Filósofo Alemão debateu questões sobre ética, metafísica e política
Escritor de obras como A Crítica da Razão Pura, Immanuel Kant nasceu na Prússia em 22 de abril de 1724. Sua importância para a filosofia é imensa, o pensamento kantiano por exemplo, fornece princípios para o que hoje entendemos por Estado democrático de direito. Além disso, sua filosofia embasou princípios para arte e o direito.
Para entender melhor sobre Kant e sua filosofia conversamos com o professor doutor Maurício Cardoso Keinert da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, confira a entrevista abaixo:
Serviço de Comunicação Social: Quem foi Immanuel Kant e qual a sua corrente de pensamento filosófica?
Maurício Cardoso Keinert: Immanuel Kant nasceu em Königsberg, no dia 22 de abril de 1724, numa cidade portuária localizada na Prússia (hoje chamada Kaliningrado, que faz parte da Rússia), onde viveu os seus quase oitenta anos de vida. Nunca saiu da cidade e muitas estórias e anedotas são contadas a respeito disso e de suas supostas manias - como a de sair para passear sempre num determinado horário do dia, em que as pessoas da cidade aproveitavam para ajustarem os seus relógios, dada a pontualidade de Kant - tendo se atrasado apenas uma vez, quando recebeu o seu exemplar de O contrato social, de Rousseau. Mas as informações biográficas, e as anedotas menos ainda, são de pouca valia para dimensionarmos a grandeza do pensamento kantiano.
A questão da inserção deste filósofo numa corrente de pensamento, nesse caso, não é tão simples. Kant viveu ao longo de quase todo o século 18 (de 1724 a 1804) e é considerado um integrante da filosofia moderna, iniciada por René Descartes, a qual chamarei de modernidade clássica. No entanto, ao longo de sua obra, Kant, mesmo que influenciado por ela, procurou discutir com essa tradição moderna (ao criticá-la), seja com a vertente empirista (Locke e Hume, por exemplo), seja com a vertente do grande racionalismo clássico, que dominava a cena europeia nesse momento, principalmente com a filosofia de Leibniz. Na Prússia não era diferente, essas vertentes tiveram grande influência em pensadores (infelizmente) ainda pouco conhecidos no Brasil, como Wolff, Baumgarten, Jacobi, Garve etc.
Uma grande influência de Kant foi a física clássica, principalmente a de Newton. Com a publicação da Crítica da razão pura, em 1781, fica definitivamente clara para Kant a impossibilidade, parafraseando um professor francês que lecionou durante muitos anos no Departamento de filosofia da USP - Gérard Lebrun -, de conciliar a representação do mundo metafísico de tradição leibniziana com a representação do mundo físico de Newton. Para o nosso autor alemão, a tomada de consciência de tal impossibilidade colocou a metafísica clássica, ou mesmo a metafísica em geral, em xeque, na medida em que a possibilidade de a pensar como uma ciência, tal como a matemática e a ciência da natureza, se mostrou uma ilusão própria à razão. Ora, tal resultado causou grande espanto à época, já que discípulos, alunos e amigos esperavam a grande Metafísica do Professor Kant (que ensinava em Albertina, Universidade de Königsberg). E o que é publicado, pelo contrário, é um livro enorme, de difícil e árdua leitura, uma tal de Crítica...
A influência de Newton não significou, no entanto, que Kant foi um filósofo que fundamentou epistemologicamente (ou até mesmo ontologicamente) a ciência deste grande pesquisador da natureza, como certa corrente interpretou a Crítica da razão pura por volta do início do século XX (apesar de tal leitura ser de grande valia e muito interessante). A crítica à Metafísica tomou uma posição central na obra kantiana, e a grande questão é a de entender como várias leituras da obra desse filósofo apontam para diversas interpretações desse núcleo duro. Nesse sentido, se Kant é um filósofo moderno, ele é também aquele que questionou o solo até então aparentemente tranquilo dessa "ciência", o que o colocou num lugar sui generis no interior da modernidade filosófica. Talvez, e poderíamos tratar disso mais adiante, seria possível falar de uma outra acepção de modernidade que surge com Kant, levando-se em consideração ainda as Críticas da razão prática (1788) e a Crítica da faculdade de julgar (1790).
Serviço de Comunicação Social: Poderia falar sobre a Lei Moral de Kant?
Maurício Cardoso Keinert: Sim, esta é uma questão interessante. A primeira vez que Kant vai tratar da moral e da ética no chamado período crítico, iniciado em 1781, é na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (publicada em 1785) e, posteriormente, na Crítica da razão prática (de 1788). A tal da lei moral diz apenas: “Aja de modo que a máxima de sua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”.
Como podemos analisar esta lei? O filósofo nos diz que a máxima é uma regra subjetiva do meu querer, ligada à minha vontade e, se ela permanecer como tal, ela será válida somente para mim. No entanto, a lei ordena que eu compare esta máxima com a forma universal – a forma de uma lei –, ou seja, um princípio que é válido para todos os seres racionais, o que inclui no interior deste gênero a espécie dos seres humanos. Com essa comparação, no caso de a máxima possuir uma forma universal, ela passa a valer como princípio de uma legislação universal, na medida em que razão determina a vontade, e a ação possui um valor ético, pois ela é válida para todos os concernidos, no caso, todos os seres racionais e, portanto, para todos os seres humanos, deixando de ter um valor meramente subjetivo.
Talvez um exemplo venha a calhar. Em tempos de fake news, o exemplo da mentira (muito usado por Kant) é interessante. Ora, por que não devo mentir? Porque a universalização da mentira encerraria a possibilidade de se fazer qualquer tipo de afirmação, pois todas elas seriam mentirosas. Como o autor afirma, a máxima se autodestruiria. Surge uma contradição revelada na possibilidade do procedimento de se universalizar a mentira e em tratá-la como um suposto princípio ético. A lei moral e sua forma legislativa nos mostram essa contradição. Obviamente que Kant não acredita que vivemos numa república ética de não mentirosos, nós podemos mentir, já que não somos seres racionais perfeitos, mas a mentira não deve se tornar um princípio.
Ainda resta uma questão importante. O que está posto na lei moral? Ora, na medida em que ela é uma forma universal e uma forma legislativa, ela possui, para Kant, a própria forma da razão (prática). Essa forma está por trás dos procedimentos de comparação, de reflexão e, finalmente de determinação da vontade, na relação entre máximas e lei, como foi dito anteriormente. Logo, se todos nós, seres humanos, somos destinatários desta lei, na medida em que a razão determina nossa vontade, nosso querer, nós também somos legisladores de tal lei e, com isto, chegamos ao conceito de autonomia na história da filosofia, tão caro à ética, ao direito e à política.
Serviço de Comunicação Social: Qual a importância de Kant para a filosofia?
Maurício Cardoso Keinert: A importância de Kant para a filosofia é imensa. Para ficarmos com um exemplo dado, toda a questão da metafísica e, portanto, da própria filosofia terá de ser repensada em sua obra, principalmente nas três Críticas. E, com isto, surge a outra acepção de modernidade que mencionei há pouco. O cidadão de Königsberg acabou por fornecer princípios filosóficos a priori, com suas três críticas, em que foi possível se afirmar, por exemplo, o conhecimento da natureza na sua forma mecânica, algo basilar para a física clássica de Newton. Isto na primeira Crítica. Forneceu princípios importantes para o que hoje entendemos ser o Estado democrático de direito, com a sua moral, que inclui a ética e o direito, na Crítica da razão prática e na Metafísica dos Costumes; e com a terceira Crítica, a da faculdade de julgar, forneceu princípios para se pensar o belo e o sublime (além do organismo e da teleologia), ou seja, a arte e a crítica de arte não apenas de sua época, mas também a moderna e, talvez, a contemporânea.
Essas três instâncias racionais, bem demarcadas e delimitadas com princípios próprios, sem lançar mão de qualquer elemento metafísico ou religioso estranhos à razão, fazem com que possamos pensar o surgimento histórico da modernidade em seu sentido cultural e político e, ao mesmo tempo, a reflexão crítica, e não dogmática, que o pensador fez desse processo (que espero ainda estarmos vivendo de alguma forma). Tal processo foi chamado por Kant de Esclarecimento (Aufklärung) e foi, por ele, analisado em várias obras. Nesse sentido, ele fez um diagnóstico de época: com a "queda da Metafísica", a filosofia perguntou-se pelo seu presente, o colocou como objeto de sua reflexão, o que Foucault chamou em alguns de seus textos de uma “ontologia do presente”.
É nesse sentido que gostaria de terminar essa entrevista fazendo a defesa de que a filosofia kantiana ainda é uma fonte preciosa de reatualizações, principalmente em um mundo que caminha por trilhas dogmáticas extremamente perigosas, vistos os últimos acontecimentos antidemocráticos que vivenciamos no país e no resto do mundo. A defesa das ciências, das artes livres e sem censura encontram eco na filosofia de Kant. O conceito de autonomia foi usado, por exemplo, em votos no STF no julgamento da legalização do aborto de fetos anencéfalos, justificando a autonomia da mulher em relação às decisões referentes ao seu corpo – o que denota não apenas a questão dos direitos humanos, do direito de se ter a liberdade de escolha, mas, também na própria ideia de autodeterminação, e os dois conceitos podem estar ligados tanto a um indivíduo, como a um conjunto de indivíduos, a diferentes formas de vida, a diferentes povos, etc.
Ora, os ideólogos da extrema direita questionam e atacam furiosamente esta noção de modernidade, este projeto moderno. E tal movimento se institucionaliza cada vez mais, em diversos países. E quando se perde a capacidade de defender o universalismo em nome de um particularismo radical, o pensamento crítico é utilizado como um espantalho espetado em meio a uma plantação que só faz queimar. É preciso cuidado.
-
Maurício Cardoso Keinert é professor de História da Filosofia Moderna II do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia Moderna, atuando principalmente nos seguintes temas: Kant, liberdade, direito, moral, conhecimento e crítica.