Um dos maiores nomes da geração ultrarromântica, Azevedo é autor do célebre "Lira dos Vinte Anos" (1853)
Escritor da geração ultrarromântica, estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e com uma obra breve como sua vida, marcada pela qualidade estética e pela variedade estilística e temática. Esse foi Manoel Antônio Álvares de Azevedo (“Maneco”, para os íntimos), nascido em 12 de setembro de 1831, em São Paulo, e morto antes de completar 21 anos, em 1852, no Rio de Janeiro, onde viveu boa parte de sua vida.
O fato de ter sido estudante da Faculdade de Direito, a “SanFran”, hoje parte da Universidade de São Paulo, atravessa a biografia e obra do escritor, que foi bastante lida pelos jovens. Natália Santos, doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, comenta que o sucesso do escritor entre esse público pode ser explicado por representar conflitos e dúvidas dessa etapa da vida, além de aventuras reais e fictícias.
Segundo Santos, um boato que circulou a respeito do poeta foi de que teria nascido dentro do prédio da SanFran, quando seu pai cursava Direito ali. “Um transeunte, ao ouvir os vagidos da criança, teria dito: ‘Nasceu um estudante!’ ou algo do tipo”. Verdade ou não, a influência do poeta fez com que o Centro Acadêmico XI de Agosto mandasse construir um busto em sua homenagem, que atualmente está defronte a Faculdade.
CARACTERÍSTICAS
De família abastada, as obras de Álvares de Azevedo foram todas publicadas postumamente por seu pai. Lira dos Vinte Anos (1853) é a mais célebre de todas; as outras, não menos importantes, são Macário, Noite na Taverna (ambas publicadas em 1855) e O Conde Lopo (1886). Ele foi o principal nome do ultrarromantismo, corrente literária marcada por características como a melancolia, a fuga da realidade e o mórbido.
Lira dos Vinte Anos é descrita por Santos como uma “medalha de duas faces”. Na primeira parte, ela cita a presença de poemas líricos curtos, com ritmos melodiosos que se gravam na mente do leitor, com uma linguagem acessível. O amor inatingível, a rejeição amorosa e o desejo e exaltação da figura feminina são alguns dos temas mais presentes na poesia de Azevedo. A segunda parte da obra, de acordo com Santos, introduz um tom humorístico no lugar do tom lamentoso da primeira. Poemas como “No mar”, em que a figura da mulher amada é valorizada, dão lugar a poemas como “É ela! É ela! É ela! É ela”, que “enfatizam que nem tudo são flores nos relacionamentos amorosos”. As dificuldades do poeta em sobreviver com seu ofício, tema incomum no romantismo brasileiro, também é um tema presente, tratado de forma cômica.
Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.
E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.Trecho do poema “Lembrança de Morrer”
LEGADO
Natália Santos acredita que um conjunto de fatores fez com que Azevedo mantivesse um legado importante na literatura brasileira, mesmo com vida e obra tão curtas. Ela cita o alvoroço em torno da morte prematura e a publicação póstuma de suas obras financiadas pelo pai, o que pôde torná-lo conhecido. Além disso, a variedade estilística e temática e a experimentação, além de inovações estéticas, como a ‘binomia’, (presença de duas consciências poéticas autônomas) em Lira dos Vinte Anos, fizeram com que o poeta fosse alvo de muitas pesquisas acadêmicas. Santos afirma ter estudado um “lado Z” do autor, ao mergulhar em seus estudos literários, menos conhecidos. No doutorado, ela lidou com textos em que Azevedo aborda obras de terceiros, em que o autor adota um estilo verborrágico, digressivo e hermético, “além de abordar polêmicas e questões que pareciam evidentes à época, seja por figurarem nos jornais ou nas salas de aula, e que não o são mais”. Os resultados de sua pesquisa de doutorado serão publicados ainda esse ano pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), sob o título Um leitor inconformado: Álvares de Azevedo e a literatura comparada.
Confira na íntegra a entrevista com Natália Santos:
Serviço de Comunicação Social: Para os que não o conhecem, quem foi Álvares de Azevedo?
Natália Santos: Álvares de Azevedo, familiarmente conhecido como “Maneco”, foi um escritor brasileiro do século 19. Ele nasceu em 12 de setembro de 1831 e faleceu em 1852, antes de completar 21 anos de idade. A sua obra é comumente associada à estética romântica, sobretudo ao que se conhece, no Brasil, como ultrarromantismo.
Apesar de ter vivido parcela considerável de sua vida no Rio de Janeiro, outrora sede do Império, ele nasceu em São Paulo. Pode-se dizer que boa parte de sua obra literária foi escrita nessa última cidade, enquanto ele era estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, atualmente parte da USP.
Essa condição estudantil perpassa toda a curta biografia do escritor. Não é à toa que se tem um busto dele defronte à “SanFran”. Para se ter uma ideia, uma das muitas histórias imprecisas que circularam sobre Álvares de Azevedo é a de que ele teria nascido dentro do prédio da Faculdade. Na época, o pai dele cursava Direito e morava na capital paulista. Um transeunte, ao ouvir os vagidos da criança, teria dito: “Nasceu um estudante!” ou algo do tipo.
De fato, a figura do estudante acabara de nascer no país, já que, antes de 1827, não havia aqui curso superior. Assim, essa interação universitária, dentro e fora da sala de aula, a experiência de estar longe da casa dos pais, a proximidade com outros colegas, no caso de Azevedo, a companhia de Bernardo Guimarães, outro escritor seu contemporâneo, propiciou a irrupção de um ambiente intelectual novo. Além disso, fomentou mais de uma lenda, as conhecidas “estudantadas”, que iam desde roubos de galinha até eventos menos comprovados e mais literários, como a Sociedade Epicureia, que faria orgias regadas a vinho.
Essa atmosfera está presente na obra de Álvares de Azevedo e pode ser que isso faça com que ela tenha sido bastante lida entre os jovens, à medida que expressa conflitos e dúvidas dessa etapa da vida, além de algumas aventuras reais ou não. Dessa forma, num país que lê pouco e, notadamente, pouca poesia, os versos dele são dos mais conhecidos.
Ainda sobre essa questão do estudante, vale dizer que Azevedo era conhecido por ser bom aluno, desde a infância, o que fez com que ele se destacasse cultural e academicamente dos seus pares. Lia muito e sabia várias línguas, o que é realmente verdade.
Depois de uma queda, enquanto andava a cavalo, durante as férias escolares no Rio, o escritor acabou adoecendo e não retornando a São Paulo, falecendo no dia 25 de abril de 1852.
Serviço de Comunicação Social: Quais as características de sua escrita?
Natália Santos: Álvares de Azevedo é um escritor escolarmente conhecido, estando sempre presente nos materiais didáticos. Para além de sua qualidade estética, acredito que essa presença se deva também ao fato de uma parte dos poemas do livro Lira dos Vinte Anos, sua obra mais célebre, publicada postumamente em 1853, corresponder àquilo que se espera do padrão romântico.
Na primeira parte desse livro, encontramos poemas líricos mais curtos, de ritmos melodiosos, que se gravam na mente do leitor. Além disso, sua dicção poética, a sintaxe dos versos propriamente dita, é mais simples do que a poesia anterior, de padrão clássico. Isso a tornava relativamente mais acessível ao gosto médio, porque se aproximava um pouco mais da fala das pessoas. Tudo isso para o eu lírico dos poemas dizer que suas composições eram fruto de suas mais puras inspirações, que não passavam por correções posteriores ou tentativas de alinhamento a regras poéticas exteriores ao poema. Um jogo romântico de fingir espontaneidade!
Quanto aos temas dessa poesia, pode-se dizer que o amor inatingível, a rejeição amorosa, o desejo e a exaltação da figura feminina são constantes e contribuíram para a formatação da nossa sensibilidade. Desses, posso citar os poemas “No mar” e “Pálida, à luz da lâmpada sombria”.
Essas seriam as características do Álvares de Azevedo do cânone escolar. Mas ele tem explicitamente um lado B, nem sempre explorado.
Serviço de Comunicação Social: Você poderia falar brevemente sobre as principais obras do autor?
Natália Santos: Na segunda parte do livro de poemas Lira dos Vinte Anos, encontramos poemas que são diametralmente opostos aos descritos acima. De forma bastante original, o autor coloca um prefácio no meio do livro, pedindo cautela ao leitor que ousasse virar a página, pois ali se dissipava o mundo etéreo. Essa obra se apresenta, assim, como “medalha de duas faces”.
O tom lamentoso dos primeiros poemas dá lugar a um tom humorístico, e o que antes era valorizado, como a figura da mulher amada, por exemplo, recebe outro tratamento. Poemas como “É ela! É ela! É ela! É ela” e “Namoro a cavalo” enfatizam que nem tudo são flores nos relacionamentos amorosos. Já outros como “O editor” e “Dinheiro” debatem as relações entre literatura e valor econômico, as dificuldades que o poeta tem para sobreviver, assuntos que, além de não serem tão comuns no nosso romantismo, destacam-se pela veia cômica.
Na prosa, o autor nos deixou duas obras importantes: Macário e Noite na Taverna, ambas publicadas no segundo volume de suas obras, em 1855. A primeira é uma espécie de peça de teatro na qual o protagonista homônimo, um estudante, vale dizer, encontra, a caminho da escola, um estranho indivíduo que, posteriormente, se apresenta como nada mais nada menos que Satã. Entre charutos e cachaça, eles discutem temas tabus à época, como sexo e prostituição, além de questões mais amplas como crença e descrença, a validade ou não da arte, etc.
Já Noite na Taverna retrata um grupo de jovens à roda de uma mesa de bar. Num estado já avançado de embriaguez, eles se desafiam a contar a experiência mais escabrosa que tinham vivido. A partir daí, cada um dos convivas toma a palavra para contar os “causos” mais interditos, envolvendo necrofilia, canibalismo, etc. Essa foi a primeira obra do autor com a qual eu tive contato, depois disso, não parei mais.
Além dessas, o autor nos legou mais algumas narrativas em verso, cartas, discursos e alguns estudos críticos.
Serviço de Comunicação Social: Mesmo tendo uma breve vida e obra, por que Azevedo é tão célebre?
Natália Santos: Acredito que seja por um conjunto de fatores. De início, podemos pensar que a morte prematura em si e a publicação póstuma das obras causaram um certo alvoroço. Afinal, já se disse que não haveria coisa mais triste do que morrer jovem, com todas as potencialidades diante de si. Somada a isso, temos a lenda de que o autor teria previsto a própria morte, seja por meio de comentários lacônicos em cartas, poemas como “Lembrança de morrer”, seja por meio de anotações na parede do quarto de república, na qual, diz-se, ele teria feito uma lista com os nomes de outros formandos em Direito, mortos prematuramente, deixado um espaço livre justamente para inscrever o seu próprio nome.
Como se vê, a vida breve, a quase ausência de informações biográficas e a confusão entre vida e obra que era promovida pela própria estética romântica, que coloca o eu no centro das preocupações artísticas, produziram uma série de histórias em torno do autor, exploradas ao longo de todo o século 19 e parte do 20.
Mas só isso não garantiria a sobrevivência da obra do poeta, talvez a da sua figura, mas não a da sua obra. Para essa perpetuação, destaco o fato de que, por ser de família abastada, suas obras foram logo publicadas postumamente, às expensas do pai. Ou seja, se não houvesse essas condições materiais, a sua popularidade talvez fosse comprometida. Com o sucesso da publicação, os direitos foram comprados por um livreiro e diversas edições se sucederam ainda no século 19, o que não era comum naquele contexto, tampouco hoje.
No que tange à obra propriamente dita, podemos dizer que ela se destaca no horizonte do nosso romantismo. Num ambiente, a Faculdade de Direito, no qual todos deviam pagar seu tributo às musas, sendo a literatura considerada uma verdadeira febre entre os jovens, a obra de Álvares de Azevedo é notavelmente mais interessante, pela variedade estilística e temática e pela autoconsciência demonstrada por ele em relação aos seus escritos e ao lugar que poderiam ocupar no quadro da nossa nascente literatura.
Por fim, e academicamente falando, a obra do autor apresenta questões estéticas que continuam fazendo com que ela seja alvo de pesquisas universitárias. As mais desenvolvidas dizem respeito à ‘binomia’, ou seja, a presença de duas consciências poéticas autônomas num mesmo livro, o Lira dos Vinte Anos, conforme relatei anteriormente. Para quem quiser saber mais sobre isso, recomendo o livro da professora Cilaine Cunha, da FFLCH, chamado O belo e o disforme (1998).
Outro aspecto é a experimentação formal encampada pelo autor. Um exemplo é a possibilidade, notada por Antonio Candido, de lermos Noite na Taverna como continuação de Macário. Esse acoplamento, permitiria ao mestre Satã mostrar ao seu pupilo Macário uma escola sui generis a partir dos relatos surpreendentes dos moços na taverna. A professora Andrea Werkema da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) estudou a peça Macário de forma aprofundada no livro Macário ou o drama romântico em Álvares de Azevedo (2012).
Essas questões e as pesquisas decorrentes delas evidenciam a capacidade estética do nosso autor, bem acima não apenas dos seus pares da Faculdade, mas de autores de outros períodos literários, garantindo ao autor um lugar de relevo dentro da nossa literatura até hoje.
Serviço de Comunicação Social: No mestrado e no doutorado, você desenvolveu pesquisas acerca do autor. Você poderia nos contar a respeito?
Natália Santos: Se eu disse que Álvares de Azevedo tem um lado B, no que concerne às suas poesias, no doutorado, sobretudo, eu estudei o lado Z do autor!
Isso quer dizer que me concentrei nos seus estudos literários, sendo o autor muito mais conhecido pela sua obra poética. Em geral, esses textos são lidos pelos estudiosos de forma parcial: elege-se uma ou outra parte dos seus ensaios para iluminar questões levantadas pela obra poética e/ou ficcional.
Como os escritos do autor são fragmentados, seja porque ele não pôde terminar de escrevê-los, seja porque pretendia deixá-los assim, para sugerir a inspiração e o espírito de liberdade românticos, eu, enquanto estudiosa do autor, sempre tive uma preocupação de achar linhas gerais que me permitissem traçar uma visão ampla acerca do projeto alvaresiano, numa tentativa de compreender melhor o meu objeto de estudo.
Assim, no mestrado, eu me debrucei sobre os quatro prefácios que Azevedo escreveu para suas próprias obras: dois para Lira dos Vinte Anos, um para Macário e outro para O conde Lopo, uma narrativa em versos, publicada em 1886. Colocando as mesmas perguntas para esse conjunto textual, por exemplo, as concepções de poesia e de poeta com as quais o autor trabalhava, pude perceber que seu pensamento crítico era mais coerente do que a princípio eu podia supor. Tive o prazer de ver esses resultados publicados pela saudosa editora Humanitas, da FFLCH, em 2014, sob o título Antagonismo e dissolução: o pensamento crítico de Álvares de Azevedo.
Ainda sob a atenta orientação do professor Eduardo Vieira Martins, que me acompanhou também no mestrado, continuei trabalhando com os textos críticos de Azevedo. Se no mestrado me ocupei do que ele falava sobre suas próprias obras, no doutorado estudei os quatro textos nos quais ele abordava obras de terceiros. São eles “Literatura e civilização em Portugal”; “Lucano”; “George Sand: Aldo o rimador” e “Alfredo de Musset: Jacques Rolla”.
Esses textos foram bastante desafiadores para mim. Primeiro, porque eles apresentam linhas de raciocínio nem sempre muito evidentes. Neles, o autor adota um estilo verborrágico, digressivo e algo hermético, além de abordar polêmicas e questões que pareciam evidentes à época, seja por figurarem nos jornais ou nas salas de aula, e que não o são mais. Isso deixa o pesquisador às cegas! Talvez isso espante os leitores e, por isso, eu considerei que esses textos eram o lado Z do autor.
Paradoxalmente, foi uma característica não raro criticada pelos estudiosos da nossa literatura, o excesso de citações das quais Azevedo se vale, que me ajudaram a tecer algumas diretivas sobre esses ensaios. As referências feitas por Azevedo ao longo de seus ensaios não só, mas também a um conjunto de professores que muito publicaram em revistas franceses, como a Revue des deux mondes, me permitiram perceber que ele sempre procurava evidenciar os múltiplos diálogos, as diversas intersecções culturais presentes nos escritores que ele analisava. Essa perspectiva comparatista adotada pelo autor ressaltava que nenhum autor, nenhuma literatura estava isolada das outras, alimentando-se só do que se relacionava ao seu próprio lugar. Essas discussões estavam sempre presentes em parte dos artigos que ele consultava e, penso eu, contribuíram para que o autor pensasse outro projeto literário para nossas letras, distinto do localista, que se empenhava na cor local e era defendido por diversos escritos brasileiros em meados dos oitocentos.
Fico feliz em compartilhar que os resultados desse trabalho serão publicados pela Edusp, ainda em 2022, sob o título Um leitor inconformado: Álvares de Azevedo e a literatura comparada. Espero que essa publicação lance mais luz e suscite mais questões sobre essa parte dos escritos de Álvares de Azevedo.
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Natália Santos é professora adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Licenciada em Letras (Português/Inglês) pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), é mestra e doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH. É autora do livro Antagonismo e dissolução: o pensamento crítico de Álvares de Azevedo (2014), fruto de sua dissertação de mestrado. Seus principais interesses de pesquisa são o século 19, o romantismo brasileiro e toda a gama de assuntos levantada pelo periodismo literário oitocentista. Suas pesquisas de mestrado e doutorado sobre Álvares de Azevedo estão disponíveis na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.