes poetas da antiguidade, Homero, Virgílio, Ovídio, Horácio, Lucano sendo que o próprio poeta é convidado a ser o sexto entre eles. Embora trate de temas nobres e elevados, a obra foi escrita em língua popular, o volgare, numa época em que havia se consagrado o uso do latim para tais temas.

Embora tenham sido feitas versões da obra em prosa latina nos anos seguintes, a escolha de Dante de escrever a obra em versos é uma homenagem a uma tradição mais antiga, a da Scola Siciliana, patrocinada pelo imperador Frederico II (1194 – 1250) e que deixou várias canções de poetas famosos, como Giacomo da Lentini, Cielo D’Alcamo e Guido delle Colonne, muito apreciados nos tempos em que Dante começou a escrever. Essa tradição de escrever sobre temas nobres, inclusive temas filosóficos em verso e em lingua volgare, tinha sido herdada dos trovadores provençais e tinha sido adaptada para suprir os requisitos de uma literatura mais elevada, que privilegiava a declamação e era mais fácil de ser memorizada mesmo pelo público que não era versado em latim e não tinha acesso à leitura das grandes obras, os illiterati.

Por esta razão, a Divina Comédia em questão de poucos anos se tornou o livro do povo, que o havia decorado e sabia declamar seus versos, por serem escritos em uma língua familiar, mas também o livro dos teólogos, como aponta o crítico literário Cesare Cantù, ao destacar que seus cantos passaram a ser lidos por ocasião das homilias nas missas das igrejas de Florença, como uma tentativa de se preservar e difundir a obra e o pensamento de Dante após a sua morte. A Divina Comédia era também o livro dos eruditos, fato que permitiu que Giovanni Boccaccio lecionasse sobre o grande poema em uma cátedra que foi oferecida a ele nos anos finais de sua vida. Além de Boccaccio, muitos comentaristas procuraram elucidar o sentido das alegorias contidas nos versos de Dante nos anos que se seguiram à sua morte.

A narrativa desenvolvida nos versos da Divina Comédia relata, como já foi dito, a viagem de Dante Alighieri, ainda vivo, pelos três reinos do além, o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Segundo o comentário contido na Epístola a Cangrande della Scala, atribuída a Dante, “o tema de toda a obra considerado de maneira absoluta é o estado das almas depois da morte. Com efeito, é ao redor desse tema que se desenvolve toda a obra”. Como essa viagem insólita, segundo informações dadas pelo próprio Dante, teria sido realizada no curto prazo de três dias que inclui a Sexta-Feira Santa, o Sábado de Aleluia e o Domingo de Páscoa do ano de 1300, muitos estudiosos interpretam a obra como uma alegoria que diz respeito à morte e ressurreição de Cristo, em que o próprio Dante seria a figura Christi, uma metáfora do Cristo que vem trazer à humanidade a mensagem da redenção do pecado e da morte.

Em sentido poético e alegórico, também pode-se afirmar que Dante retoma discretamente “o Verbo se fez carne” de S. João 1:14 e desdobra a letra desta escritura elegantemente com a sua própria palavra nos versos da Divina Comédia, ao fazer um relato em primeira pessoa, transmitido por um narrador impessoal e onisciente que, ao final da jornada, se identifica como o humilde peregrino a quem foi concedido ver tanto, sob a condição de que revelasse por escrito as coisas que viu.

Em sentido moral, o poema fala das etapas de uma conversão pessoal, em que o poeta, tendo se desviado dos objetivos de sua vida e tendo se comprometido em severas lutas políticas, que culminaram com a sua pena de exílio de Florença, busca enfrentar toda a condição distópica resultante de seu erro, distopia essa representada pela descida ao reino infernal. No caminho, ele, sempre amparado pelo seu guia, Virgílio, aprende a fazer a releitura das circunstâncias que o condenam ao desespero e à perda do objetivo de uma vida (Inferno III 9), e tem a oportunidade de reaver a sua integridade original, ao perceber que a condenação que leva aos círculos infernais é antecedida pela perda de todo o bem que é oriundo do uso do intelecto (Inferno III 18).

Na etapa seguinte, o Purgatório, Dante e Virgílio iniciam a sua ascensão, que figurativamente também representa o esforço consciencioso para deixar para trás o peso do pecado e do erro, buscando atingir novamente a plenitude. E, na etapa final da viagem, o Paraíso, o movimento de ascensão, que agora parece avançar para atingir as mais elevadas esferas do Céu, mostra ser também uma jornada rumo ao centro, rumo ao encontro da própria essência do poeta, o que culmina no ato de “transumanização”, em que Dante acaba por levar a sua frágil condição humana a um estado de transcendência que, se por um lado é revelado como o seu encontro com o divino, por outro, está codificado como um encontro com o seu eu mais recôndito, mais sutil e mais refinado.

Entre os principais eventos narrados, podemos destacar o resgate do poeta por Virgílio na selva escura (Inferno I 65), a chegada ao portão da cidade infernal (Inferno III 9), a chegada de Dante e Virgílio ao castelo nobre (Inferno IV 72); o encontro com Paulo e Francesca (Inferno V 73-142), e o encontro com o Papa Benedito VIII (Inferno XIX); o encontro com Casella (Purgatório II), o encontro com Daniel Arnaut (Purgatório XXVI), seus amigos, como ele, versados nas artes; o encontro com Beatriz no Paraíso e a discreta despedida de Virgílio (Purgatório XXX); a entrada no Paraíso e o que Dante Alighieri descreve como “transumanização” (Paraíso I); o encontro com Sigério de Brabante, retratado no quarto céu, onde também se encontra S. Tomás de Aquino (Paraíso X) e o encontro de Dante com o seu avô Cacciaguida (Paraíso XV - XVII); a visão da Santa Trindade na forma de um livro (Paraíso XXXIII).

Esses eventos são todos revestidos de importância particular para a trajetória pessoal de Dante, como no caso do encontro com Cacciaguida, em que Dante dialoga longamente com o seu antepassado e em que este “prediz” os infortúnios que Dante ainda enfrentará, como o decreto que o condenaria ao exílio. Alguns têm um gosto de vingança pessoal, como o encontro com Benedito VIII no Inferno (este papa foi diretamente responsável pela cadeia de eventos políticos que levaram à condenação de Dante à pena de exílio) e a visão de Sigério de Brabante – que tinha posicionamentos equivalentes aos de um ateu – ao lado de S. Tomás de Aquino no Céu! Alguns parecem calar fundo na mente do poeta, como o diálogo com Francesca da Rimini, no Canto V do Inferno, que parece lançar as cartas de um profundo e doloroso dilema ético em sua alma.

O encontro com Beatriz e a despedida de Virgílio parecem representar o momento em que tanto Virgílio, pelo lado intelectual, quanto Beatriz, pelo lado espiritual, levam a um bom termo o resgate e a libertação do poeta da escuridão e do desespero em que a sua alma  tinha estado mergulhada. Já a visão da Santa Trindade na forma de livro parece retomar, à maneira de Dante, o pensamento de S. Agostinho a respeito de uma significância que seria parte do plano divino para todas as coisas, o “pergaminho dos céus”, escrito sem letras e sem palavras, composto de todas as coisas e de todos os eventos que formam o Cosmos.

Serviço de Comunicação Social: Quais suas influências em obras posteriores?

Maria Cecilia Casini: Muito grandes, mas complexas, porque Dante, por causa da inimitabilidade de sua obra, não foi inserido no rol dos escritores canônicos italianos no século 16, como Petrarca e Boccaccio, por exemplo. Trata-se mais de influências de prestígio, de reconhecimento internacional, de admiração pelo homem, de reflexões sobre o papel que o intelectual pode de fato exercer na política (considerando o exílio que Dante sofreu). E, claramente, deve-se à Divina Comédia, em boa parte, a fortuna da cultura italiana no mundo, que dura até hoje.

Paulo Sidnei de Lima: Além das tentativas de converter a Divina Comédia em prosa latina, quase um século após a morte de Dante, ou seja, em 1414, poetas da Andaluzia como Micer Francisco Imperial começam a traduzir e a parafrasear os seus cantos usando o decassílabo italiano, marcando o encontro da obra de Dante com a escola galego-portuguesa. Embora Dante tenha sido considerado uma das três coroas florentinas e embora tenha continuado a ser prestigiado e promovido por escritores como Pietro Bembo (1470 – 1547), a obra e o estilo de Dante parecem, por um tempo, ter gozado de menos prestígio que os escritos dos grandes italianos de sua época, Boccaccio e Petrarca.

O interesse pela obra e pelo pensamento do poeta reaparece com força no séc. 19, em obras como o Discorso de Ugo Foscolo, de 1827, nos diálogos e nos poemas de Giacomo Leopardi, e no poema City of the Dreadful Night, de James Thompson, 1873. Em Portugal, grandes escritores da língua portuguesa no século 19, como Antero de Quental, Almeida Garrett, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão apresentam influências dos cantos de Dante em suas obras. José da Silva Mendes Leal Júnior escreveu um poema intitulado Dante em 1881. Teófilo Braga, inspirado em temáticas do poeta, escreveu Visão dos Tempos, de 1895. Mais ou menos nesse período, em 1886, Alberto Pimentel escreveu um curioso poema intitulado Lendo..., parte da antologia Idílios dos Reis, de 1886. São dele os versos “Ninguém deixe cunhados ler o Dante / Está a arder no inferno esse tratante”, em que culpa o poeta pelo idílio infeliz que levou Afonso VI a perder o trono. Da autoria de Alberto Feliciano Marques Pereira, temos Aquelle beijo, de 1887, inspirado no relato de Francesca da Rimini no Canto V do Inferno. Alice Moderno, 1904 e Carlota Silva, 1906, também escreveram poemas dedicados a Dante. Joaquim Dias inspirou-se na obra do poeta para escrever o seu Apotheose Humana, de 1907. João de Castro também inspirou-se nos cantos da Divina Comédia para escrever o seu Sonho de Dante, de 1908.

Muitos poetas portugueses se inspiraram no episódio de Francesca da Rimini. É o caso de José Fernandes Costa Júnior em seu Francesca, de 1913 e de Candido Guerreiro, em um poema homônimo de 1916. Já Matias Lima se inspirou na cidade em que Dante nasceu e viveu a sua juventude em seu Florença, de 1926 e José Callaya escreveu o poema Dante, o homem que foi ao Inferno, de 1938. José Vitorino de Pina Martins em 1965, ano em que se comemorou o VII Centenário do nascimento do poeta, publicou dois ensaios sobre o florentino:  A problemática de Dante, ontem e hoje, e O Humanismo de Dante no Humanismo do Renascimento.

No Brasil, inicialmente foram produzidas traduções de trechos da Divina Comédia, como as contidas no Ramalhete Poético do Parnaso Italiano, de Luís Vicente de Simoni, 1843. Gonçalves Dias também apresentou suas contribuições no sentido, com Fragmentos da Divina Comédia, de 1844, sendo seguido por Machado de Assis, com a sua tradução do Canto XXV do Inferno, de 1874 e com as traduções do episódio de Francesca da Rimini, no Inferno V e do Conde Ugolino, no Inferno XXXIII, por D. Pedro II, em 1889. As traduções integrais da Divina Comédia foram sendo elaboradas logo após, com o texto traduzido do Barão da Villa da Barra, de 1888 e a tradução de José Pedro Xavier Pinheiro, do mesmo ano.

Antes disso, é clara a influência da obra nos versos de O Navio Negreiro, de Castro Alves, 1869, em que o poeta usa duas vezes o termo “dantesco” para se referir ao triste espetáculo que narra, e na prosa de Memórias Póstumas de Brás Cubas, (1881), em que Machado de Assis compara o relacionamento amoroso de seu protagonista com uma mulher casada ao enlace afetivo de Paulo e Francesca da Rimini, que continuavam presos ao seu amor, ainda que no Inferno. Raimundo Correa voltou sua atenção para a musa de Dante, em seu poema Beatriz, de 1883. Múcio Teixeira publicou seu poema O Último Sonho de Dante em 1902; Olavo Bilac é autor de um texto em prosa intitulado Dante no Paraíso, de 1904, e Adherbal de Carvalho escreveu Versos de um Dilettante – a Dante Alighieri em 1911. Euclides da Cunha escreveu O Paraíso dos Medíocres, publicado em 1933, subtitulado uma página que Dante destruiu. Eduardo Guimaraens escreveu A Divina Quimera em 1916 e, em 1940 e 1957, respectivamente, o escritor italiano Giovanni Papini, com o seu Dante Vivo e o filósofo italiano Giorgio del Vecchio com o seu Universalidade do Pensamento de Dante, voltam a chamar a atenção para o poeta.

Ainda no Brasil, aparecem duas obras importantes, inspiradas pelos escritos e pelo pensamento de Dante, A Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, 1952 e Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo, 1963, além de várias obras que são publicadas por ocasião do VII Centenário de seu nascimento, como o livro O Meu Dante, uma coletânea de ensaios organizados por Edoardo Bizzarri.

Serviço de Comunicação Social: Como a obra pode ser aproveitada hoje em dia?

Maria Cecilia Casini: Em muitas maneiras. Muitas são as obras que se inspiraram nela a partir de outras estéticas, criando obras novas e originais (e acho que Dante gostaria delas). Mangás, games, rock, cultura marginal, cinema, cultura popular, TV. Tanto na Itália como fora. Em particular, considero o povo brasileiro um dos mais receptivos à obra de Dante; talvez porque, tendo que arcar menos que os europeus, e os italiano especialmente, com o peso sempiterno da história, os brasileiros possuam a capacidade de entrar imediatamente em contato com figuras carregadas de tanto significado como Francesca, por exemplo; ou Ugolino. E de criar vínculos 'humanos' com eles, sem necessariamente o 'filtro' histórico. Observo isso em minhas aulas, na sala mesmo. E também acho que Dante gostaria muito disso!

Paulo Sidnei de Lima: Nos dias de hoje, já contando mais de 700 anos desde que o Alighieri compôs o último canto da obra e a considerou terminada, ela se tornou uma obra mais proveitosa que nunca antes. Ela pode e deve ser utilizada para o deleite dos leitores. Dante Alighieri a escreveu com esse propósito. Os leitores devem lê-la e relê-la, devem memorizar seus versos, devem recitá-los, devem musicá-los e cantá-los se puderem. Devem apreciar ao máximo a sonoridade de seus cantos, cada uma de suas sílabas e suas rimas. Os cantos dantescos, embora possam assustar às vezes, tangem em nosso coração as notas mais humanas, pois todo o ser humano é sensível ao medo e a compaixão. Eles nos apontam o caminho da empatia e do refinamento dos sentidos pela contemplação do belo e pela experiência do sublime – que, nos cantos da obra, assume uma nova definição: o dantesco! Este é o primeiro sentido da obra de Dante, o literal e externo, e que está acessível a todos, mesmo aos espíritos mais simples.

A obra de Dante também pode e deve ser aproveitada para a edificação. A Divina Comédia trata de muitos assuntos que só são conhecidos pelos eruditos e as pessoas que não são tão versadas neles só conseguem compreendê-los por meio dos comentaristas da obra, ou por meio de muitas leituras adicionais. Ainda assim, ela é uma obra que instrui e refina o intelecto daqueles que estão dispostos a buscar um aprofundamento nas questões sugeridas por Dante a cada novo ponto de sua obra. Este é o sentido alegórico de seus escritos, que serve de alimento aos intelectos em busca de refinamento.

A obra também pode ser lida como advertência para que seus leitores não deixem de buscar o bem que está ao seu alcance, perdendo-se, como Dante, na selva escura e se tornando presas fáceis dos que são como feras e que visam destruir e devorar os incautos. Ainda assim, os que se perdem na selva escura têm uma dura missão pela frente, a de não abrir mão do bem que o intelecto ainda pode lhes proporcionar, e buscar, pela razão e pela sensibilidade, abrir caminho para seu resgate, ainda que isso custe uma viagem totalmente distópica ao reino infernal. Esta é a leitura moral da obra do grande poeta.

Finalmente, a Divina Comédia aponta que o leitor, uma vez que entenda o que as alegorias cuidadosamente tecidas por Dante querem dizer, deve buscar decididamente a sua perfeição distintiva – o saber – e deve procurar a essência de seu ser, “transumanar-se”, como o próprio poeta o fez ao chegar ao Paraíso, porque isso significa encontrar a felicidade reservada aos que desfrutam da condição humana. Este é o sentido anagógico da obra.

Maria Celia Casini é formada em Letras pela Universidade de Florença (Itália), com especialização em História do Espetáculo. É doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com Pós-Doutorado na Universidade de Nápoles - "L'Orientale" (Itália). É docente de Língua e Literatura Italiana no Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Desenvolve pesquisas sobre a literatura medieval e renascentista italianas, particularmente sobre a obra de Dante Alighieri e a cultura de Florença; sobre a formação e a história da língua literária italiana; a literatura clássica, a formação do cânone literário e o papel dos intelectuais; a literatura comparada; a literatura em diálogo com outras artes (arte, música, teatro) e a literatura de mulheres.

Paulo Sidnei de Lima possui graduação em Letras - Italiano (Universidade de São Paulo, 2016) e mestrado em Letras (Universidade de São Paulo, 2020). Como pesquisador pelo Programa de Língua, Literatura e Cultura Italianas tem estudado a recepção da obra de Dante Alighieri, a Questão da Língua na Itália, a influência cultural dos imigrantes italianos em São Paulo e a presença de Aristóteles, Cícero e Horácio na obra e no pensamento de Dante Alighieri. Como doutorando pelo mesmo programa tem pesquisado o papel de Dante como comentador do legado da latinidade e como intérprete e interlocutor do pensamento dos clássicos para os povos de língua românica de seu tempo.