Publicação de “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”

De enorme influência internacional, o ensaio de Walter Benjamin marcou a proposta de uma teoria materialista da arte

Por
Pedro Seno
Data de Publicação

Segundo Fernando Del Lama, “O fascismo mobiliza a totalidade dos meios técnicos pela propaganda, confundindo reprodução em massa com reprodução das massas [...]” (Arte: Pedro Seno)

A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica é um ensaio lançado em 1955, 15 anos após a morte de seu autor, Walter Benjamin. O texto marca a entrada de estudos marxistas no seio da análise e crítica de arte. A proposta, então, era a criação de uma “teoria materialista da arte”, conforme explica o pesquisador Fernando Araujo Del Lama, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Benjamin anunciou, neste trabalho, conceitos utilizados amplamente por outros pensadores posteriormente. Dentre eles, o de “aura” das obras de arte, bem explicado por Fernando Del Lama em matéria anterior sobre o autor.

Para entender mais detalhadamente o que significou o ensaio, sua repercussão mundial e informações sobre o processo filosófico-investigativo de Benjamin, leia na íntegra a entrevista concedida por Fernando para a Comunicação Social:

Serviço de Comunicação Social: De que fala o ensaio "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica", de forma resumida?

Fernando Araujo Del Lama: O ensaio sobre "A obra de arte" é, certamente, o ensaio mais famoso de Walter Benjamin. Do ponto de vista interno ao percurso intelectual de seu autor, esse é um escrito fundamental: ele abre o texto dialogando com Marx a respeito da relação infraestrutura-superestrutura e o conclui advogando a urgência do fortalecimento de uma posição comunista como resposta ao fascismo. Essa "envelopagem marxista" da argumentação traz à tona textualmente, de forma explícita e inequívoca, a incorporação ao seu pensamento de certo marxismo com que Benjamin flertava desde meados da década de 1920. A investigação de Benjamin, no entanto, se dirige a um ponto cego na investigação de Marx e de seus epígonos, qual seja, aos aspectos superestruturais da sociedade, mais particularmente à proposição de uma teoria materialista da arte. Essa teoria se baseia na constatação de que os conceitos tradicionais – "criatividade e genialidade, valor de eternidade e mistério", dentre outros – podem ser cooptados pelo fascismo, sendo preciso estabelecer uma gama de novos conceitos, que dada a dificuldade de apropriação fascista deles, podem ser utilizados para as formulações revolucionárias exigidas pela política da arte. Fazem parte dessa gama os conceitos, por exemplo, de "reprodutibilidade técnica", "declínio da autenticidade", "destruição da aura", "valor de exposição", "recepção tátil" e a caracterização da fotografia e do cinema enquanto arte. Ora, diante de tamanha multiplicidade conceitual, seria praticamente impossível resumir o teor do ensaio. Em vez disso, pretendo me ater a um ou dois temas que julgo primordiais.

Para nos ajudar, façamos um exame do próprio título do ensaio: Benjamin trata nesse ensaio do papel ocupado pela obra de arte, circunscrita a uma época específica, qual seja, da reprodutibilidade técnica. A fim de precisar esta última, nos primeiros capítulos do ensaio, Benjamin afirma que a obra de arte em seu sentido mais amplo sempre foi reprodutível, seja pelos exercícios dos discípulos, seja pelos mestres para a difusão de suas obras, seja pela xilogravura ou pela litografia, pelo molde ou pela cunhagem, por exemplo. Contudo, nessas modalidades de reprodução manual, a obra original se distingue claramente de suas cópias, já que aquela possui um "aqui e agora" que lhe confere unicidade e autenticidade, pelas quais é possível rastrear sua história - as transformações sofridas em sua estrutura física no decurso do tempo e as relações de propriedade a que ela ingressou - e distingui-la, assim, de suas cópias. O mesmo não ocorre na reprodução técnica, feita de forma mecânica e em larga escala: faz sentido falar em obra original se tratando do negativo de uma fotografia, uma película cinematográfica ou mesmo uma gravação fonográfica? Não há distinção qualitativa entre a obra original e suas reproduções - a rigor, tampouco há obra original! Em suma, o advento da era da reprodutibilidade técnica destrói a aura das obras de arte produzidas no seio dessa era. O conceito de aura foi explicado nesta publicação.

E o cinema é a forma de arte mais avançada no sentido de mobilizar as características fundamentais de uma obra tecnicamente reprodutível e pô-las a serviço da luta antifascista. A reprodutibilidade técnica opera uma refuncionalização da arte: sua função propriamente "artística", comprometida com a beleza, torna-se secundária e dá lugar à função de exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico que passa a condicionar cada vez mais sua vida cotidiana, como forma de se reconciliar com ele. Esse exercício do homem nas novas formas de percepção revela um subtema fundamental para o justo entendimento do ensaio, qual seja, o do caráter histórico da estrutura perceptiva humana. Quer dizer: o sujeito transcendental kantiano, fora da história, da perspectiva de Benjamin, é pura ficção. Ele concebe dois grandes modelos de percepção, uma baseada no recolhimento – Versenkung, em alemão –, que exige concentração ativa diante das obras e do mundo estáticos, para apreender seu sentido, e outra baseada na distração – Ablenkung, em alemão –, que se constitui pela postura desatenta, portanto passiva, diante dos estímulos entrecortados, quer pela recepção das obras em movimento, quer pela vida em meio à massa de transeuntes na metrópole moderna. A primeira é anti-social em sua essência, a segunda é propensa a ser social. Daí que o cinema ocupe posição fundamental no papel de exercitar as massas: no interior de uma sala de cinema, a recepção do filme é, necessariamente, coletiva - o custo de sua produção impede sua recepção individual. Além disso, a recepção diante do filme é tátil: a montagem, que cadencia a obra cinematográfica, produz um estímulo que é recebido por nosso aparelho perceptivo distraído de modo físico, através dos choques. Estes são assimilados como hábito, para que sejamos capazes de replicá-los em nosso cotidiano.

O fascismo mobiliza a totalidade dos meios técnicos pela propaganda, confundindo reprodução em massa com reprodução das massas, e pela guerra, que permite dar um objetivo aos grandes movimentos de massa e orquestrar em sua totalidade os meios técnicos existentes, bloqueando, todavia, as relações de produção. A estetização da guerra e da política são exemplificadas pelas linhas assustadoras escritas por Marinetti, apresentadas no último capítulo do ensaio e que se recomenda vivamente a leitura. A essa estetização da política, o comunismo deve responder, mediante a reorientação da relação entre humanidade e aparelho técnico, da qual o cinema ocupa um lugar privilegiado, com a politização da arte.

Reitero, novamente: esses comentários visam, apenas, situar o leitor diante das teses centrais do ensaio. Ficaram de fora desse resumo, por exemplo, as comparações entre a pintura e o cinema ou entre o ator de teatro e o ator de cinema, a cooptação capitalista do culto ao estrelato deste último, todas essas reflexões muito instrutivas.

Serviço de Comunicação Social: Que impacto o ensaio gerou após sua publicação e até os dias atuais? E sua importância geral?

Fernando Araujo Del Lama:  A primeira das cinco versões – conforme redefinido mais recentemente pelo volume 16 da edição crítica de sua obra – do ensaio sobre o cinema data de 1935, sendo que a única das versões publicada com Benjamin ainda vivo, a quarta versão (que nada mais é do que a tradução francesa da terceira versão, redigida em alemão, devidamente "suavizada" por Horkheimer enquanto editor da Revista de Pesquisa Social, com o corte da primeira seção sobre Marx, o corte da referência explícita a Hitler e as distorções das traduções de "fascismo" por "doutrinas totalitárias" e de "comunismo" por "forças construtivas da humanidade"). Além disso, a obra de Benjamin levou 15 anos após sua morte para ser objeto de uma primeira reunião, ainda bem fragmentária, é verdade, de seus escritos mais famosos, sob o título de Schriften, sob os cuidados de Theodor Adorno, em 1955. Mas posso afirmar com relativa segurança que, dada a pujança e ineditismo da argumentação acerca de uma teoria materialista da arte, que esse ensaio foi o carro-chefe no início da difusão de Benjamin pelo mundo. No caso brasileiro, por exemplo, a pesquisa sobre Benjamin iniciou ainda na segunda metade da década de 1960 pelo ensaio sobre "A obra de arte" em particular, certamente como uma reação do pensamento de esquerda à ditadura militar, como atesta o livro de Günter Karl Pressler, Benjamin, Brasil. As primeiras traduções foram publicadas já no fim da década de 1960: por exemplo, a de José Lino Grünnewald, em uma coletânea de artigos sobre cinema, intitulada A ideia de cinema, em 1969, a partir do texto da hoje conhecida como quinta versão do texto, publicado naquela primeira coletânea de 1955. E, ao longo das décadas subsequentes, outros textos foram paulatinamente se tornando objeto de investigação e sendo traduzidos.

Apesar da relevância geral do ensaio sobre "A obra de arte", a pesquisa em Walter Benjamin é constituída por ciclos de temas preponderantes, sem esgotá-los, obviamente, já que tendem a ser retomados em novas chaves posteriormente. Já foram objetos de investigação, por exemplo, a questão da modernidade em Benjamin e Baudelaire, o papel das diferentes chaves de leitura da história, o tema da aura e da arte em chave estética, as inesgotáveis Passagens e suas fantasmagorias, ou ainda, mais recentemente, a questão da "vida póstuma" – Nachleben, em alemão – em conexão com a obra de Aby Warburg, as reflexões sobre a memória e do não-esquecimento, dentre tantos outros. Nos últimos anos, tem-se retornado frequentemente ao ensaio sobre "A obra de arte", particularmente à sua terceira versão, traduzida para o português em 2012, para discutir o conceito de "segunda técnica" - que só está presente nela - no contexto da ideia de "materialismo antropológico".

Contudo, trata-se de um ensaio riquíssimo, repleto de temas e camadas. Eu mesmo, em minha releitura preparatória para esta entrevista, já consegui perceber uma ou duas conexões que até então não estavam absolutamente claras para mim - eis a beleza do espanto filosófico!

Serviço de Comunicação Social: Como essa obra de Walter Benjamin é estudada e recebida no contexto acadêmico da FFLCH? (Sinta-se livre para falar sobre bastidores de pesquisas, como o ensaio é inserido nelas ou se não é. O que achar relevante)

Fernando Araujo Del Lama:  Como autor multifacetado, cujos escritos versaram sobre uma miríade de temas e que nunca se prenderam a uma disciplina específica das humanidades, é natural que a recepção de Benjamin, em sentido mais amplo, tenha se dado de forma pulverizada no contexto da FFLCH, sendo distribuída, basicamente, entre a literatura, a filosofia e a sociologia e a antropologia social. Filtrando no sistema de pesquisa das bibliotecas da USP por Walter Benjamin, por exemplo, são retornadas cerca de 30 teses/dissertações produzidas ao longo dos últimos 10 anos. Esses trabalhos se valem das mais diversas formas de apropriação da obra benjaminiana: desde trabalhos de maior fôlego, que examinam um de seus escritos específicos ou uma série de seus escritos interligados por um recorte temático, à trabalhos que utilizam emprestam conceitos forjados por Benjamin para analisar obras literárias e artísticas diversas, passando, obviamente, por trabalhos nos quais sua obra é posta em diálogo com as de outros autores a ele afinados, seja historicamente, seja tematicamente, como Theodor Adorno, Giorgio Agamben e Georges Didi-Huberman, por exemplo. Especificamente a respeito do ensaio sobre "A obra de arte", por se tratar de um estudo que confere bastante importância a vários aspectos do cinema, Benjamin se torna, através dele, interlocutor privilegiado para os trabalhos que analisam obras cinematográficas, quer na perspectiva da literatura comparada, quer na perspectiva da antropologia social.

Apesar dos esforços discentes louváveis em manter a chama da obra benjaminiana acesa em meios aos corredores da FFLCH, temos poucos ou quase nenhum professor especialista em Benjamin. Na Filosofia, curso de que sou egresso e do qual posso falar com mais propriedade, a última especialista na obra de Benjamin foi a Profᵃ Olgária Matos, há muito aposentada. Não fosse pelo curso, ainda em 2009, sobre estética moderna, ministrado pelo Prof. Ricardo Fabbrini, onde conheci a obra de Benjamin, muito provavelmente eu teria estudado outro tema ou autor, já que não tive outra oportunidade de estudá-lo na grade curricular da graduação; felizmente, pude suprir essa lacuna cursando disciplinas optativas no DTLLC, com a Profᵃ Betina Bischof e com o Prof. Samuel Titan Jr, em que estudamos o ensaio sobre Leskov, bem como nas disciplinas de Teoria da História, com o Prof. Elias Saliba e o Prof. Jorge Grespan, em que estudamos os escritos de Benjamin sobre a história.

Considero importante esse tipo de oferta desde a graduação, uma vez que é um contato guiado, minimamente aprofundado, com as teses de um autor, pois é assim que ele nos cativa e nos desafia a perscrutar os segredos mais íntimos de sua obra.  Assim, para aqueles que desejam se aprofundar na pesquisa sobre Walter Benjamin e estão enfrentando dificuldades de qualquer ordem, temos excelentes especialistas no estado de São Paulo, que ministram cursos sobre Benjamin regularmente: a Profᵃ Taisa Palhares, da Unicamp, e os Profs. Luciano Gatti e Francisco Pinheiro Machado, da UNIFESP – curiosamente, os três iniciaram a formação na FFLCH.

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A pesquisa de Fernando Araujo Del Lama concentra-se em Teoria Crítica, sobretudo na geração da Escola de Frankfurt, com foco na obra de Walter Benjamin. Sua dissertação de mestrado, defendida em 2017, com o título Diagnóstico de época e declínio da experiência em Walter Benjamin: uma abordagem dos escritos da década de 30, encontra-se disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.