Cinema Novo Brasileiro

A importância do movimento para o Brasil se dá pela revolução estética e artística no cenário cinematográfico nacional, mudando-o para sempre

Por
Pedro Seno
Data de Publicação

Segundo Ivan Marques, “Para realizar os filmes, os cineastas aprenderam a trabalhar em equipe, com baixos orçamentos. Essa forma precária, essa linguagem empobrecida, digamos assim, ao mesmo tempo se revelou extremamente inventiva e experimental” (Arte: Pedro Seno)

Foi no final da década de 1950 que surgiu o chamado Cinema Novo no Brasil. Antes disso, a produção cinematográfica nacional era desfocada de movimentos artísticos e tinha pouca aderência do público brasileiro, ou mesmo credibilidade crítica e internacional. À época, era tido como “inexistente”, nas palavras de Ivan Francisco Marques, docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. 

O pioneirismo do Cinema Novo veio com os nomes de Nelson Pereira dos Santos e Roberto Santos e, no início dos anos 1960, consolidou-se com outros realizadores, como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, entre outros. A ideia era a criação de uma “forma brasileira”, de caráter “fortemente engajado”, com uma estética própria, revolucionária, tanto estilística como politicamente. O que caracterizava essa forma era o baixo orçamento e a inventividade dos cineastas para conseguirem criar composições fílmicas que pudessem se adaptar à “linguagem empobrecida”, ligada a temas populares, próxima à realidade nacional, era a chamada “estética da fome”.

Com o golpe de 1964, os diretores aproveitaram o nascimento do movimento para gerar obras que estavam ligadas com o contexto social e político do país. Logo, o Cinema Novo foi tido como um fenômeno artístico brasileiro, com boa aceitação crítica, consciência cinematográfica do público e reconhecimento internacional. Terra em Transe, de Glauber Rocha, além de outros filmes famoso, chegaram a influenciar tanto o cinema quanto o Tropicalismo de Caetano Veloso e José Celso Martinez Corrêa.

Hoje, concretizado na história da arte brasileira, o Cinema Novo possui boa receptividade na FFLCH, com pesquisas comparativas e analíticas dos filmes realizados no período, tanto para o curso de Letras, cujo professor Ivan Marques leciona na área de literatura brasileira, como no curso de História, com uma formada tradição de estudos cinematográficos, em especial o cinema brasileiro.

Confira a entrevista completa com Ivan Marques para mais detalhes e informações sobre o Cinema Novo no Brasil:

Serviço de Comunicação Social: O que foi o movimento do Cinema Novo no Brasil, em termos simples e gerais?

Ivan Francisco Marques: O Cinema Novo, surgido no final dos anos 1950, foi um dos movimentos mais importantes da nossa história cultural. Significou, ao mesmo tempo, a invenção de um cinema moderno e a criação de um cinema brasileiro, visto pelos jovens diretores como inexistente até então, já que a história do nosso cinema tinha sido marcada por iniciativas e surtos isolados, ciclos descontínuos etc., sem que houvesse a plena efetivação de uma tradição fílmica no país. Os pioneiros foram os cineastas Nelson Pereira dos Santos e Roberto Santos. No início dos anos 60, apareceram diversos realizadores: Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirzsman, Carlos Diegues, Paulo César Saraceni, entre outros. Até a derrota sofrida com o golpe militar de 1964, esses jovens cineastas, repercutindo o clima eufórico da década anterior, propuseram um cinema fortemente engajado, tencionando empreender simultaneamente uma revolução estética e uma revolução política. O Cinema Novo se relacionou profundamente com a tradição cultural brasileira - haja vista os frequentes diálogos com a literatura de Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, José Lins do Rego e, numa segunda etapa, Mário de Andrade e Oswald de Andrade -, mas também manteve, desde os seus primórdios, uma forte vinculação com os movimentos cinematográficos de vanguarda que ocorreram em meados do século 20 na Europa, especialmente o Neo-Realismo italiano e a Nouvelle Vague francesa. O Cinema Novo era tão moderno que logo adquiriu prestígio internacional, colecionando uma sucessão de prêmios importantes em festivais. Assim como a moderna arquitetura surgida no Brasil nas décadas de 1930 e 1940, o Cinema Novo nos anos 60 foi um "milagre" ou um "fenômeno" de repercussão internacional, o que sem dúvida contribuiu para ampliar a aceitação do cinema brasileiro em seu próprio país, problema tantas vezes mencionado e deplorado por críticos como Paulo Emílio Salles Gomes. Com o Cinema Novo, a elite cultural brasileira, pela primeira vez, passou a respeitar a produção fílmica do país.

Serviço de Comunicação Social: Quais são as principais características desse tipo de Cinema como forma artística?

Ivan Francisco Marques: A exemplo do Modernismo, o Cinema Novo estava obcecado com os problemas brasileiros e com o aproveitamento, em forma erudita, da nossa diversidade cultural. Anteriormente, a temática brasileira aparecera inúmeras vezes no cinema nacional. Entretanto, a forma dos filmes, por ser importada de Hollywood, era incoerente com a temática: a iluminação, a encenação, a interpretação dos atores, tudo pesava e destoava. A partir do Cinema Novo, os diretores passaram a buscar uma "forma brasileira" que fosse adequada ao tratamento dos temas nacionais. Para realizar os filmes, os cineastas aprenderam a trabalhar em equipe, com baixos orçamentos. Essa forma precária, essa linguagem empobrecida, digamos assim, ao mesmo tempo se revelou extremamente inventiva e experimental. A falta de dinheiro e a precariedade técnica foram habilmente transformadas em recursos expressivos, adequados a uma formalização em alto nível da realidade brasileira. A isso Glauber Rocha, o nome mais célebre da geração cinemanovista e seu grande teórico, chamou de "estética da fome". A contradição estava em desejar, ao mesmo tempo, a ação política e a invenção estética. Para ter eficácia como arte engajada, os filmes procuravam ser realistas e focalizar assuntos populares, com perspectiva simpática ao povo. Paralelamente, investiam na experimentação, na linguagem alegórica, que criava dificuldades de comunicação. Essa contradição só foi resolvida em Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, o maior sucesso de bilheteria do grupo, que recebeu simultaneamente fartos elogios da crítica.

Serviço de Comunicação Social: Qual foi a importância histórica e a relação com contexto social e político da época em que o movimento ocorreu?

Ivan Francisco Marques: O Cinema Novo se relacionou visceralmente com o seu tempo histórico, o contexto social e político dos anos 1960. Na primeira fase do movimento, os premiadíssimos Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, eram filmes engajados, teleológicos, que apontavam para a redenção política num momento histórico especial, marcado por reformas, revolucionários programas de educação e enormes esperanças. Em seguida, Terra em Transe, também de Glauber, figurou de modo alegórico a derrota política da esquerda, num filme dilacerado e autocrítico, que afetou radicalmente não só o Cinema Novo, mas outros movimentos culturais, como o Tropicalismo de Caetano Veloso e José Celso Martinez Corrêa, assumidamente influenciados pelo filme. Outra comprovação do envolvimento do Cinema Novo com a história foi a já mencionada adaptação de Macunaíma, que, num momento de exacerbação do autoritarismo, radicalizou o sentido crítico e atualizou a pauta mitológica do livro de Mário de Andrade, que, como se sabe, é a obra mais importante do Modernismo da década de 1920. Os filmes do chamado Cinema Marginal, produzido por diretores ainda mais jovens, que romperam com a geração cinemanovista, também foram profundamente marcados pelo contexto social e político.

Serviço de Comunicação Social: Como esse tema é estudado nas pesquisas dentro da FFLCH?

Ivan Francisco Marques: A produção cinematográfica brasileira, tanto a do Cinema Novo como a de outros momentos históricos, inclusive o contemporâneo, tem suscitado diversas pesquisas na FFLCH. Nos departamentos de Letras, curso do qual sou professor, muitas teses e dissertações foram produzidas nos últimos anos, algumas investindo nos estudos comparativos, relacionando cinema e literatura no Brasil, enquanto outras se dedicam especificamente à análise de filmes. Outras pesquisas também têm sido realizadas por pós-graduandos do curso de História, onde já se formou uma tradição de estudos de cinema, especialmente do cinema brasileiro. Nos últimos anos, eu tive a oportunidade de ministrar cursos optativos sobre literatura e cinema. Pela boa receptividade dos alunos, estou cada vez mais convencido da importância dessa perspectiva multidisciplinar para estudo da literatura brasileira, campo ao qual me dedico.


Ivan Francisco Marques é professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo. Autor de livros como Modernismo em revista: Estética e ideologia nos periódicos dos anos 1920 e João Cabral de Melo Neto: Uma biografia. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Modernismo, romance de 30, poesia brasileira moderna e contemporânea, cinema e literatura.