Brasil inclui fim da censura na Constituição

Nesta data, em 1988, a Assembleia Constituinte incluiu na Carta Magna o veto a toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística

Por
Pedro Fuini
Data de Publicação

Fim da censura na Constituição de 1988
"O fato [...] de não mais existir um aparato oficial responsável pela censura prévia e dela ser proibida não impossibilitam, infelizmente, sua ocorrência", afirma Cecília Riquino Heredia ao falar sobre os dias atuais (Arte: Pedro Fuini)

Pai, afasta de mim esse cálice

Na famosa canção de Chico Buarque, o jogo de palavras com as expressões “cálice” e “cale-se” faz um ataque disfarçado ao autoritarismo do Estado brasileiro durante a Ditadura Militar (1964-1985). “Cálice”, escrita em 1973 por Buarque e Gilberto Gil, não passou despercebida pelos censores e só conseguiu liberação para lançamento em 1978. A censura à canção nesse período da história foi tema da pesquisa de Cecília Riquino Heredia, mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

A pesquisadora contesta o senso comum de que os censores eram facilmente driblados por metáforas sofisticadas. “[Havia uma] busca dos mesmos em vestir uma roupagem intelectual, demonstrando conhecimentos específicos para justificar e legitimar suas decisões em relação ao veto ou aprovação (deveriam, por lei, possuir diploma em Ciências Sociais, Direito, Filosofia, Jornalismo, Psicologia, História ou Pedagogia).” Ela afirma ainda que se tratava de um sistema eficiente, com alto nível de comunicação interna, padronização e preocupação com sua imagem perante a opinião pública.

O Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), herança do Estado Novo, e responsável pelo exame de músicas, livros e programas televisivos, por exemplo, era orgulhosamente reconhecido pelo regime, em oposição à censura à imprensa, negada pelo regime, de acordo com Heredia. “Não existia um órgão que formalmente realizasse a censura prévia aos jornais, embora ela ocorresse de maneira sistemática, muitas vezes nas próprias redações, através da presença de um técnico responsável por analisar a edição que seria publicada”.

Em 3 de agosto de 1988, a Assembleia Constituinte incluiu na Carta Magna a proibição de qualquer tipo de censura. “O fato, contudo, de não mais existir um aparato oficial responsável pela censura prévia e dela ser proibida não impossibilitam, infelizmente, sua ocorrência”, afirma.

Confira na íntegra a entrevista.

 

Serviço de Comunicação Social: Como se estruturavam e agiam os mecanismos de censura do Estado brasileiro?

Cecília Riquino Heredia: Essa foi, talvez, uma das principais perguntas que nortearam o início da minha investigação. Há um senso comum sobre a atuação da censura, principalmente ao longo do regime militar, considerada desorganizada, policialesca, facilmente driblada por metáforas e sob responsabilidade de técnicos com pouca capacidade intelectual. Contudo, no primeiro contato que o pesquisador estabelece com as fontes produzidas pelos seus órgãos, sobretudo os pareceres censórios, ele depara-se com um sistema eficiente, caracterizado por um alto nível de comunicação interna, pela grande preocupação com sua imagem frente à opinião pública, por procedimentos padronizados e normatizados (mas que apresentavam variações regionais), pelo grande apreço dos técnicos ao que era estabelecido pela legislação censória e, ainda, pela busca dos mesmos em vestir uma roupagem intelectual, demonstrando conhecimentos específicos para justificar e legitimar suas decisões em relação ao veto ou aprovação (deveriam, por lei, possuir diploma em Ciências Sociais, Direito, Filosofia, Jornalismo, Psicologia, História ou Pedagogia).

É importante deixar claro que, nesse período, existiam duas censuras, muito diferentes entre si, atuando paralelamente no país: a censura à imprensa e a censura às diversões públicas (responsável pelo exame de letras musicais, teatro, livros, cinema, programas de rádio e televisivos, publicidade em cartazes e apresentações em casas de shows). No caso da primeira, sua existência era constantemente negada por membros do regime militar e sua preocupação estava direcionada a temas ligados sobretudo à política, seguindo as diretrizes da Lei de Imprensa de 1967, que trazia em seu texto passagens como “não será tolerada a propaganda de guerra, de processos de subversão da ordem política e social ou de preconceitos de raça ou classe” e “constitui crime publicar ou divulgar notícias falsas ou fatos verdadeiros truncados ou deturpados, que provoquem perturbação da ordem pública ou alarma social”. Não existia um órgão que formalmente realizasse a censura prévia aos jornais, embora ela ocorresse de maneira sistemática, muitas vezes nas próprias redações, através da presença de um técnico responsável por analisar a edição que seria publicada. Eram comuns, também, a divulgação de listas com temas que não deveriam ser abordados pelas notícias e a ocorrência da uma “autocensura”, tendo em vista que os jornalistas possuíam ciência da perseguição que poderiam sofrer caso se indispusessem com o regime.

Já em relação à segunda censura mencionada, dirigida às artes e espetáculos e orgulhosamente reconhecida pelo regime, estava sob o comando de por um órgão instituído em 1945, o Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), que tem sua estrutura e dinâmicas herdadas do Estado Novo. As obras ou programas eram enviados com antecedência aos serviços estaduais e, posteriormente, seus responsáveis recebiam o parecer com a decisão final, que poderia ser questionada em grau de recurso. Era comum que elas fossem alvo do olhar de mais de um técnico e, caso houvesse discrepância em relação às suas considerações, a análise poderia ser realizada por membros de uma instância superior. Uma cópia da decisão era encaminhada, também, aos demais serviços estaduais, visando prevenir o perigo dos duplos encaminhamentos de obras, com nomes ou conteúdos alterados, uma vez que existia certa heterogeneidade em relação às decisões de órgãos de regiões distintas. Nesse contexto, a década de 1970 é marcada por uma tentativa de uniformização da estrutura e mecanismos de censura, buscando-se aumentar a eficiência do serviço e melhor delimitar suas funções, enquanto parte importante do aparato repressivo e de inteligência construído pelo regime. Para isso, foram realizados cursos de formação aos censores, foram sendo instituídas normas e leis que regulavam a sua atuação e, em 1972, sua estrutura foi centralizada com a criação da Divisão de Censura de Diversões Pública, cuja sede estava em Brasília e subordinada ao Ministério da Justiça. Suas atividades, por fim, foram extintas somente três anos após a redemocratização, através da promulgação da Constituição de 1988, que proibiu a censura de qualquer natureza.

 

Serviço de Comunicação Social: Em sua dissertação de mestrado, você analisa especificamente a censura à canção. Você pode nos explicar um pouco mais sobre sua pesquisa?

Cecília Riquino Heredia: O olhar específico para a censura musical justifica-se, principalmente, pelas dinâmicas particulares das letras musicais dentro do aparato, em comparação às demais diversões públicas. Para dar dois exemplos, no momento em que a DCDP é criada e as obras artísticas passam a ser censuradas pelo órgão central em Brasília, as músicas experimentam um processo de descentralização, ficando a cargo dos serviços estaduais. Ao mesmo tempo, enquanto, a partir do final da década de 1970, o teatro, o cinema, a televisão e a literatura vivenciam uma abertura que possibilitou a liberação de muitas obras, a música se depara com um recrudescimento da ação censória, cujos vetos desenham um movimento de ascensão até o ano de 1985. Buscando compreender essas e outras peculiaridades da censura musical, eu realizei um estudo quantitativo serial e qualitativo dos processos presentes no Fundo de DCDP, sob guarda do Arquivo Nacional.

A partir da constituição de uma amostra aleatoriamente selecionada, e representativa de todo o conjunto, composta por 1470 pareceres censórios, alimentei um banco de dados com informações que poderiam ser comparadas cronologicamente e regionalmente, relacionadas a questões como decisão final do exame, pelo veto ou liberação (com ou sem restrições); existência, ou não, de pareceres discrepantes relativos a uma mesma letra musical; gênero musical da canção examinada (quando explicitado no processo); requerente do exame censório (se gravadora, organização de festival, o próprio artista, ou procurador); existência de recurso questionando o veto e seu resultado; artigos da legislação censória citados em cada parecer e motivações que levaram as músicas a serem vetadas.

Dentre os resultados atingidos, o último tema apontado traz um quadro interessante para que se tenha um primeiro contato com o caminho percorrido pela censura musical ao longo da ditadura militar. Até o ano de 1974, existia uma heterogeneidade e um equilíbrio quantitativo entre os motivos que levavam ao veto, relacionados a questões políticas, questões sociais, questões estéticas, erros ortográficos e questões morais. A partir de 1975, por sua vez, a suposta defesa dos bons costumes passa a ser utilizada como justificativa para mais da metade dos vetos realizados, chegando a superar 85% nos anos da década seguinte. São plurais as explicações para esse último movimento e, dentre as que eu apresento na minha dissertação, destaco uma, que dialoga com episódios pontuais de censura ocorridos no Brasil da atualidade: a tentativa do Estado autoritário – em um contexto de abertura política e disseminação de novos valores, com a revolução de costumes – de assumir para si o controle nacional da mensagem ético-moral, iniciativa sintomática diante da iminência da liberdade de expressão. Buscava-se, assim, sustentar, ao menos no discurso e como um último suspiro, o conjunto de pilares da família, religião e tradição, cuja defesa legitimou as ações da ditadura no imaginário junto a importantes e plurais setores da sociedade brasileira.

 

Serviço de Comunicação Social: Passados mais de 30 anos, a censura no país realmente chegou ao fim?

Cecília Riquino Heredia: A Constituição de 1988 teve um importante papel na defesa da liberdade de expressão, proibindo, em seu Artigo 5º, qualquer forma de censura, seja ela de cunho político, ideológico ou estético e oficialmente impedindo a ocorrência sistemática da mesma. O fato, contudo, de não mais existir um aparato oficial responsável pela censura prévia e dela ser proibida não impossibilitam, infelizmente, sua ocorrência. As justificativas, inclusive, podem ser bem parecidas com aquelas proferidas em regimes autoritários - preservação da família, da juventude, da moral, dos bons costumes, de uma pretensa “boa cultura” e da ordem pública - e os meios de ação - muitas vezes envolvendo financiamento, circulação de obras e permissão para a utilização de espaços públicos - podem tentar esconder o real objetivo de proibir ou filtrar a divulgação de informações que entrem em choque com o conjunto de valores defendido, principalmente pelo Governo Federal.

Cecília Riquino Heredia é doutoranda e mestre pelo programa de Pós-Graduação em História Social da FFLCH, pela qual se graduou em História (2011). Tem experiência e desenvolve pesquisa na área de História do Brasil Republicano, com ênfase no regime militar, censura e na relação entre política e música. Sua dissertação de mestrado A caneta e a tesoura: dinâmicas e vicissitudes da censura musical no regime militar, está disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.