Sequestro do embaixador americano Charles Elbrick

Em troca da liberdade, militantes da ALN e do MR-8 exigiam a libertação de 15 presos políticos pelo regime militar

Por
Pedro Fuini
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Sequestro do embaixador americano Charles Elbrick
"Me parece prematuro sugerir, conforme algumas análises sobre esse episódio, que havia uma ordem expressa vinda de Washington no sentido de exigir que o governo brasileiro aceitasse as exigências dos guerrilheiros", afirma Pâmela Almeida. (Arte: Pedro Fuini)

Em 4 de setembro de 1969 ocorreu um dos episódios mais marcantes da Ditadura Militar (1964-1985): o então embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, foi sequestrado por integrantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), dois dos principais grupos armados contrários ao regime. Esses grupos ocuparam cada vez mais a cena pública ao defenderem a violência como ferramenta legítima de luta política, o que incluía o sequestro de diplomatas. 

Em troca da liberdade de Elbrick, sequestrado nas ruas do Rio de Janeiro, foi exigida a leitura de um manifesto revolucionário em rede nacional e a libertação de 15 presos políticos. Em 7 de setembro, Elbrick foi solto pelos sequestradores, após a libertação dos presos políticos pela ditadura, que foram encaminhados ao México. “Como consequência direta do sequestro, foram promulgados os Atos Institucionais 13 e 14 que previam, respectivamente, o banimento do território nacional daqueles considerados ‘perigosos à segurança nacional’ e a pena de morte e prisão perpétua”, explica Pâmela Almeida, doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. 

Segundo a pesquisadora, a relação entre Brasil e Estados Unidos, nos anos 1960, foi marcada por aproximações e recuos. “Os Estados Unidos, conforme fartamente documentado, participou ativamente da articulação que levou à derrubada do presidente João Goulart e ao golpe civil-militar em 1964”. Por trás dessa articulação, estava o interesse americano em impedir que os impactos causados pela Revolução Cubana se espalhassem pelo continente americano. O sequestro do embaixador, para Almeida, “contribuiu para colocar em primeiro plano algumas tensões que já estavam postas”, citando como exemplo a diminuição da assistência econômica e o aumento das denúncias de violação de direitos humanos no Brasil.

Em sua tese de doutorado, Pâmela Almeida buscou compreender como o sequestro do embaixador Charles Burke Elbrick repercutiu nos bastidores do governo americano e como foram as negociações em ambos os países. “Pareceu fundamental a compreensão de que esse episódio não deveria ser entendido como uma ação isolada, mas como parte constitutiva de uma sequência de ações que atingiu diretamente a segurança diplomática no mundo todo”, explica. 

Enquanto sequestros políticos como o de Elbrick representavam um ato “heróico” de enfrentamento direto às ditaduras para os grupos armados de esquerda, estes exigiam que as autoridades americanas estudassem com atenção as medidas que seriam adotadas. Almeida se debruçou sobre documentos trocados entre a embaixada no Rio de Janeiro e o Departamento de Estado dos Estados Unidos e análises veiculadas na mídia sobre o episódio. A partir destes, ela contesta as análises de que o governo americano pressionou o governo brasileiro para que fossem aceitas as exigências dos sequestradores. A pesquisadora percebeu também uma preocupação sobre como o sequestro poderia interferir no futuro das relações entre os dois países e se seria prudente que o embaixador continuasse a ocupar o cargo, pois havia o entendimento de que seu poder de negociação diplomática estava seriamente comprometido.

Leia na íntegra a entrevista com Pâmela Almeida sobre o sequestro do embaixador americano.
 

Serviço de Comunicação Social: De forma geral, como era a atuação de grupos como ALN e MR-8 na ditadura?

Pâmela Almeida: Com a conjuntura aberta pelo golpe de 1964 que depôs o presidente João Goulart e instituiu a ditadura civil-militar no país, uma série de debates ocorridos no interior da esquerda ocasionaram a formação de diversas organizações, cuja crítica se voltava para aquilo que consideravam uma “burocratização” dos partidos tradicionais. Foi naquele contexto que organizações como a Aliança Libertadora Nacional (ALN) e o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) passaram a ocupar a cena pública, posicionando-se enquanto oposição direta ao regime, a partir da defesa da violência como ferramenta legítima de luta política. Assim, as ações dos grupos armados envolveram atentados a bombas, assaltos a bancos, expropriações de quartéis, sequestros de diplomatas, trabalho de propaganda, etc.

 

Serviço de Comunicação Social: O que foi e por que ocorreu o sequestro do embaixador Charles Elbrick?

Pâmela Almeida: Em 4 de setembro de 1969, integrantes da ALN e do MR-8 sequestraram o embaixador Charles Burke Elbrick nas ruas do Rio de Janeiro e, em troca de sua libertação, exigiam a leitura de um manifesto revolucionário em rede nacional, além da libertação de 15 presos políticos. Essa ação foi idealizada num momento em que organizações de esquerda ligadas à luta armada passaram a organizar ações cujo objetivo era o enfrentamento direto à ditadura civil-militar. Como consequência direta do sequestro, foram promulgados os Atos Institucionais 13 e 14 que previam, respectivamente, o banimento do território nacional daqueles considerados “perigosos à segurança nacional” e a pena de morte e prisão perpétua.

 

Serviço de Comunicação Social: Como era a relação entre Brasil e Estados Unidos no período?

Pâmela Almeida: Os Estados Unidos, conforme fartamente documentado, participou ativamente da articulação que levou à derrubada do presidente João Goulart e ao golpe civil-militar em 1964. Na verdade, a preocupação dos sucessivos governos estadunidenses, sobretudo a partir dos anos 1960, envolvia impedir que novos Castros e novas Cubas surgissem no continente americano, numa referência clara aos impactos causados pela Revolução Cubana no hemisfério. Portanto, a relação entre Brasil e Estados Unidos ao longo da década de 1960, por exemplo, foi marcada por aproximações e recuos. Para o período que interessa aqui, acredito que o sequestro do embaixador, nos dias que duraram a ação até o momento em que Elbrick retorna para os Estados Unidos, em meados de 1970, contribuiu para colocar em primeiro plano algumas tensões que já estavam postas como a diminuição da assistência econômica, além da questão da tortura, numa conjuntura em que as denúncias das graves violações de direitos humanos no Brasil cresciam em tamanho e intensidade.

 

Serviço de Comunicação Social: Em sua tese de doutorado, você afirma que "os sequestros podem e devem ser entendidos também como um fenômeno transnacional e não como acontecimentos isolados". Você pode nos contar mais a respeito de sua pesquisa?

Pâmela Almeida: Em linhas gerais, com o objetivo de tentar compreender como o sequestro do embaixador Charles Burke Elbrick repercutiu nos bastidores do governo estadunidense e como foram as negociações em ambos os países, pareceu-me fundamental a compreensão de que esse episódio não deveria ser entendido como uma ação isolada, mas como parte constitutiva de uma sequência de ações que atingiu diretamente a segurança diplomática no mundo todo. Naquele momento, foram intensificados os debates sobre os riscos inerentes às missões diplomáticas, a necessidade da regulamentação de pactos e tratados que garantissem a segurança, sobretudo no cenário politicamente convulsionado do pós-guerra. Portanto, se os sequestros políticos que tiveram lugar nas décadas de 1960 e 1970 representaram para a esquerda armada um ato “heróico” de enfrentamento direto às ditaduras, para o governo estadunidense e seus policymakers, tais ações precisavam ser estudadas com atenção, inclusive pensar as medidas que seriam adotadas.

Outro ponto que chamou minha atenção desde o início foi compreender, afinal de contas, quem era o embaixador Charles Burke Elbrick, já que em boa parte das análises sobre o sequestro, o embaixador aparecia como um figurante de um episódio em que ele era personagem central. Revisitar a carreira do Elbrick não foi tarefa fácil e é surpreendente perceber como as informações de um diplomata que serviu em postos tão cruciais estejam tão dispersas, confusas e desencontradas. Elbrick foi um homem que nasceu no início do século XX e teve sua carreira diplomática vinculada aos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, mas, sobretudo aos eventos da Guerra Fria. Além do Brasil, Elbrick foi embaixador em Portugal, entre 1959 e 1963, e teve papel fundamental nas relações luso-americanas, num contexto marcado pelas guerras de descolonização na África. Logo depois, foi nomeado para a Iugoslávia do Marechal Tito, onde ficou até ser encaminhado para o Brasil.

Por fim, ao me debruçar sobre telegramas, informes, conversas e declarações trocadas entre membros da embaixada no Rio de Janeiro e membros do Departamento de Estado, nos Estados Unidos, além das análises que saíram na mídia impressa, parece-me prematuro sugerir, conforme algumas análises sobre esse episódio, que havia uma ordem expressa vinda de Washington no sentido de exigir que o governo brasileiro aceitasse as exigências dos guerrilheiros. Outro tópico fundamental, também presente nos documentos, é o questionamento sobre como o sequestro poderia interferir no futuro das relações entre os dois países, além da necessidade de reavaliar se seria prudente que o embaixador continuasse a ocupar o posto diplomático no Brasil a partir da observação que seu poder de negociação diplomática estava seriamente comprometido.

Pâmela Almeida é bacharel e licenciada em História pela Universidade Estadual de Campinas, pela qual também é mestre em História Social, com pesquisa sobre o controle e vigilância aos movimentos pela anistia na década de 1970. É doutora em História Social pela FFLCH. Realizou estágio doutoral na The New School University em 2017. Foi premiada no 2º Prêmio de Pesquisas Memórias Reveladas, no ano de 2013, com a publicação do livro Os vigilantes da ordem: a cooperação DEOPS/SP e SNI e as suspeições aos movimentos pela anistia (1975-1983). Trabalhou como consultora na Comissão de Anistia e pesquisadora júnior na Comissão Nacional da Verdade. Sua tese de doutorado, Ser um embaixador não é um mar de rosas: o sequestro de Charles Burke Elbrick no Brasil em 1969, está disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.